Acessibilidade / Reportar erro

Anorexia nervosa e gravidez: relato de caso

Anorexia nervosa and pregnancy: a case report

Resumos

Relata-se o caso de uma adolescente de 18 anos que desenvolveu quadro de hiperemese gravídica seguida de anorexia nervosa durante sua primeira gravidez, chegando a índice de massa corporal (IMC) de 14,3 Kg/m². Os sintomas apresentados remitiram após o término prematuro da gestação. Apesar de a anorexia nervosa ser incomum na gravidez, seu diagnóstico é importante em virtude dos riscos para a saúde materna e fetal.

Anorexia nervosa; Hiperemese das grávidas; Gravidez


The authors describe a case of an eighteen years-old adolescent who developed hyperemesis gravidarum followed by anorexia nervosa during her first pregnancy. Her body mass index (BMI) achieved 14.3 Kg/m². The symptoms remitted after the premature delivery of the newborn. Although anorexia nervosa is uncommon in pregnancy, its diagnosis is important in view of the risks for the health of mother and fetus.

Anorexia nervosa; Hyperemesis gravidarum; Pregnancy


Relato de Caso

Anorexia nervosa e gravidez: relato de caso

Anorexia nervosa and pregnancy: a case report

Fabiano Gonçalves Nerya, Antônio Lúcio Teixeira-Jra, Gislene Valadares Mirandaa e Maurício Viotti Dakerb

aHospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, MG, Brasil. bDepartamento de Psiquiatria e Neurologia da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG, Brasil

RESUMO

Relata-se o caso de uma adolescente de 18 anos que desenvolveu quadro de hiperemese gravídica seguida de anorexia nervosa durante sua primeira gravidez, chegando a índice de massa corporal (IMC) de 14,3 Kg/m2. Os sintomas apresentados remitiram após o término prematuro da gestação. Apesar de a anorexia nervosa ser incomum na gravidez, seu diagnóstico é importante em virtude dos riscos para a saúde materna e fetal.

Descritores

Anorexia nervosa. Hiperemese das grávidas. Gravidez.

ABSTRACT

The authors describe a case of an eighteen years-old adolescent who developed hyperemesis gravidarum followed by anorexia nervosa during her first pregnancy. Her body mass index (BMI) achieved 14.3 Kg/m2. The symptoms remitted after the premature delivery of the newborn. Although anorexia nervosa is uncommon in pregnancy, its diagnosis is important in view of the risks for the health of mother and fetus.

Keywords

Anorexia nervosa. Hyperemesis gravidarum. Pregnancy.

INTRODUÇÃO

Na gravidez, as mulheres apresentam comumente alterações no padrão alimentar habitual como desejo e/ou aversão a determinados alimentos. As alterações remitem após o término da gravidez, raramente causando riscos para a mãe ou para o feto.1 Transtornos alimentares, como bulimia e anorexia nervosa, também podem ocorrer na gravidez, o que aumenta o risco de complicações obstétricas e fetais. Acompanham maior incidência de hiperemese gravídica, menor ganho ponderal materno, retardo do crescimento fetal intrauterino, prematuridade, recém-nato com baixo peso, desnutrição do bebê após o parto e depressão pós-parto.1-4 Grávidas com anorexia são também submetidas a cesarianas com maior freqüência.3 Portanto, o reconhecimento desses transtornos é muito importante.1 A abordagem do problema, porém, tem sido dificultada por sua raridade e pela escassez de estudos.

Estima-se a prevalência entre 0,5% e 1% para anorexia nervosa e 1% e 1,7% para bulimia em adolescentes do sexo feminino.5 Síndromes parciais, isto é, formas de transtornos alimentares que não preenchem os critérios necessários para o diagnóstico de anorexia ou bulimia, são mais freqüentes. Elas ocorrem com 5% a 10% de jovens do sexo feminino.6 Pressupõe-se que a prevalência desses transtornos na gravidez seja ainda menor pela freqüência com que ocorrem alterações menstruais, hipossexualidade e isolamento social nas pacientes.2

