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O migrante de pesca e o espaço urbano

The fishery migrant and the urban space

Resumos

Neste trabalho, compreendo que a migração, além de uma mudança geográfica, implica também em mudança cultural. O objetivo do artigo, portanto, é verificar quais traços culturais permanecem e/ou são redefinidos pelos migrantes na cidade e qual significado possuem em seu cotidiano. Utilizo como metodologia o trabalho de campo com observação direta, entrevistas e histórias de vida. Como instrumento de pesquisa, utilizo-me dos relatos dos migrantes para o entendimento das relações e processos nesse campo. Os migrantes em estudo ainda utilizam as relações de reciprocidade como princípio social que reforça a ajuda mútua e a solidariedade no trabalho da pesca e dificuldades emocionais, bem como o uso de plantas medicinais e a pajelança eficaz no tratamento de doenças como febre, gripe e mau olhado.

Pesca artesanal; Migração; Espaço urbano


In this paper, we understand that the process of migration, beyond geographic change, also implies cultural change. The aim of the paper therefore, is to verify which cultural traces remain and/or are redefined by the migrants in the city and which meaning they possess in their daily life. The methodological path includes fieldwork and direct observations, interviews and telling of life stories. As a research instrument, I use the stories of the migrants as an understanding of the relations and processes described and collected. The migrants in study make frequent use of reciprocity relations as the social principle that strengthens the mutual aid and solidarity in the work of fishing, in emotional difficulties, as well as in the ceremonial use of medicinal plants in the treatment of several kinds of minor illnesses such as fever and cold.

Artisan fishing; Migration; Urban space


ARTIGOS

O migrante de pesca e o espaço urbano

The fishery migrant and the urban space

Marta Goreth Marinho Lima

Secretaria Executiva de Educação do Pará. Belém, Pará, Brasil (orefth@bol.com.br)

RESUMO

Neste trabalho, compreendo que a migração, além de uma mudança geográfica, implica também em mudança cultural. O objetivo do artigo, portanto, é verificar quais traços culturais permanecem e/ou são redefinidos pelos migrantes na cidade e qual significado possuem em seu cotidiano. Utilizo como metodologia o trabalho de campo com observação direta, entrevistas e histórias de vida. Como instrumento de pesquisa, utilizo-me dos relatos dos migrantes para o entendimento das relações e processos nesse campo. Os migrantes em estudo ainda utilizam as relações de reciprocidade como princípio social que reforça a ajuda mútua e a solidariedade no trabalho da pesca e dificuldades emocionais, bem como o uso de plantas medicinais e a pajelança eficaz no tratamento de doenças como febre, gripe e mau olhado.

Palavras-chave: Pesca artesanal, Migração, Espaço urbano.

ABSTRACT

In this paper, we understand that the process of migration, beyond geographic change, also implies cultural change. The aim of the paper therefore, is to verify which cultural traces remain and/or are redefined by the migrants in the city and which meaning they possess in their daily life. The methodological path includes fieldwork and direct observations, interviews and telling of life stories. As a research instrument, I use the stories of the migrants as an understanding of the relations and processes described and collected. The migrants in study make frequent use of reciprocity relations as the social principle that strengthens the mutual aid and solidarity in the work of fishing, in emotional difficulties, as well as in the ceremonial use of medicinal plants in the treatment of several kinds of minor illnesses such as fever and cold.

Keywords: Artisan fishing, Migration, Urban space.

INTRODUÇÃO

Este artigo analisa o comportamento do migrante de pesca após a migração rural-urbana, ou seja, investiga o processo de inserção do migrante no espaço urbano. Os dados aqui dispostos datam de 1998 e foram realizados no contexto do Projeto Recursos Naturais e Antropologia das Sociedades Marítimas, Ribeirinhas e Estuarinas da Amazônia: Relações do Homem com o seu Meio Ambiente (RENAS).

A metodologia deste trabalho é baseada no método etnográfico, o qual nos possibilitou a análise antropológica dos dados coletados em campo. As técnicas empregadas nesta pesquisa constituem-se de levantamento bibliográfico e entrevistas abertas que foram aplicadas a 15 informantes e suas respectivas famílias. Histórias de vida também foram utilizadas, por serem documentos dos quais se pode apreender a concepção de mundo do informante. O trabalho de campo foi realizado na ocupação de Cubatão, localizada no distrito de Icoaraci, ao norte da área metropolitana de Belém, no estado do Pará.

Migração no âmbito da pesca

Para a análise da inserção do migrante ao espaço urbano, os estudos de Cândido (1971), Durhan (1973), Menezes (1976) e Oliven (1987) norteiam este trabalho.

Para Durhan, a expansão do sistema de industrialização e a urbanização rompem o isolamento das comunidades tradicionais e originam a crise do seu sistema produtivo rural, da estrutura tradicional da autoridade, da negação de velhos valores e a adoção de novos padrões de comportamento. Transformações que tendem a se intensificar ainda mais quando há a migração para a cidade.

Durante o século XX no Brasil, o ritmo acelerado do processo de urbanização aponta para transformações socioeconômicas profundas que se encontram relacionadas ao processo de desenvolvimento do país. A exemplo, menciona-se a 'valorização da Amazônia', que inspirava os planos de desenvolvimento para a região a partir da metade da década de 1960 e início dos anos de 1970, através da intensificação da estratégia de integração da região à economia nacional e internacional. Com a nova política de desenvolvimento regional, o extrativismo vegetal, a pesca e a pequena agricultura sofreram modificações movidas pelas políticas de transporte, centralizadas na abertura de estradas, e pela política de incentivos fiscais (Loureiro, 2001; Pará, 2000; Mello, 1993).

As comunidades pesqueiras artesanais no estado do Pará não deixaram de sofrer o impacto dessas mudanças, pois a industrialização do setor de pesca começou a utilizar áreas que, até então, eram de sua exclusividade. O aumento da pressão sobre o potencial dos recursos pesqueiros com a abertura de estradas, por sua vez, criou uma dependência pescador-marreteiro na comercialização de sua produção artesanal; e com a reduzida capacidade de atendimento da rede estatal de serviços básicos destas localidades e a 'turistificação', desencadeia-se um intenso processo migratório movido pelas perspectivas de melhora de vida nos centros urbanos da Amazônia (Santana, 2002; Nascimento, 1984, 1995; Loureiro, 1985).

