Acessibilidade / Reportar erro

Diálogos na dissertação escolar: um estudo sobre os enunciados de senso comum e de polêmica

Resumos

Este estudo examina duas categorias dialógicas regidas pela argumentação nas redações argumentativas escolares, que respondem pela propagação de sentidos do senso comum (categoria de consenso) e de sentidos que se contrapõem ao senso comum (categoria de polêmica). Há três matrizes dialógicas observadas em redações escolares: os diálogos do sujeito-produtor com outras vozes sociais, com a proposta de redação e, principalmente, com o interlocutor-examinador. Esses diálogos inserem um conjunto de propriedades que ora são manifestações da categoria consensual ora da polêmica, e estão de acordo com o exercício argumentativo do texto. Entre as propriedades dialógicas estão a aplicação de noções generalizantes, a organização de enunciados descritivos, a observação de um raciocínio lógico formalizado, o rompimento com a proposta de redação, a inserção de enunciados interrogativo-retóricos e o uso de paráfrases extraídas da proposta.

Polêmica; Senso Comum; Argumentação; Dissertação Escolar


This paper examines two dialogical categories of the scholarly argumentative text: consensual one (common sense enunciates) and polemical one (opposed to common sense contents). Three dialogical matrices are investigated: the dialogue between subject-producer and other social voices, and text-proposal, and interlocutor-examiner. These dialogues insert a set of textual and discursive properties which are consensual category manifestations or polemical ones in accordance with the argumentative arrangement of text. Among the dialogical properties are wholeness enunciates, argumentative-descriptive enunciates, strict logical reasoning, breakage of textproposal, interrogative-rhetoric enunciates and paraphrases from the text-proposal.

Polemics; Common Sense; Argumentation; Scholarly Argumentative Text


ARTIGOS

Diálogos na dissertação escolar: um estudo sobre os enunciados de senso comum e de polêmica

Rinaldo Guariglia

Professor do Centro Universitário Unifafibe - UNIFAFIBE, Bebedouro, São Paulo, Brasil; CNPq; guarigliar@gmail.com

RESUMO

Este estudo examina duas categorias dialógicas regidas pela argumentação nas redações argumentativas escolares, que respondem pela propagação de sentidos do senso comum (categoria de consenso) e de sentidos que se contrapõem ao senso comum (categoria de polêmica). Há três matrizes dialógicas observadas em redações escolares: os diálogos do sujeito-produtor com outras vozes sociais, com a proposta de redação e, principalmente, com o interlocutor-examinador. Esses diálogos inserem um conjunto de propriedades que ora são manifestações da categoria consensual ora da polêmica, e estão de acordo com o exercício argumentativo do texto. Entre as propriedades dialógicas estão a aplicação de noções generalizantes, a organização de enunciados descritivos, a observação de um raciocínio lógico formalizado, o rompimento com a proposta de redação, a inserção de enunciados interrogativo-retóricos e o uso de paráfrases extraídas da proposta.

Palavras-chave: Polêmica; Senso Comum; Argumentação; Dissertação Escolar

ABSTRACT

This paper examines two dialogical categories of the scholarly argumentative text: consensual one (common sense enunciates) and polemical one (opposed to common sense contents). Three dialogical matrices are investigated: the dialogue between subject-producer and other social voices, and text-proposal, and interlocutor-examiner. These dialogues insert a set of textual and discursive properties which are consensual category manifestations or polemical ones in accordance with the argumentative arrangement of text. Among the dialogical properties are wholeness enunciates, argumentative-descriptive enunciates, strict logical reasoning, breakage of textproposal, interrogative-rhetoric enunciates and paraphrases from the text-proposal.