A anorexia nervosa, por reduzir o peso da mulher para níveis de desnutrição, interfere diretamente no ciclo ovulatório, com redução dos níveis dos hormônios luteinizante e folículo estimulante e conseqüente comprometimento da maturação folicular.2,7 As irregularidades menstruais são tão comuns que integram os critérios diagnósticos do DSM-IV e da CID-10 para o transtorno.8,9 Assim, a associação de anorexia e gravidez, além de pouco freqüente, geralmente é insuspeitada. A reticência das pacientes anoréxicas em relatar seus sintomas, devido aos fortes sentimentos de vergonha e culpa, contribui para dificultar o reconhecimento do transtorno.10

A hiperemese gravídica é uma síndrome marcada por vômitos incoercíveis no primeiro trimestre da gestação, proporcionando perda de peso e riscos à gravidez. A hiperemese gravídica estaria relacionada ao agravamento ou ao desenvolvimento de transtornos alimentares na gravidez, embora a prevalência destes em mulheres com hiperemese gravídica seja desconhecida.11

Alguns autores sugerem que sejam pesquisados três sinais de advertência para o desenvolvimento de transtornos alimentares na gravidez: ausência de ganho ponderal em duas visitas consecutivas no segundo trimestre da gestação, história pregressa de transtorno alimentar e hiperemese gravídica.10 Estando presentes, deve-se investigar ativamente os hábitos alimentares das pacientes.

A seguir, relata-se o caso de uma paciente que desenvolve anorexia nervosa durante a primeira gestação.

Apresentação

Identificação

M., 18 anos, solteira, branca, primeiro grau completo, católica, desempregada, internada na Maternidade do Hospital das Clínicas da UFMG em 14/7/1999.

História da moléstia atual

Paciente encaminhada pelo Pré-Natal de Alto Risco com gestação de 22 semanas, quadro de desnutrição (peso: 37,5 kg, altura: 1,53 m, índice de massa corporal IMC: 16,0 Kg/m2; IMC corrigido para peso estimado do concepto:12 14,3 Kg/m2) e dificuldade para deambular. Dois meses antes, ficara internada em outro serviço por ameaça de abortamento. Nos dois primeiros meses de gestação, havia apresentado hiperemese gravídica e quadro comportamental descrito como puerilidade, medo intenso de morrer e redução de ingesta oral.

História pregressa

Sem antecedentes pessoais de doenças psiquiátricas ou clínicas. Descrita por familiares como dinâmica, inteligente e sociável. Havia três anos que tinha se submetido a dietas e exercícios aeróbicos de forma esporádica, sem perda efetiva de peso. No período imediatamente anterior à gravidez, pesava 48,5 kg (IMC: 20,7 Kg/m2). A gravidez não fora planejada, mas aceita pela família e pelo namorado.

História familiar

Pai com abuso de álcool.

Propedêutica laboratorial

Alteração apenas no nível de albumina sérica: 3,0 g/dl (referência: 3,5-5,0). Ultra-sonografia obstétrica, realizada de modo seriado ao longo da internação, mostrou sempre gestação eutópica simples, correspondendo à idade gestacional pela média dos parâmetros ecográficos, com peso fetal no percentil 50.

Exame psiquiátrico

Paciente caquética, com tremores em extremidades de membros superiores, força e reflexos tendíneos globalmente diminuídos. Embora não recusasse atendimento psiquiátrico, assumia postura indiferente, ora deitada no leito sob o lençol, ora entretida com sacolas de roupas e livros de auto-ajuda. O descuido pessoal era evidente, com cabelos oleosos e despenteados, roupas desalinhadas. Falava em tom baixo, voz rouca e monótona, desenvolvendo discurso evasivo e oligotemático ao justificar toda sua condição pelo fato de estar fora de casa e longe da própria mãe. Apresentava consciência clara, hipotenacidade, questionável comprometimento das memórias de evocação e fixação, além de humor deprimido.

Evitava responder determinadas perguntas ou conferia respostas contraditórias, principalmente sobre a condição pessoal, o que dificultava o acompanhamento de seu relato. Quando confrontada com a contradição das respostas, justificava estar "com a cabeça muito fraca, com bloqueio" e ansiosa por estar fora de casa. Afirmava também que o apetite estava "muito grande" e que, se não comia, era porque a comida do hospital não era tão boa quanto a de sua casa. Questionada sobre o emagrecimento, concordava que perdera apenas três quilos, mas que sempre fora magra e que aquele era o "peso ideal". Não demonstrava qualquer preocupação com a própria condição de saúde.