O estudo sobre a migração em comunidades de pesca na região tem sido pouco explorado, destacando-se os trabalhos de Quaresma (2000), Maués e Maués (1990), Furtado (1984) e Nascimento (1984), os quais abordam o deslocamento sob o ângulo da saída e demonstram que a mudança de pescadores e mulheres jovens para estudar ou engajar-se em empregos e subempregos na cidade enfraquece a produção e desequilibra a pirâmide etária da comunidade, além de empobrecer as relações sociais. Pela complexidade do problema, pretende-se abordá-lo sob o 'ângulo da chegada', cuja análise se reflete no comportamento do migrante e nas transformações por que passa na cidade.

Ao migrar para a cidade, os pescadores mudam de um universo sociocultural menos complexo e se integram a sistemas mais amplos e diferenciados, sofrendo transformações em seus modos de vida e padrões de comportamentos originais, passíveis de serem analisados. Esses padrões representam uma forma particular de ajustamento a um contexto geográfico-sociocultural determinado e precisam ser substituídos por outros que permitam uma adaptação satisfatória às condições urbanas de vida (Durhan, 1973). Mas, mesmo que o deslocamento rural-urbano implique em reformulação de identidades, ainda que de maneira não global, equivale a uma nova socialização, que exige a aquisição de conhecimentos imprescindível para que o migrante possa participar de um sistema produtivo diferenciado do meio rural (Menezes,1976).

Cândido (1971), em 'Parceiros do Rio Bonito', ao abordar o caso de migrantes que se dirigiram para a cidade, diz que o processo de inserção urbana apresenta-se ao homem rústico propondo ou impondo certos traços de cultura material e imaterial, os quais podem ser aceitos ou rejeitados totalmente; impõe novo ritmo de trabalho, novas relações ecológicas, certos bens manufaturados e propõe a racionalidade do orçamento, o abandono das crenças tradicionais, a individualização do trabalho, a passagem à vida urbana. Este processo de adaptação, segundo Oliven (1987), é heterogêneo entre os migrantes devido à variedade de situações com que o indivíduo se depara, na família, no trabalho e na religião. Situações que serão abordadas neste trabalho.

Espaço urbano

A análise da adaptação ou inserção do migrante à cidade requer considerações sobre o espaço urbano. Santos (1988), ao definir espaço geográfico como "...um conjunto indissociável de que participam, de um lado certo arranjo de objetos geográficos, naturais e sociais, e, de outro, a sociedade em movimento", demonstra que esta relação entre os objetos e a sociedade só é possível através do trabalho humano, que cria o espaço geográfico e, por conseguinte, a produção deste, pois só será produzido pelo homem diante dos objetos que estão em seu entorno e/ou daqueles que pode lançar mão.

A relação entre os objetos e a sociedade envolve, segundo Carl Sauer (apud Santos, 1988), uma relação cultural, que também é política e técnica. Estas relações tendem a marcar as diferenciações do território habitado pelo homem: quanto maior for o grau tecnológico empregado em um espaço, mais diferenciados e funcionais se tornarão seus objetos geográficos e as suas relações sociais. Esse império da cultura e da técnica sobre o espaço torna este espaço e o próprio homem artificiais, cada vez mais distantes do meio natural. Ao que Santos (apud Lima, 1988b, p. 13) menciona:

Em eras bem remotas, os instrumentos de trabalho eram um prolongamento do homem, mas á medida que o tempo passa, vão transformando-se em prolongamento da terra, próteses ou acréscimos à própria natureza, duráveis ou não. Os instrumentos de trabalho imóveis tendem a predominar sobre os móveis e a serem a condição de uso destes. Estradas, edifícios, pontes, portos, depósitos etc. São acréscimos á natureza sem os quais a produção é impossível. A cidade é o melhor exemplo dessas adições ao natural.

Percebe-se que a produção do espaço urbano está voltada para a produção de mercadorias e esta para a produção do espaço urbano, o qual só poderá ser consumido através do capital. Tal idéia não é tão simples. Segundo Corrêa (1989), em sua análise sobre o espaço urbano, o espaço é fragmentado pelos usos diferenciados do centro da cidade, áreas industriais e áreas residenciais distintas entre si, que revelam nestas construções as diferentes classes sociais. Estes espaços, contudo, articulam-se através da circulação de pessoas e mercadorias, ainda que de intensidade variável. O espaço urbano assume o papel de condicionante da sociedade através do papel das obras fixadas pelo homem e acumuladas através do tempo. Na cidade, ainda vivem as diversas classes sociais, as quais se reproduzem segundo as suas crenças e valores projetados nas formas espaciais: ruas especiais, monumentos etc. que assumem dimensão simbólica.

Corrêa (1989), ao definir o espaço urbano como um espaço "fragmentado e articulado, reflexo e condicionante social, um conjunto de símbolos e campo de lutas", fornece o elo necessário para se chegar à importância dos objetos na formação espacial. As formas espaciais ou objetos fixos ou fixados no espaço materializam as relações sociais, sem as quais não teriam existência, função simbólica ou finalidade alguma, ou seja, o homem está rodeado de objetos, produto de sua própria atividade, que contêm um significado e dimensão simbólica prontos a serem consumidos.

Para Baudrillard (1968), o que se consome não são os objetos, mas sim a relação que deles provém, "a um só tempo significada e ausente, incluída e excluída". Ainda segundo este autor, em 'O Sistema de Objetos', o consumo é um modo ativo de relação (não apenas com os objetos, mas com a coletividade e com o mundo), um modo de atividade sistemática e de resposta global no qual se funda todo nosso sistema cultural.