Keywords: Polemics; Common Sense; Argumentation; Scholarly Argumentative Text

Introdução

O arcabouço sócio-histórico em que se inserem os gêneros discursivos promove relações dialógicas que regem sua composição. Especificamente, a tipologia argumentativa escolar, que comporta vários gêneros, mantém quatro principais papéis dialógicos: o sujeito-produtor, o sujeito-avaliador, o meio social e a proposta de redação. O enunciador do discurso escolar põe-se a dialogar com os outros três pilares da dialética argumentativa, as matrizes dialógicas: a relação entre o sujeito-produtor e a proposta de redação, entre o sujeito-produtor e o interlocutor-examinador e entre o sujeito-produtor e as demais vozes sócio-históricas. Surgem, a partir dessas matrizes, estratégias para o exercício argumentativo.

Essas estratégias se estabelecem por meio das propriedades dialógicas que permeiam o discurso e o texto desta tipologia. Essas três matrizes dialógicas fundamentam as diretrizes retóricas que visam à validade do ponto de vista recortado a partir do texto-estímulo (proposta de redação). São elas: a redução temática, a adoção parcial de posicionamento, o rompimento com a proposta de redação, a paráfrase extraída da proposta, a polarização, a interrogativa retórica, o respeito ao raciocínio lógico hipótese-argumentos-tese, as noções generalizantes e os enunciados argumentativo-descritivos. Essas propriedades manifestam-se no diálogo considerando as seguintes posições subjetivas: o produtor, o avaliador, o recorte temático da redação e 0 social.

O dialogismo - sob o estudo das relações dialógicas entre o sujeito-produtor e a tríade vozes sócio-históricas, interlocutor-examinador e proposta de redação - é a fundamentação teórica que traz à luz essas propriedades dialógicas identificadas em redações dissertativas escolares. Para isso, contamos com a investigação das duas categorias argumentativas, regulares nesta tipologia, que entremeiam as relações dialógicas e as propriedades: a categoria consensual e a categoria polêmica.

1 As Categorias Argumentativas de Consenso e de Polêmica

As vozes sócio-históricas, uma das matrizes dialógicas em que está calcado o discurso argumentativo escolar, propiciam ao enunciador a possibilidade de convergência com um discurso dominante do senso comum ou de divergência dele por meio do exercício da contra-argumentação polêmica.

A construção do raciocínio opinativo crítico - e não somente expositivo - não dispensa a contraposição de discursos, pois a gênese de um discurso é o seu contraditório. Assim, mesmo um sentido do senso comum passa pela dialética de seu avesso, apesar do eventual apagamento desse avesso no exercício da argumentação.

As congruências com um senso comum e as divergências dele se dão em nível do enunciado. Assim, não é apropriado entendermos que um texto, em sua totalidade de sentido, apresenta uma concordância com um discurso do senso comum ou uma discordância dele. É mais apropriado falarmos de enunciados consensuais ou polêmicos do que propriamente de texto consensual ou polêmico. São enunciados do consenso, atinentes à congruência, e enunciados da polêmica, afeitos à divergência.

Não são necessariamente todos os enunciados que cumprem a função de engendrar um sentido consensual ou polêmico. Para desempenhar essa finalidade, o enunciado depende de um vínculo com ao menos uma das três matrizes dialógicas: o sujeito-produtor e o meio sócio-histórico, o sujeito-produtor e o examinador e o sujeitoprodutor e a proposta de redação; e, evidentemente, do exercício da argumentação.

Esses enunciados exercem as funções ditadas por categorias argumentativas específicas cuja função é promover, no discurso e também na materialidade do texto, as relações dialógicas do gênero inserido na tipologia argumentativa escolar. Essas categorias organizam os conteúdos advindos do meio social, e consideram para isso as estratégias argumentativas necessárias ao convencimento do interlocutor e as determinações orientadas pelo intertexto da redação, a proposta de redação. Dessa forma, a categoria consensual responde pela propagação - e, por extensão, pela circularidade - de discursos defendidos e formalizados pelo meio social; são discursos que se refletem no meio social. A categoria polêmica promove um debate que procura, em princípio, repelir o discurso do outro; após, validá-lo ou efetivamente refutá-lo; são, portanto, discursos que se refratam na sociedade. Mesmo em caso de validação do senso comum, não se trata mais do discurso monologizante inicial, anterior à polêmica, pois estará perpassado, de qualquer forma, por uma nova consciência:

[...] todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa mas também de alguns enunciados antecedentes dos seus e alheios - com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles,

polemiza com eles,

simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte). Cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados. (BAKHTIN, 2003, p.272, grifo nosso)

Entendemos que a concepção de consenso não prevê necessariamente um discurso adotado por uma maioria de indivíduos pertencentes a um grupo social ou a uma sociedade, quantitativamente. Uma consciência social é permeada por sentidos prevalecentes, e, por conseguinte, aceitos pelos indivíduos participantes; pois, segundo a filosofia bakhtiniana, as ideias se instituem na e para uma consciência social.

Entretanto, uma consciência social está sujeita à aplicação do contraditório.

Assim, polemizar, sob a perspectiva bakhtiniana, é contrapor o discurso do autor ao discurso do outro por meio de um mesmo objeto, a fim de reelaborá-lo, "nomeando o, representando-o, enunciando-o" (BAKHTIN, 1997, p.196). Trata-se da polêmica velada/oculta:

Na polêmica velada, o discurso do autor está orientado para o seu objeto, como qualquer outro discurso; neste caso, porém, qualquer afirmação sobre o objeto é construída de maneira que, além de resguardar seu próprio sentido objetivo, ela possa atacar polemicamente o discurso do outro sobre o mesmo assunto e a afirmação do outro sobre o mesmo objeto. Orientado para o mesmo objeto, o discurso se choca no próprio objeto com o discurso do outro. Este último não se reproduz, é apenas subentendido: a estrutura do discurso seria inteiramente distinta se não houvesse essa relação ao discurso subentendido do outro. [... ] O discurso do outro começa a influenciar de dentro para fora o discurso do autor. É por isso que o discurso polêmico oculto é bivocal, embora, neste caso, seja especial a relação recíproca entre as duas vozes. A ideia do outro não entra "pessoalmente" no discurso, apenas reflete neste, determinando-lhe o tom e a significação. O discurso sente tensamente ao seu lado o discurso do outro falando do mesmo objeto e a sensação da presença deste discurso lhe determina a estrutura (BAKHTIN, 1997, p. 196).

O discurso do consenso, a não polêmica, situa-se em meio às forças monologizantes da sociedade. Entretanto, engrossar a voz consensual, em determinadas situações, auxilia a legitimação de um ponto de vista recortado pelo discurso argumentativo; inclusive, sem a necessidade de contraposições. Trata-se, portanto, de um recurso estratégico arquitetado pelo enunciador. Em contextos nos quais a temática obedece a uma espécie de ordem social, a categoria consensual aparece geralmente como recurso persuasivo fadado a um sucesso argumentativo. O enunciador promove assim a ilusão de que a voz do produtor corrobora a voz social, como se a opinião validada por todos dispensasse qualquer questionamento.

Dessa forma, a argumentação desta tipologia é construída principalmente sob duas categorias imanentes ao texto argumentativo: a categoria consensual e a categoria polêmica. Aquela compreende o conjunto de conteúdos aceitos por um determinado grupo social em determinado momento histórico como verdadeiros, usuais e praticamente irrefutáveis; esta é a avaliação crítica de dados consensuais:

[...] os princípios de construção [do diálogo] são os mesmos em toda parte. Em toda parte é o

cruzamento, a consonância ou a dissonância de réplicas do diálogo aberto com as réplicas do diálogo interior dos heróis.

Em toda parte

um determinado conjunto de ideias, pensamentos e palavras passa por várias vozes imiscíveis, soando em cada uma de modo diferente.