Evolução

Após algumas entrevistas, diante da confirmação de quadro depressivo maior associado, iniciou-se imipramina, com progressão de dose até 75 mg/dia. Como a paciente apresentava baixíssima ingesta alimentar (<800 Kcal/dia), subvertia as recomendações de ingesta oral e já demonstrava sinais de deformidades músculo-tendíneas, a equipe de suporte nutricional optou por sondá-la e iniciar dieta enteral (2.000 kcal/dia).

Aparentemente, a paciente aceitava as argumentações da equipe sobre a importância da dieta enteral. Todavia, foi surpreendida em várias ocasiões drenando a sonda nasoentérica com uma seringa ou jogando alimentos pela janela do quarto. Outras vezes, restos alimentares em putrefação foram encontrados em seu armário.

Evoluiu sem alteração do quadro, permanecendo ansiosa, pouco implicada com a própria condição de saúde, com humor depressivo, condicionando sua melhora ao retorno para casa.

Após 54 dias de internação, optou-se pela alta hospitalar em uso de imipramina e com dieta enteral. Conseguira ganho de 4 kg de peso (41,5 kg), com aumento na albumina sérica de 3,0 g/dl para 3,6 g/dl.

Dez dias após a alta hospitalar, a paciente retornou ao hospital em trabalho de parto prematuro (32 semanas). Após o parto, não foi ao berçário visitar o filho, que nascera em boas condições, com peso de 1.830 gramas. Justificava estar muito fraca e com câimbras. Passou a aceitar a dieta oral com maior facilidade.

Quatro semanas após o parto, ainda em uso de antidepressivo, retornou para acompanhamento psiquiátrico. Amamentava o filho, cuidando dele com auxílio da mãe. Dizia estar bem, desejando esquecer o que acontecera no hospital. Não conseguia explicar os comportamentos assumidos, desejando retornar ao peso anterior. Estava com 41 kg de peso (IMC:17,5 Kg/m2).

Abandonou o tratamento psiquiátrico por morar em outra cidade e ter dificuldades financeiras para deslocamento. Estabelecemos novo contato após 2 anos. Não trabalhou ou namorou no período e dividiu com a mãe os cuidados com o filho. Não mais demonstrou comportamentos anoréxicos, exceto redução da ingesta alimentar, limitando-se a duas refeições por dia, almoço e jantar. Também não apresentou sintomas depressivos ou ansiosos. Está pesando 44 kg (IMC: 18,8 Kg/m2), deambulando normalmente. Foi encaminhada novamente para acompanhamento psiquiátrico por interesse próprio.

DISCUSSÃO

O caso mostra uma jovem que, após o desenvolvimento de hiperemese gravídica no início da gestação, assume comportamento característico de anorexia nervosa. Além de recusar alimentação, mesmo ciente dos riscos para a gravidez, apresentava distorção da imagem corporal. Observou-se inicialmente perda ponderal de 11 kg em relação ao peso pré-gestação (quando, para a idade gestacional, seria esperado ganho médio de 4 kg12), e IMC compatível com critérios para anorexia nervosa (<17,5 Kg/m2 conforme CID 109).

É possível que a paciente já apresentasse síndrome parcial de anorexia antes da gravidez. Além disso, mudanças psicológicas ou biológicas relacionadas à gravidez (como alteração da percepção da imagem corporal, autonomia, sexualidade, ganho de peso) poderiam ter contribuído para a deflagração do quadro típico de anorexia nervosa.1 Em estudo com 140 mulheres com diagnóstico prévio de anorexia, nove engravidaram durante um quadro ativo da doença; destas, duas tiveram o início dos sintomas anoréxicos durante a gravidez.13

A paciente apresentou também hiperemese gravídica, ameaça de abortamento e parto prematuro, complicações freqüentes da anorexia durante a gravidez.1,2 A criança nasceu com baixo peso como ocorre comumente com filhos de anoréxicas.4 No período pós-parto, demonstrava negligência com o filho, delegando à avó os cuidados de maternagem. Talvez isso seja explicado pelo distanciamento afetivo que ocorre nos quadros de anorexia.14 Esse comprometimento afetivo pode estar associado à anorexia em si ou às alterações de cognição e humor conseqüentes à desnutrição.15 Infelizmente, não houve acompanhamento posterior que caracterizasse melhor tal comportamento.