Assim, temos em mente que os objetos existentes e produzidos no espaço (seja urbano ou rural) - por possuírem um valor de troca-signo ou, mais precisamente, um significado - possibilitam as relações sociais. Uma vez que as formas espaciais ou objetos existentes condicionam e refletem a sociedade, para uma leitura de sua própria cultura e visão de mundo que diferencia porções do território habitado pelo homem, traçamos os seguintes questionamentos para investigação: o que deverá ocorrer com o indivíduo (no caso do migrante) que não souber lidar com os objetos que não lhe são próprios ou que para ele não tenham nenhum significado? Como, então, os migrantes se ajustam neste espaço que vai lhe propor e impor novas relações diferenciais ao seu espaço anterior? Para responder a estas perguntas, fez-se necessário dividir o trabalho em dois momentos. Primeiramente, far-se-á a caracterização da situação anterior à migração dos pescadores artesanais, em relação à sua organização socioespacial. No segundo momento, explicitarão as motivações para migrar e como o migrante processa a sua inserção ao espaço urbano e passa a se relacionar com um modo de produção distinto ao do meio de origem, procurando demonstrar que traços permanecem ou são rejeitados em sua organização social e de trabalho.

Localização e organização espacial do pescador antes da migração

Os pescadores em estudo são oriundos dos povoados de Anuerá, Boca Pequena, Urubuquara e Rio da Sé, e pertencem ao município de Cachoeira do Arari, localizados na parte leste da ilha do Marajó (Figura 1). Suas terras são inundadas pelos movimentos diários de maré, caracterizando-se como ecossistema de várzea estuarina, que se alaga duas vezes por dia ao invés de uma vez por ano, como ocorre nas várzeas do Alto e Médio Amazonas, no entanto, possuem solos menos férteis que estas. Estes fatores limitam a produção agrícola e favorecem a extração de produtos florestais e recursos aquáticos (Lima, 1998a).


As habitações dos povoados ao longo da margem dos rios são construídas de madeira, tipo palafitas, cobertas com telhas e rodeadas de uma vegetação com a predominância do açaí (Euterpe oleracea), contendo algumas árvores frutíferas como o coqueiro (Coco nucifera), o limoeiro (Citrus ssp. ), a goiabeira (Psium guajava L. ) etc. Nas comunidades1 1 Mesmo termo usado por Furtado (1993) para designar o conjunto de sítios, povoados e/ou vilas. estudadas, os limites da propriedade se estabelecem pela tradição em respeito às relações de vizinhança e parentesco, valorizadas em sua estrutura social que reforça a organização espacial.

A igreja e a escola são os centros de sociabilidade nestes locais. Na igreja, realizam-se anualmente as festas de 'santos'; na escola, leciona-se até a 4ª série do ensino fundamental. Luz elétrica e água encanada não existem nestes povoados. Estes, muitas vezes, constituem-se somente de parentes e os vizinhos são muito importantes porque se auxiliam mutuamente. Esta ajuda mútua efetiva-se em vários momentos da vida cotidiana, sobretudo nos casos ligados às incertezas do resultado da pescaria, concretizando-se na forma de alimentos e sendo um importante fator na sobrevivência da comunidade. Mas a ajuda mútua não se esgota aí, estende-se ao trabalho (de roças e construção de cercas) e à assistência em caso de enfermidade ou luto.

Os povoados e vilas, em sua maior parte, são entrecortados por igarapés, furos e rios. A circulação das pessoas das comunidades é feita por canoas ou longas distâncias percorridas a pé. Esta realidade geográfica torna as visitas ocasionais, a algum conhecido ou parente próximo para conversar, significativas para este modo de vida.

Na comunidade, é comum entre os pescadores tratar-se por apelidos que são 'nomes de pesca', recebidos no cotidiano de suas atividades pesqueiras ou na infância. Sem conhecer estes nomes de pesca, é difícil o pesquisador localizar-se no trabalho de campo. A especificidade do trabalho pesqueiro permite grande mobilidade espacial aos pescadores. Por vilas circunvizinhas, municípios e capital do estado, suas passagens são freqüentes para comercializar o peixe e realizar outras atividades, o que lhes possibilita, por um lado, estabelecer relações sociais com os residentes destas localidades, por quem são facilmente identificados, e por outro, o contato com áreas mais urbanizadas e diferentes de suas comunidades. Algumas vezes, o contato com áreas urbanas pode favorecer a tomada de decisão de estabelecer residência permanente nestas, originando a migração.

A família

A família é base da organização do parentesco nas áreas pesqueiras e também a base da organização do trabalho. As atividades giram em torno da pesca, combinada à coleta do açaí e camarão e agricultura de subsistência. A combinação do aproveitamento de recursos da terra e das águas é característica da economia cabocla, legado indígena que lhe possibilita a subsistência e fixação na várzea. Essas atividades contam com marcante divisão sexual do trabalho.

A atividade de pesca artesanal é realizada o ano todo pelos homens, a qual se constitui como principal atividade econômica dessa população, conjugada à extração de açaí durante os meses de agosto a dezembro. Os homens também fazem 'roças', onde plantam mandioca (Manihot esculenta), e 'roçados', onde plantam feijão (Phaseolus ssp.), jerimum (Cururbitaceae), banana (Musa ssp.), milho (Zea mais), entre outras espécies.

As mulheres, responsáveis pela criação dos filhos e manutenção da casa, ocupam-se no preparo do açaí para o consumo da família e constroem canteiros suspensos de plantas medicinais, usadas no tratamento de doenças do grupo doméstico. Com relação à pesca, suas tarefas convergem em fazer a isca para a captura do camarão e a confecção de paneiros.

Outra atividade importante na várzea entre as famílias é a criação de pequenos animais como patos, galinhas e porcos. A criação de porcos é uma das atividades básicas no manejo da várzea, constituindo uma espécie de poupança, já que, dada a liquidez, podem ser vendidos a qualquer momento na comunidade. Sua importância é maior durante o 'inverno', quando escasseiam os produtos da pescaria (Hiraoka; Rodrigues, 1997; Lima, 1998c).

A leitura sobre a presença da mulher no espaço da produção pesqueira (Alencar, 1993; Nascimento; Quaresma, 2002) atesta que o gênero feminino tem pouca visibilidade. A construção própria do universo da pesca é marcada pelas relações que estabelecem dois espaços distintos: terra e água. Estas relações estabelecidas entre os gêneros na organização do trabalho na pesca concorrem para um modelo de divisão sexual da produção e dos espaços. O universo das águas aparece como o espaço masculino, onde ocorrem as atividades mais importantes para a economia do grupo doméstico; e no espaço de terra as atividades femininas são predominantes.