O objeto das aspirações do autor não é, em hipótese nenhuma, esse conjunto de ideias em si mesmo, como algo neutro e idêntico a si mesmo. Não, o objeto é precisamente a

passagem do tema por muitas e diferentes vozes, a polifonia

de princípio e, por assim dizer, irrevogável, e a

dissonância

do tema. (BAKHTIN, 1997, p.271, grifos do autor)

2 As Matrizes Dialógicas da Tipologia Argumentativa Escolar

As categorias de consenso e de polêmica arranjam-se a partir de matrizes dialógicas centradas no produtor, no interlocutor, no meio social e na proposta de redação.

Essas quatro posições subjetivas organizam basicamente três relações dialógicas importantes para o estabelecimento da argumentação da tipologia dissertativa: a relação entre o produtor e o avaliador, a relação do produtor com o meio sócio-histórico e a relação do produtor com a proposta de redação. Designamos matrizes dialógicas do texto argumentativo escolar essas três vias dialéticas. Elas não se excluem; pelo contrário, associam-se de forma a estabelecerem a manifestação de propriedades típicas do discurso e do texto argumentativo.

A seguir, discutiremos as três matrizes dialógicas.

2.1 O Produtor e a Voz Social

A linguagem penetra em todos os diálogos, é onipresente socialmente; compreende fios ideológicos que servem às relações sociais. Assim, um discurso é o indicador mais direto das transformações da sociedade, conforme Bakhtin/Volochinov (2004, p. 41). A matriz produtor e demais vozes sociais é uma relação dialógica que propicia conceitos de que provêm o tema, o recorte temático e os argumentos, e participa da promoção de debates entre discursos em gêneros da tipologia argumentativa escolar. Assim, é a matriz do embate ideológico entre os discursos ligados ao tema, inserido pela proposta de redação.

Segundo Bakhtin/Volochinov (2004, p. 66), "cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória. A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto da interação viva das forças sociais". O contraditório é uma função lógica necessária para a polêmica ou para a manutenção do consenso.

Segundo Rancière (2004), o produtor de uma forma qualquer de expressão está predisposto a discursos massificados, em boa parte em função das interpretações preexistentes. Isso significa que nem sempre são os acontecimentos, principalmente aqueles de grande repercussão, que originam a interpretação dos indivíduos em sociedade; é possível que as interpretações "aguardem" a ocorrência de um fato referente a elas para emergirem. Assim, determinadas interpretações preexistem aos acontecimentos a que se referem:

Não é a imagem que constitui o núcleo do poder midiático e de sua utilização pelos poderes. O núcleo da máquina de informação é, mais exatamente, a interpretação. Tem-se necessidade de acontecimentos, mesmo falsos, porque suas interpretações já estão aí, porque elas preexistem e chamam esses acontecimentos. [... ] É preciso que sempre haja acontecimentos para que a máquina funcione. Mas isso não quer dizer apenas que é preciso o sensacional para vender notícias. Não basta simplesmente noticiar. É preciso fornecer material à máquina interpretativa. Esta não tem necessidade apenas de que aconteça sempre alguma coisa. Tem necessidade de que aconteça também um certo tipo de coisas, os chamados "fenômenos de sociedade": acontecimentos particulares que ocorrem num ponto qualquer da sociedade a pessoas comuns, mas também acontecimentos que constituem sintomas por meio dos quais o sentido global de uma sociedade possa ser lido; acontecimentos que atraem uma interpretação, mas uma interpretação que já está aí antes deles (RANCIÈRE, 2004, p.3).

2.2 O Produtor e a Proposta de Redação

A finalidade da proposta de redação é apresentar a temática a fim de que o produtor recorte dela um posicionamento para a execução da argumentação do ponto de vista. Há propostas que especificam dentre um emaranhado de possibilidades qual recorte deve ser analisado pelo produtor. Chamaremos esse tipo de proposta de polarizada: o enunciado que determina a polaridade é autossustentável, pois a leitura dele já seria suficiente para o encadeamento do processo de produção.