No período posterior à gravidez, não mais apresentou quadro de anorexia nervosa, embora ainda mantivesse restrições alimentares. A literatura cita que 30% das pacientes recuperam-se de um episódio mantendo sintomas residuais.14 Estes são de gravidade variável e podem piorar ou melhorar no longo prazo. Além disso, pacientes recuperadas de anorexia podem ter expressividade emocional e espontaneidade social reduzidas e uma inclinação para querer ser magra.

Assim, a ocorrência associada de anorexia nervosa e gravidez, embora pouco usual, deve ser reconhecida porque se reveste de grande potencial mórbido para a gestação e para o feto.

Correspondência:

Fabiano Gonçalves Nery

Rua Sergipe, 67/1502 Funcionários.

30130-170 Belo Horizonte, MG, Brasil

Tel.: (0xx31) 3273-2438

E-mail: fgnery@uol.com.br

Fonte de financiamento e conflito de interesse inexistentes.

Recebido em 19/9/2001. Revisado em 8/1 e 27/3/2002. Aceito em 30/4/2002.

  • 1. Fahy T, O'Donoghue G. Eating disorders in pregnancy. Psychol Med 1991;21:577-80.
  • 2. Stewart DE. Reproductive functions in eating disorders. Ann Med 1992;24:287-91.
  • 3. Bulik CM, Sullivan PF, Fear JL, Pickering A, Dawn A, McCullin M. Fertility and reproduction in women with anorexia nervosa: a controlled study. J Clin Psychiatry 1999;60:130-5.
  • 4. Treasure JL, Russell GF. Intrauterine growth and neonatal weight gain in babies of women with anorexia nervosa. Br Med J 1988;296:1038-9.
  • 5. Shisslak C, Crago M, Estes LS. The spectrum of eating disturbances. Int J Eat Disord 1995;18:209-19.
  • 6. Garfinkel PE. Eating disorders. In: Kaplan HI, Saddock BJ, editors. Comprehensive textbook of psychiatry. 6th ed. Baltimore: Williams & Wilkins; 1995.
  • 7. Sharp CW, Freeman PL. The medical complications of anorexia nervosa. Br J Psychiatry 1993;162:452-62.
  • 8
    American Psychiatry Association. Diagnostic and Statistical manual of mental disorders. 4th ed. Washington (DC): American Psychiatry Association; 1994.
  • 9
    World Health Organization. The ICD-10 classification of mental and behavioral disorders. Geneva: World Health Organization; 1992.
  • 10. Franko DL, Spurrel EB. Detection and management of eating disorders during pregnancy. Obst Gynecol 2000;95:942-6.
  • 11. Lingam R, McCluskey S. Eating disorders associated with hyperemesis gravidarum. J Psychosom Res 1996;3:231-4.
  • 12. Rezende J, Montenegro CAB. Obstetrícia fundamental. 5ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1987.
  • 13. Brinch M, Isager T, Tolstrup K. Anorexia nervosa and motherhood: reproduction pattern and mothering behavior of 50 women. Acta Psychiatr Scand 1988;77:611-7.
  • 14. Kaye W, Gendall K, Srober M. Serotonin neuronal function and selective serotonin reuptake inhibitor treatment in anorexia and bulimia nervosa. Biol Psichiatry 1998;44:825-38.
  • 15. Garrow J. Underfeeding and overfeeding and their clinical consequences. Proc Nutr Soc 1976;35:363-8.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2002
  • Data do Fascículo
    Out 2002

Histórico

  • Aceito
    30 Abr 2002
  • Revisado
    27 Mar 2002
  • Recebido
    19 Set 2001
Associação Brasileira de Psiquiatria Rua Pedro de Toledo, 967 - casa 1, 04039-032 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5081-6799, Fax: +55 11 3384-6799, Fax: +55 11 5579-6210 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: editorial@abp.org.br