A divisão do trabalho nos povoados distingue bem a apropriação dos espaços da produção e o valor destinado a eles. Mesmo que a mulher realize a captura do camarão e inúmeras outras atividades como cuidar dos filhos, ocupar-se da agricultura, da criação de animais e da venda destes para "defender a despesa da casa", estas atividades são percebidas como rotineiras e desgastantes pelo esforço físico empregado, mas as mulheres não as valorizam como trabalho, percebendo o homem como o personagem principal na subsistência do grupo doméstico.

Como é tradicional em comunidades pesqueiras, a criança recebe cedo dos pais o aprendizado de funções que futuramente irá exercer dentro do grupo doméstico. Enquanto aos meninos cabe o exercício da pesca, as meninas realizam os serviços dentro de casa, vindo a substituir a mãe em atividades como o cuidado com os irmãos menores. Estas recebem a mesma herança da mãe, na falta de reconhecimento ao realizar tarefas vistas como trabalho de menor importância (Cardoso, 2002).

A pesca

Os pescadores em estudo são indivíduos que, ao exercerem a pesca combinada a outras atividades como o cultivo de roçados e a coleta de produtos florestais, assumem neste contexto a classificação de 'pescadores polivalentes' (Furtado, 1993).

No 'verão', os homens realizam a captura do peixe, do camarão e a extração do açaí. No 'inverno', o peixe tende a desaparecer pelas mudanças ambientais, como o nível da salinidade das águas, e o pescador desloca-se para outras áreas pesqueiras do estuário amazônico, a região do Salgado. Dentre as modalidades de pesca, os pescadores desenvolvem a pesca de rede, de matapi e a de espinhel ou linha. A habilidade em realizar várias modalidades de captura, conhecer os ventos, as correntes marítimas, diversas espécies de peixes, saber a hora adequada de efetivar a pescaria e puxar a rede exige domínio técnico e esforço físico do pescador. Características fundamentadas no aprendizado prático adquirido entre seus pares e o universo das águas, a pesca artesanal realizada com tecnologia simples vem secularmente abastecendo com eficiência a família dos pescadores e os centros urbanos do interior e da Capital, contestando a leitura de alguns textos produzidos desde o século passado, referindo-se à pesca como atividade fácil e de baixa produtividade (Lima, 2002; Furtado, 1993).

A produção pesqueira, ao combinar auto-consumo e comercialização, insere o pescador em uma economia de mercado e permite que ele não esteja totalmente ligado a ela, possibilitando certa autonomia ao seu sistema produtivo (Maués; Maués, 1990). Para o recrutamento da tripulação, as relações de parentesco, vizinhança e amizade são usadas como critério, embora seja relevante ter 'responsabilidade' para a execução das tarefas no processo produtivo e se constatar se a "pessoa era boa de serviço". Através do sistema de parceria, a produção é dividida entre os tripulantes de acordo com a participação de cada pescador na propriedade e no trabalho. No plano da comercialização, os pescadores, pela dependência da intermediação de seu produto, são os que menos se beneficiam com a produção.

Os seres mágicos e a pajelança

A maioria dos entrevistados é católica e relata que cultua os santos por ocasião das festas anuais que ocorrem em suas vilas. A crença do caboclo amazônico em seres sobrenaturais que habitam a mata e as águas conjugadas, assim como a crença nos santos e outras, são partes integrantes da religião cabocla (Galvão, 1955). Nestas representações, os santos são benevolentes e os seres sobrenaturais são geralmente maléficos.

A relação com os santos é definida a partir da maior intimidade entre eles e os fiéis, sendo o santo igual a uma pessoa comum que morreu e zela pelos que ainda estão vivos, e geralmente a eles é pedido cura e proteção. Nas situações sobrenaturais, que resultam da atuação de outras entidades que habitam a floresta e o fundo dos rios (Figueredo, 1994), crêem na intervenção do boto, matintaperera e outros. Estas crenças têm suas raízes na herança indígena e povoam o imaginário dos pescadores em estudo. O reflexo deste imaginário se revela na vida prática dos pescadores através da relação ética e de respeito com o meio ambiente, contribuindo para a sua conservação, evitando coleta indiscriminada e atitudes que o perturbem.

O uso de remédios caseiros à base de plantas medicinais destina-se ao tratamento de doenças mais comuns. Em casos mais graves, recorrem a um especialista no uso de plantas medicinais, que trata tanto de doenças naturais como sobrenaturais (panema, febres e feitiçarias), utilizando rituais de pajelança, como é tradicionalmente encontrado nas populações caboclas da Amazônia (Wagley, 1957; Galvão, 1955). Quando a atividade de pesca não vai bem, os pescadores recorrem à prática da pajelança para a cura do poder mágico e negativo da panema, que incapacita o pescador e os objetos de sua ação.

Motivações da migração e a inserção do migrante ao espaço urbano

Migrar para a cidade significa superar, por um lado, a reduzida capacidade de atendimento da rede estatal de serviços básicos de sua comunidade; e, por outro, superar as dificuldades relacionadas à atividade pesqueira: a informalidade do trabalho da pesca sem carteira assinada, as incertezas da produção e o baixo rendimento estimulam os pescadores a se dirigirem para a capital do estado.

A maioria dos pescadores transferiu-se diretamente de suas vilas para Belém em razão de já terem parentes residindo neste local. O parentesco como base de fixação do migrante à cidade é fundamental, pois no momento de sua chegada são os parentes que fornecem moradia e indicam como conseguir emprego. Esta prestação de informações e ajuda econômica ao migrante inicia-os no processo de ajustamento urbano e contribui para o êxito da migração, porque ainda estão sendo favorecidos por relações que eram comuns às relações de parentesco e amizade.