A compreensão dos conteúdos que formam a temática da proposta propicia o apontamento de um recorte, a fim de se constituir nele um ponto de vista e, a partir disso, possibilitar a implantação das estratégias argumentativas. Portanto, a interpretação é base dessa matriz dialógica.

O pensamento bakhtiniano entende que a compreensão é uma manifestação dialógica que consiste em construir uma oposição ao discurso do sujeito-produtor. Por assim dizer, o ato de compreender é embrião de uma atitude polêmica:

Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é a nossa compreensão. [...] A compreensão é uma forma de

diálogo;

ela está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor uma

contrapalavra

(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p.131-2, grifos do autor).

2.3 O Produtor e o Interlocutor-Examinador

A natureza avaliatória da tipologia argumentativa escolar é a razão pela qual essa matriz é tão relevante. A compreensão da proposta, o recorte temático, a indicação do ponto de vista, enfim, o exercício retórico deve ser rigorosamente orientado para o objetivo da atividade: a aprovação no processo de seleção.

Esse arranjo pode, inclusive, conduzir o produtor a um contrassenso por dois motivos:

a. Ele pode trair sua própria opinião em detrimento de outra premissa que venha a ser mais conveniente às suas pretensões argumentativas; também pode dar preferência à voz consensual, mesmo que ele queira polemizar com ela, porque há normalmente um risco menor de rejeição de um senso comum. Muitas vezes, esse ponto de vista é defendido por uma maioria de indivíduos em um segmento social;

b. A finalidade do texto argumentativo é constituir-se um lugar propício e fecundo para a legitimação de discursos, por meio de um debate entre vozes sociais que convergem e divergem entre si.

A compreensão responsiva de que trata o Círculo de Bakhtin explica o envolvimento dialógico entre o produtor e o outro:

Os limites de cada enunciado concreto como unidade da comunicação discursiva são definidos pela

alternância dos sujeitos do discurso,

ou seja pela alternância dos falantes. [... ] Cada réplica, por mais breve e fragmentária que seja, possui uma conclusibilidade específica ao exprimir certa posição do falante que suscita a resposta, em relação à qual se pode assumir uma posição responsiva. [... ] Essas relações específicas entre as réplicas do diálogo são apenas modalidades das relações específicas entre as enunciações plenas no processo de comunicação discursiva. Essas relações só são possíveis entre enunciações de diferentes sujeitos do discurso, pressupõem

outros

(em relação ao falante) membros da comunicação discursiva. (BAKHTIN, (2003, p.275-6, grifos do autor)

A réplica consiste na previsibilidade que o produtor dispõe de seu interlocutoravaliador. O mesmo ocorre na relação do produtor com a proposta de redação, na qual o texto-estímulo exige do produtor uma compreensão responsiva.

3 As Propriedades Dialógicas

As matrizes dialógicas engendram estratégias argumentativas que se estabelecem pelas propriedades dialógicas, que são recursos argumentativos pertinentes à tipologia escolar, resultantes de embates ideológicos - responsáveis pela polêmica ou pelo consenso - promovidos pelas vozes sociais.

São concepções organizadas fundamentalmente pelo discurso retórico; evidentemente, não separadas de sua materialidade linguística, principalmente em uma tipologia avaliatória da competência linguística e da lógico-discursiva. Segundo Bakhtin (1997, p.181), "As pesquisas metalinguísticas [...] não podem ignorar a linguística e devem aplicar os seus resultados. [...] Devem completar-se mutuamente e não fundir-se. Na prática, os limites entre elas são violados com muita frequência".

3.1 Redução Temática

Consiste em um recorte temático inserido pelo produtor a partir da proposta de redação. Trata-se de um recurso no qual o produtor não promove a partir desse recorte outras ramificações de sentido, a fim de possibilitar uma exploração mais ampla do ponto de vista, e, por conseguinte, possibilitar um debate. Nesse caso, os argumentos são reduzidos a obviedades; tampouco há contra-argumentação.