Em prosseguimento à análise da inserção do migrante ao espaço urbano, algumas perguntas nortearão as reflexões: que imagem ou noção tem o migrante da cidade e como este indivíduo constrói tal noção? Qual expectativa tem em relação à cidade? No discurso, resgatou-se que suas percepções têm caráter de contraste com sua experiência na comunidade de origem. Observa-se que muitas das expectativas que levaram à tomada de decisão para a migração foram confirmadas na nova situação, com afirmações como "lá não tem acesso a hospital, lugar pequeno, o comércio é longe"; ou ainda, "Belém é mais alegre", "lá não tem movimento", "aqui já tinha uma idéia de conseguir dinheiro mais fácil, e até aqui tá acontecendo, não dá pra enricar, mas não dá pra morrer de fome".

Observa-se que os serviços públicos presentes na cidade constituem fatores importantes no balanço do modo de vida urbano. Saúde, educação, iluminação pública, transporte, áreas de lazer, entre outros, não encontrados em suas localidade fixam o migrante à nova realidade. Viver na cidade para eles é um meio de ganhar dinheiro e, sobretudo, sobreviver às adversidades de vida anteriores à migração. É por meio destas noções aparentes de cidade que o migrante encoraja-se a mudar de seu local de origem, na esperança de poder usufruir destes bens. Mas este saldo positivo convive contraditoriamente com a sensação de perda do controle sobre seu tempo, que no mundo urbano é o cronometrado pelo relógio, contrapondo-se ao "tempo natural" (Nascimento, 1995), que implica numa articulação mais harmônica entre homem e natureza em uma sociabilidade mais rica.

"Ruim aqui é que a gente sai pra conversar, ou ir pra casa de um amigo, já dizem, esse cara não tem o que fazer [...] lá na várzea, beira da praia andava pelo mato. Agora, depois que chego da pesca fico em casa e não saio pra nada".

Nota-se, portanto, que o modo de vida urbana produz idéias, comportamentos, valores, conhecimentos, culturas diferenciados das áreas tradicionais de pesca destes migrantes, padrões culturais aos quais terão gradativamente que se adequar. Observa-se que a cidade impõe novas formas de relações sociais, não há para onde sair, andar, o pescador está restrito a sua casa. As conversas tão fluidas no meio rural se tornam no meio urbano um 'desperdício de tempo', rotulando-se de preguiçosos os que tais hábitos cultivam.

Os migrantes em suas comunidades eram conhecidos e reconhecidos sem esforço pela atividade de pesca e através de apelidos. No mundo urbano passam como anônimos. Todas as relações que tinham - morando em vizinhança, auxiliando seus amigos e parentes no trabalho pesqueiro, em casos de doenças etc. - não são mais referenciais valorizados na cidade.

A inserção do migrante na cidade impõe o enfrentamento de novos objetos que invocam novos significados e novas relações sociais que afetam sua identidade. Como a identidade resulta de uma produção cultural, ela pode ser criada, preservada, extinta e transformada (Perez, 1989). Assim, nada impede o migrante de apreender os novos objetos e as relações que por eles se processam. Vale dizer que aprendizado exige tempo; assim, no processo de 'ajustamento' à cidade, o fator tempo será essencial para o migrante.

Considerando o poder disciplinador imposto pelas relações sociais de produção, que se materializa no corpo social dos que vivem no urbano, o ajustamento das relações de parentesco e vizinhança, bastante valorizadas no processo produtivo e em todos os campos da vida social do migrante, não se desestruturam ou desaparecem. O grupo pesquisado tende a preservar ou recriar tais relações em situação econômica desfavorável. É a partir do grupo de amigos e familiares que a cultura original do migrante adquire uma nova função a qual será acrescida outras, sendo possível reelaborar o seu sistema de ações e o seu estilo de vida anterior.

A imposição de consumo e de necessidade existentes na cidade faz parte da lógica da sobrevivência e reprodução do sistema de produção capitalista e da sobrevivência do indivíduo; se ele ainda sobrevive é porque o sistema tem necessidades de homens para que haja ordem cíclica e dominação social (Baudrillard, 1972). Assim, o usufruto da cidade exige de quem nela vive a subjugação às necessidades de reprodução do capital (Carlos, 1992). Diante disto, e reconhecendo que as necessidades são socialmente estabelecidas, o pescador migrante se vê capturado pelas necessidades de consumo na cidade.

Vivendo na periferia da cidade, os migrantes não conseguem conciliar a racionalidade rural com a da cidade, em que o aumento das necessidades - como vestuário, pagamento de inúmeras taxas referidas aos serviços públicos de água e luz, aquisição de bens de consumo (televisão, geladeira, fogão, cama entre outros) típicos do viver urbano - não corresponde às expectativas a curto e longo prazo, principalmente pela renda proveniente de suas atividades, já que estão realizando a atividade de pesca. Diante da aquisição de inúmeros objetos, as relações entre as pessoas passam pelas mercadorias e o homem que vive na cidade passa a ser avaliado pela quantidade e qualidade de mercadoria que possui. Logo, o migrante percebe que a facilidade urbana é uma 'miragem'. Fato demonstrado no relato a seguir.

"Ao vir para Belém, pensava em ficar numa boa! Eu tava na cidade e achava que tudo era pra mim, mas se eu não trabalhar ninguém me dá nada. Não tenho geladeira, colchão de cama, não tenho nada, eu pensava conseguir logo cedo. Pegava na beira um peixinho todo dia e ia se comendo, e aqui eu não tenho nada, só uma parte do aparelho de pesca. No interior eu tinha tudo, aqui tá meio aperriado, porque pago luz, pago água, mas não tô arrependido, porque ainda vou alcançar a minha vida".

O discurso dos objetos remete para objetivos sociais e para uma lógica social, neste sentido:

[...] através dos objetos, cada indivíduo e cada grupo procura o seu lugar numa ordem, procurando ao mesmo tempo forçar essa ordem conforme sua própria trajetória pessoal. Através dos objetos é uma sociedade estratificada que fala... certamente para colocar cada um no seu lugar. Numa palavra, sob o signo dos objetos, sob o selo da propriedade privada, é sempre de um processo social contínuo de valor que se trata. E os objetos são, também eles, sempre e em toda a parte, além de utensílios, os termos e a confissão deste processo social de valor (Baudrillard, 1972, p. 23).

Não é a toa, portanto, que, não possuindo objetos/mercadorias em quantidade, o migrante se sinta sem vida, desvalorizado, sem nada.

O novo território

Os pescadores residem em uma área de ocupação espontânea denominada Cubatão, cujas terras pertencem à União (terras de marinha) e a particulares, não havendo planejamento quanto à instalação dos equipamentos urbanos (abastecimento de água, iluminação elétrica e calçamento). A ocupação está assentada em área de várzea sob a influência das marés e grande parte das casas é do tipo palafitas. A presença da atividade pesqueira se evidencia pelas redes malhadeira, bóias, âncoras e o peixe comercializado na casa de alguns pescadores (Figura 2).


Apropriam-se de terras públicas ou privadas pela construção de suas casas ou pela aquisição, em sua maioria, de recibos registrados ou não em cartórios. Os pescadores, como os demais moradores, tornam-se 'agentes modeladores' (Corrêa, 1989), produzindo o seu próprio espaço à medida que melhoram gradativamente a área ocupada através de aterramentos e instalações improvisadas de abastecimento de energia elétrica e água encanada. Esta apropriação se dá como um meio de solucionar o problema da habitação e acesso à terra urbana.

Os migrantes, assim, enquadram-se na categoria de excluídos de equipamentos urbanos e melhores condições de habitação, registrado na forma de viver em 'quadrinho', o que significa dizer que vivem em espaço bastante reduzido se confrontado ao anteriormente ocupado; em comparação à amplitude da mata de várzea, o senso de liberdade é restringido na cidade.

Às proximidades da praia do Cruzeiro, as ruas estão dispostas de maneira irregular, as casas são próximas uma das outras e feitas de madeira. Não há pintura nas paredes externas nem no seu interior. Constituem-se de apenas dois a três compartimentos. Os migrantes, ao receberem em seus domicílios parentes vindos do interior, vão se aglutinando nos cômodos ou passam a morar nos fundos da casa do grupo já instalado na ocupação. Os móveis são raros, mas não falta a televisão, uma das fontes de lazer destas famílias que pouco saem para as festas realizadas às proximidades da praia (Figura 3).


Esta 'ocupação' está às margens do igarapé Tabocal, o qual serve de escoamento de materiais como tijolo, madeiras e também favorece os pescadores que vivem nesta localidade, pois, através dele, ligam-se ao furo do Maguari e chegam à baía do Guajará, de onde se dirigem para outras localidades para realizar a atividade de pesca (Figura 4).


Suas relações ecológicas não são as mesmas dos seus locais anteriores, que lhes possibilitava conciliar a atividade de pesca com a coleta e a pequena agricultura, passando à condição de pescadores citadinos ou monovalentes. Na cidade, dedicam integralmente seu tempo a esta atividade.

É necessário dizer que hoje os pescadores, ainda que recebendo muito pouco pelo trabalho que realizam na pesca, buscam a permanência das relações de ajuda mútua, seja ela econômica ou apoio emocional. Essa permanência na pesca dá-se pela resistência à imposição do sistema capitalista no mercado formal, decorrente do gerenciamento do trabalho no âmbito de sua estrutura produtiva: o controle do tempo de trabalho e rotinização das tarefas executadas, que sob o peso de uma rigorosa disciplina do 'tempo do relógio', para a maximização do lucro do empregador, difere do 'tempo natural', que determina as horas da atividade pesqueira. Tempo e espaço no âmbito da pesca artesanal estão articulados e fundamentam a lógica e a estrutura da produção. O ajustamento dos migrantes ao processo produtivo da cidade requer a perda das noções de 'igualdade', 'autonomia' e 'liberdade' (Maldonado, 1993). A continuidade da atividade pesqueira, recriando seu modo tradicional de vida, resgata a própria identidade na condição de pescador artesanal.

O processo produtivo na cidade

A mudança para a cidade propõe e impõe a substituição de uma vida organizada em bases pouco capitalistas, para uma outra mais organizada ao nível de mercado, em que é exigido do migrante conhecimento, atitudes e valores que serão necessários para o ajustamento satisfatório à atividade que deverá exercer.

Recém-chegados na capital do estado, os migrantes estão em idade produtiva para ingressarem no mercado formal de trabalho, mas, devido ao baixo nível de escolaridade, à falta de documentação e qualificação necessária, ficam à margem deste mercado, como se constata no Quadro 1.


Os migrantes mudam de ocupação com a alta rotatividade que caracteriza o mercado para trabalhadores de baixo nível de especialização e escolaridade: balconista, camareiro, feirante. Esta passagem por outras atividades pode ajudar no ajustamento do pescador às regras do trabalho formal.

Vejamos alguns casos. Elder hoje trabalha na pesca industrial; sonhava, antes de vir para Belém, trabalhar neste setor de pesca, mas, antes, trabalhou em balcão de um pequeno supermercado, depois ficou "enjoado de trabalhar em terra" e decidiu trabalhar na pesca industrial. Atualmente, diz que se sente preso em realizar a pesca industrial, porque permanece por volta de 60 dias pescando e quando trabalhava na pesca artesanal podia vir quando quisesse para a terra, "não tem que cumpri horário de entrada e saída"; para ele não tem coisa melhor que a pesca artesanal porque "na pesca artesanal, não tem patrão, todos são sócios".

A imposição de um novo ritmo ou normas de trabalho foi rejeitada parcialmente pelo migrante, porque, apesar de não aceitar os mandos do patrão, ainda realiza a pesca industrial.

As relações de trabalho na pesca simples, baseadas no igualitarismo e na cooperação voluntária, se apóiam no parentesco e nas relações de amizade que existem entre os pescadores e os seus mestres, como mecanismo de minimizar possíveis conflitos nas embarcações que prejudiquem a produção e ponham em risco a vida da própria tripulação no mar. O pescador artesanal da indústria de pesca está submetido ao capital, todo o conhecimento acumulado secularmente é desvalorizado pela máquina que executa o principal papel dentro do processo produtivo, em que a divisão técnica do trabalho limita mais ainda os indivíduos. O pescador, na condição de executor de ordem, é considerado como trabalhador desqualificado por não possuir qualquer tipo de conhecimento técnico que exija maior especialização, por isso recebe a menor remuneração dentro da empresa industrial de pesca (Maldonado, 1993; Mello, 1993).