Ocorre, portanto, uma redução temática do recorte opinativo, que limita a defesa do ponto de vista recortado. Essa propriedade decorre da categoria consensual. É um recurso argumentativo cuja estratégia consiste na não exposição do sujeito-produtor, para garantir uma articulação mínima coerente ao raciocínio, não se sujeitando a incorreções lógicas, prolixidades ou contradições.

As três matrizes estão presentes: o apontamento do recorte é decorrente da proposta de redação, a moderação de conceitos mantém lastro com a previsão que o produtor faz do examinador, já que aquele está em avaliação, e as vozes sócio-históricas agem para o surgimento de conceitos do recorte e dos argumentos.

3.2 Adoção Parcial de Posicionamento

Essa propriedade refuta a exigência típica de textos-estímulos desta tipologia que exigem uma posição do produtor considerando necessariamente o polo a favor ou o polo contra. Embora ela consista no posicionamento entre um dos polos, o sujeito institui uma ressalva para esse acatamento.

Essa adoção parcial de posicionamento tem origem na categoria polêmica, pois a temática opinativa do sujeito-produtor supera as exigências da proposta de redação; há, portanto, uma ruptura com o consenso formulado pelo texto-estímulo.

Nessa propriedade, a matriz diálogo com a proposta de redação é determinante para a contraposição promovida pela polêmica. O diálogo com o interlocutor é caracterizado pela necessidade retórica de o produtor demonstrar domínio sobre o tema sugerido, pois somente é possível levantar ressalva quando se tem conhecimento de aspectos relativos ao tema, cuja realização prévia é indispensável para a efetivação ou a aceitação de um projeto. O diálogo com as vozes sociais supre essa promoção do recorte e da ressalva, por meio do arcabouço de discursos que convergem para a temática e os que divergem dela.

3.3 Rompimento com a Proposta de Redação

Verificamos que o sujeito-produtor determina um recorte temático adverso à exigência do texto-estímulo, nem a favor nem contra. O produtor mantém o tema proposto, porém desconsidera os polos.

Trata-se de uma manifestação da categoria polêmica, em função do rompimento com o lugar-comum representado pela limitação em polos estabelecidos pela proposta de redação.

As matrizes dialógicas promovem relações a fim de instituir esse rompimento com a proposta de redação: o diálogo com a proposta se dá por meio da não aceitação dos polos opostos e a indicação de um recorte alternativo sem que haja perda do tema exigido. O diálogo com o outro-interlocutor promove o rompimento para que o produtor ocupe a posição subjetiva de analista e de contra-argumentador; e o diálogo com as demais vozes sociais, mais uma vez, proveem os discursos que possibilitam essa contraposição.

3.4 Paráfrase de Trechos da Proposta de Redação

É um recurso no qual o sujeito-produtor parafraseia trechos do texto-estímulo a fim de tornar a voz de outrem a sua voz, em uma interposição de mesmos conteúdos. Dificuldade de recortar e defender o tema recortado, assegurar a unidade temática e compreensão equivocada de que o texto-estímulo não pode ser contestado estão entre as razões do estabelecimento do recurso parafrástico. No entanto, é possível que o sujeitoprodutor promova este recurso como um objeto da argumentação, com a finalidade de contra-argumentar o trecho parafraseado.

Portanto, essa propriedade dialógica serve indiferentemente ao consenso e à polêmica. São fundamentalmente as coerções retóricas que estabelecem se o enunciado parafrástico é atribuído à categoria consensual (pela reutilização do discurso sem a refutação) ou à polêmica (pela refutação dele).

A matriz dialógica referente à relação entre produtor e proposta está determinada pelo aproveitamento parafrástico de trechos; a matriz produtor-interlocutor garante que o sujeito-produtor mantenha diálogo com a proposta, cuja finalidade é assegurar a necessária decorrência entre tema da proposta, recorte opinativo e manutenção temática. A matriz produtor e vozes sociais conduz o debate entre os discursos.