Outro migrante em passagem pela empresa de pesca rejeitou totalmente o novo ritmo do trabalho, retornando a pesca artesanal. Um dos fatores mais impactantes no modo de vida urbano é percebido pela perda do controle do próprio tempo:

"[...] trabalhei aí três anos de carteira assinada...mas pra mim não deu, sabe, porque ganhava, recebia por mês e o patrão só vivia no pé da gente, o encarregado, serviço que a gente chega cedo sai tarde, se a gente não chega na hora perde logo meio dia ou um dia de serviço, aí pra mim não deu, e na pesca chego a hora que quiser, mas aí também eu só acerto nas minhas viagens, né, a gente chega antes da hora, sou o primeiro a chegar no barco, quando não trago o barco pra cá, durmo no barco e pra mim não tem hora pra sair, nem tem hora pra chegar, porque eu não gosto de ser mandado, nem gosto de mandar ninguém, eu quero mesmo é esse negócio".

Compreende-se que o trabalho urbano exige novas atitudes e valores que os migrantes podem ou não rejeitar. As exigências quanto ao cumprimento de horário para chegar e sair do estabelecimento é de difícil aceitação pelo migrante, à medida que compara a sua atividade anterior.

A flexibilidade do horário da pesca artesanal, não regido pelo relógio, possibilita a execução de outras tarefas como tecer rede, descarregar, estocar e comercializar o peixe depois de pescado. Apesar destes pontos positivos ressaltados pelos pescadores, a segurança proporcionada pelo emprego formal, sobretudo a aposentadoria, é bastante almejada por esta população.

Hoje, os que são pescadores artesanais urbanos continuam sofrendo com a presença dos marreteiros e intermediários na hora da comercialização do peixe, os quais retêm com a maior parte do lucro da produção.

Os pescadores em idade avançada, impossibilitados de realizar a pesca artesanal, não deixaram de relacionar-se a ela e passaram à condição de marreteiros e autônomos; seu lucro pouco maior que o do pescador deve-se ao fato dos filhos que realizam a pesca artesanal fornecerem-lhes o peixe para vender na feira da Agulha de Icoaraci. Em seus discursos, a reciprocidade e a solidariedade existente entre os companheiros de pesca não é sentida entre os feirantes.

Os que estão inseridos no trabalho formal como pescador de indústria e vigilante não estão em melhores condições, pois a renda proveniente de suas atividade continua abaixo de suas necessidades básicas.

O Quadro 1, sobre o perfil socioeconômico dos migrantes de pesca, demonstra que a maioria dos entrevistados está hoje na atividade pesqueira. As mulheres que aparecem no quadro são viúvas ou os maridos se separaram de suas companheiras.

A vizinhança entre amigos e parentes

A maioria dos pescadores tem parentes que vivem na ocupação, o que mostra uma tendência dos migrantes a seguirem os parentes para um mesmo centro urbano, residindo numa mesma área deste centro, o que mostra um 'rearranjo' da organização espacial anterior. Viver entre parentes significa, se não a permanência total das relações anteriores, pelo menos a manutenção da solidariedade. A permanência das relações de parentesco e vizinhança é uma forma dos migrantes auxiliarem-se economicamente, fornecendo remédios e alimentação, baseando-se nas relações de troca que implicam na reciprocidade destas ações, como bem relata a esposa de um pescador:

"Lá os vizinhos era mesmo que ser aqui, lá a gente repartia um pedaço pra cada um, lá um molhava a mão do outro, quando um pescador chegava e os outros não chegavam, um repartia o peixe pra cada um, aqui é a mesma coisa, quando meu marido chega, eu dou um pedacinho pra cada um, porque são os meus vizinhos, eu olho pra quem me olha. Assim como eu dou pra eles, quando eles têm, eles me dão também, aqui é uma mão molhando a outra".

Quanto à organização do grupo familiar, a divisão sexual persiste como traço de sua identidade anterior, porque se reconhece ao homem o papel de provedor do lar e à mulher, as tarefas da casa. Mesmo que trabalhem fora do âmbito doméstico, continuam exercendo tarefas referentes a sua condição feminina: lavando roupa ou trabalhando como domésticas. Quando os maridos chegam da pesca, as mulheres cuidam de seu bem-estar físico, preparando-lhes alimentação e tratando o peixe que trazem.

As crianças freqüentam as escolas e os pais esforçam-se para que isso aconteça por reconhecerem que sem ensino escolar é bastante difícil conseguir um emprego. Alguns filhos homens, que não a freqüentam, ajudam os pais na atividade de pesca ou tarefas relacionadas a elas, como consertar redes.

A criação de porcos em chiqueiros permanece no meio urbano. Os porcos são muitas vezes trazidos da área de origem, mantendo o vínculo com a comunidade. As festas de santos que ocorrem em suas comunidades originais e o fato de alguns migrantes possuírem terrenos são motivos de idas anuais às suas pequenas localidades. No mês de julho, período das férias, são fortalecidos os laços com as origens, revitalizando-se a solidariedade parental, necessária em situações de ordem prática, como evitar o desperdício à cultura do açaí, evitando os pássaros predadores. Este ir e vir também pode favorecer novas migrações.

O saber tradicional, a religião e a medicina formal

Na cidade, o conhecimento secular das plantas medicinais é repassado aos filhos, o que demonstra a persistência de um traço cultural anterior à migração e à carência econômica desta população que utiliza as plantas medicinais como uma forma estratégica de diminuir suas despesas com os remédios da farmácia. Algumas mulheres, ao redor da casa, plantam ervas medicinais da forma tradicional, em canteiros suspensos.

As doenças derivadas do trabalho pesqueiro, como o reumatismo, dores de coluna, problemas relacionados à visão, cortes acidentais na captura do peixe e doenças como febre, tosse, diarréia e outras que acometem o grupo doméstico são tratadas através de remédios caseiros, preparados pelas mulheres e filhas dos pescadores em forma de chás, banhos, entre outros. Quando não se consegue a cura através deste tratamento é que se procura atendimento médico.