3.5 Condução lógico-argumentativa: raciocínio hipótese-argumentos-tese

Trata-se da adoção do padrão hipótese-argumentos-tese (introdução, desenvolvimento e conclusão), em que se efetiva uma paragrafação preestabelecida: o primeiro parágrafo comporta a exposição do ponto de vista a ser validado (hipótese), o último parágrafo traz a validade do ponto de vista (tese), e cada parágrafo intermediário (entre a introdução e a conclusão) contém um argumento em prol da validação da hipótese em tese.

Observamos que o respeito ao raciocínio hipótese-argumentos-tese é um recurso argumentativo, porque o sujeito adota uma condução de raciocínio relativamente segura; uma "receita de bolo" que consiste em organizar os conteúdos em partes estabelecidas a priori. Assim, correm-se menos riscos; é menor a possibilidade de prolixidade, contradições, e, principalmente, de rompimento com a unidade textual.

Contudo, a limitação provocada por um método rígido desconsidera, muitas vezes, necessidades específicas da argumentação para uma também específica produção. O uso do método lógico convencional normalmente é um recurso da categoria consensual, porque o produtor não rompe com o lugar-comum: a obrigatoriedade de compartimentagem de conceitos em parágrafos específicos. Em contrapartida, um discurso que se organiza pelas necessidades de cada argumentação é derivado da categoria polêmica.

Os diálogos promovidos pelas matrizes dialógicas participam do encadeamento do raciocínio lógico da tipologia argumentativa escolar. A matriz produtor-proposta promove o recorte temático que determina o encaminhamento dos argumentos, e, por conseguinte, das demais necessidades retóricas específicas da redação. A matriz produtor e interlocutor responde pela previsão que o produtor deve estabelecer em função de seu interlocutor. O conhecimento sobre a promoção do método hipótese-argumentos-tese ou sobre o seu rompimento advêm da relação com as vozes sociais, na matriz que rege o diálogo entre elas e o produtor.

3.6 Polarização

Verificamos alguns enunciados que apresentam um evento semântico específico: um vazio lógico na elaboração do conceito. Essa propriedade ocorre geralmente em enunciados que inserem um raciocínio de causa e efeito; neles, o sujeito-produtor omite conceitos que justificam a passagem da causa para o efeito, ou vice-versa. A falta da justificativa é relevante no que se refere à condução da argumentação, pois a relação causa-efeito corre o risco de não cumprir a sua função como argumento para legitimação da hipótese, porque o vazio lógico pode suscitar uma refutação ou pode indicar que a relação causa-efeito é inconsistente como argumento.

Essa polarização - centrada nos polos causa e efeito, sem que haja uma justificativa que legitime a relação entre os polos - é ocorrência da categoria consensual. Essa elipse compreende um recurso que objetiva um aproveitamento de um discurso do senso comum, cujo efeito consiste em apresentar-se pré-legitimado, em virtude do seu acatamento acrítico; assim, a apresentação da justificativa pode remeter a um debate, atinente à categoria polêmica.

A relação produtor-proposta insere o recorte temático que mantém a unidade temática e estabelece as demais relações lógicas e retóricas, a fim de promover a validação da opinião; entre elas, os argumentos de causa-efeito. A relação produtorinterlocutor possibilita a elipse da justificativa como um recurso retórico, para que não haja um comprometimento do argumento por meio de uma refutação pelo interlocutor. A matriz produtor e vozes sociais responde pelo suprimento de conceitos envolvidos no encadeamento lógico dos enunciados.

3.7 Enunciados Interrogativo-Retóricos

Essa propriedade dialógica é um recurso argumentativo que consiste em uma tentativa de refutação de um discurso por meio de um enunciado interrogativo que traz consigo a resposta à indagação, a fim de não permitir uma contradição pelo interlocutor. O enunciado interrogativo retórico carrega uma assertiva de difícil refutação. Por exemplo, o enunciado Vocês querem que nossas crianças passem fome? produzido por um governante que defende publicamente um ato político populista e assistencialista.