Entre os remédios caseiros mais utilizados está a verônica (Fabacea) para anemia; para diarréia, chá de anador (Lamiaceae), casca de laranja (Rutacea), boldo (Peumus boldus molina) e raiz de açaizeiro (Euterpe oleracea). Para as doenças de ordem espiritual, utilizam folha de comigo-ninguém-pode (Araceae), folha de pião (Euphoreraceae), folha de alho (Allium sativum l.) e mucuracaá (Asteraceae).

Embora as famílias dos pescadores cultuem os santos, recorrem a benzedores para cura de males não naturais, como o quebranto, que deixa as crianças 'mofinas' e 'tristes'. O tratamento das doenças através da prática de pajelança não é incompatível com a medicina oficial. Embora a cidade proponha o abandono deste traço cultural referente à religiosidade, este conhecimento é transmitido aos filhos e netos. Ressalta-se que a procura dos benzedores e pajés evidencia-se por não poderem comprar os remédios da farmácia nem consultar um médico particular.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreende-se que a migração rural-urbana envolve um processo de ajustamento e/ou adequamento do migrante a determinados traços culturais, em face de certas situações a que são expostos na cidade.

O pescador artesanal, em seu local de origem, possuía uma forma diferenciada de se relacionar com o meio ambiente. Nele, a medicina, a magia, a invocação de santos, conhecimentos sobre plantas medicinais, a pequena agricultura e o trabalho pesqueiro garantiam sua reprodução social; o pescador aparece como segmento tanto do meio natural como social.

No espaço urbano, à medida que a técnica se interpõe entre o meio natural e social, o pescador perde esta familiaridade. Novas relações lhe são impostas e propostas. Na cidade, a conduta de valores tão ressaltados - como responsabilidade na execução de tarefas, as relações de amizade e parentesco para o ingresso em atividades mais produtivas - são ineficazes na contratação do trabalhador urbano, avaliado pelo seu grau técnico e científico, atestado pela escolaridade e especialidade em determinados serviços.

Apesar do baixo nível de escolaridade, este não é o maior empecilho para engajar-se no mercado formal, e sim a necessidade de tempo para ajustar-se à imposição das horas para execução das tarefas, porque tempo implica em produção e quanto mais se produz em menos tempo, maior será o lucro retirado da mais-valia do trabalhador. Por isso, é comum dizerem não ter tempo quando realizam atividades fora da pesca, e mesmo realizando-a, devido à crescente necessidade de dinheiro na cidade, vivem constantemente trabalhando.

Na cidade, tudo é comprado, diferente do meio rural, onde 'tinham tudo', porque eram donos de seus meios de produção: a terra onde faziam roçados e a água possibilitava a realização da pesca. Já despojados destes recursos na cidade, precisam comprar os bens necessários a sua reprodução social, como habitação, alimentação, serviços médicos e hospitalares.

As relações de parentesco, amizade e vizinhança persistem na cidade como formas de atenuar a adaptação do migrante ao espaço urbano. É, sobretudo, a família que os orienta inicialmente ao chegarem à cidade para a qual migraram; como andar nas ruas da cidade, na aquisição de um terreno, no fornecimento de uma casa para morar e na indicação de emprego, colocando-os a par das relações que regem a cidade. Relações individualistas e de poder (que tendem a se apropriar dos homens e dos objetos sociais) travam-se cotidianamente sob o peso do sistema capitalista, encobertas para o migrante antes de realizar a migração.

No novo ambiente, a realidade imprime ao migrante a reestruturação de seu modo de vida, as relações de produção não se dão mais de maneira coletiva como antes, devido à divisão técnica do trabalho implicar em execução de tarefas independentemente da cooperação que possa haver entre os trabalhadores. Mas este fato não suprime as relações de parentesco e amizade, que são resgatadas em horas de adversidade, através da memória, que ativa ações e valores anteriores entre as famílias de pescadores, o que garante a sobrevivência do grupo no espaço urbano.

O apego às práticas sociais anteriores, como o uso de plantas medicinais, a crença em sobrenaturais, consultas a benzedores e pajés, são formas de defesa ao enfrentamento às novas condições impostas pela lógica urbana, a lógica do consumo. Isto é, estas práticas representam 'sobrevivências' de um passado que proporcionava ao migrante o estabelecimento de um tipo humano mais ou menos pleno dentro de seus padrões culturais e das suas possibilidades econômica, social e religiosa.

Esse sentido de defesa também se reveste de um sentido estratégico, já que não se pode constituir o espaço vivido anteriormente de maneira plena nem as relações que nele se realizavam. A única possibilidade de totalidade da pessoa na condição de ser social constitui-se no grupo familiar já preexistente na cidade, o qual apóia incondicionalmente o migrante ante a insegurança da situação de mudança. Os significados de defesa e estratégia se articulam, podendo afirmar que o migrante utiliza comportamentos culturais e valores próprios do espaço anterior à migração como forma de não perder seus referenciais, o que implica num ajustamento satisfatório à cidade; por outro lado, assumir outros, como a aceitação, ainda que parcial, do novo ritmo de trabalho.

Ainda que as condições econômicas dos migrantes sejam suficientes apenas para reproduzir sua força de trabalho, a possibilidade de acesso a vários bens e serviços é transferida aos filhos. Os migrantes reconhecem que seus objetivos iniciais de obter casa própria, melhores condições de vida e a aquisição de mercadorias não foram de todo alcançados, mas também não se sentem fracassados ao passo que permanecem na cidade e não desejam retornar aos seus locais de origem. É permanente em seus discursos definirem o seu lugar de origem como um lugar atrasado, assim, só pelo fato de terem migrado para um lugar que possui o que não existe no anterior reforça a ideologia do sucesso urbano.

Recebido: 22/01/2003

Aprovado: 23/04/2007

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  • 1
    Mesmo termo usado por Furtado (1993) para designar o conjunto de sítios, povoados e/ou vilas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Out 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Aceito
      23 Abr 2007
    • Recebido
      22 Jan 2003
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