A categoria polêmica geralmente permeia essa propriedade. A polêmica se estabelece pela contraposição de vozes: a voz consensual de reprovação do interlocutor é rebatida pela voz polêmica do contra-argumento interrogativo. Notamos, assim, que o conteúdo da interrogativa retórica toma por base geralmente um dado do senso comum; um argumento de autoridade já validado socialmente, justificando sua difícil refutação pelo interlocutor.

A matriz referente ao texto-estímulo é responsável pela manutenção temática e, por extensão, pelos apontamentos de argumentos, entre eles, os enunciados retóricos interrogativos. A matriz atinente ao interlocutor é atuante nessa propriedade, já que a previsão que o produtor faz do interlocutor é fundamental para a instituição da interrogativa retórica. A matriz que compreende as demais vozes sócio-históricas supre tematicamente a refutação do interlocutor e a contra-argumentação do produtor, pelo apontamento de conceitos necessários ao estabelecimento da propriedade.

3.8 Enunciados Argumentativo-Descritivos

O emprego de enunciados descritivos é um recurso argumentativo que consiste na exposição de características que procuram compor o cenário real atribuído ao tema da proposta ou ao recorte opinativo. O produtor argumenta por meio de constatações, que geralmente são lugares-comuns.

Trata-se de enunciados da categoria consensual, porque os enunciados descritivos - incluem-se os narrativos - são mais susceptíveis a discursos do senso comum do que os enunciados temáticos. Não é raro que os sujeitos-produtores desta tipologia façam uso de enunciados descritivos como argumentos. Como esses enunciados geralmente incorrem em obviedades, já que recuperam um cenário muitas vezes já abordado pela proposta de redação, ou estabelecem descrições já suficientemente conhecidas pelo interlocutor, podemos afirmar que a categoria consensual rege essa propriedade na maioria das vezes. Ademais, os enunciados não temáticos (narrativos e descritivos) criam um efeito de apagamento do debate, pois os relatos procuram representar situações ou características extraídas da vida cotidiana como se elas falassem por si, sem a necessidade de contra-argumentação.

As três matrizes dialógicas têm participação na produção de enunciados argumentativo-descritivos: a proposta de redação promove o recorte temático que dá origem às necessidades argumentativas; a previsão do produtor consiste no efeito de condução do interlocutor ao cenário do fato que fundamenta uma exposição temática; as demais vozes sociais cumprem a função de recortar um cenário adequado para a argumentação a partir do conhecimento de mundo do produtor.

3.9 Enunciados de Noção Generalizante

São enunciados que estabelecem um efeito de sentido de totalidade. Trata-se de um recurso retórico cujo princípio é conduzir particularidades para um padrão.

Linguisticamente, os enunciados que comportam os enunciados generalizantes apresentam um número excessivo de parágrafos curtos em extensão, em que há uma reduzida ocorrência de conectivos oracionais. Cada apontamento é disposto em um parágrafo curto, geralmente destituído de marcadores de adversidade, concessão, conformidade, ou qualquer outro conectivo que atribua sentido de explicação, expansão, enfim, de complemento aos argumentos. Afora os marcadores linguísticos, um enunciado generalizante apresenta uma carência informativa.

Aproveitar uma ideia generalidade em detrimento da aceitação de outra específica, a fim de negar uma exceção que poderia comprometer o exercício argumentativo remete geralmente à categoria consensual.

No entanto, um arranjo de enunciados que ora generalizam ora particularizam a serviço do exercício da argumentação é habilidade atribuída ao estabelecimento da polêmica. Há recursos linguísticos referentes a essa ocorrência: os operadores adversativos, concessivos, relativos, principalmente, possibilitam a não totalidade dos enunciados.

A matriz referente à relação entre produtor e proposta de redação, em última análise, pontua as estratégias argumentativas; entre elas, a noção generalizante. A relação entre produtor e interlocutor explica os enunciados generalizantes em função do efeito de sentido hiperbólico dessas ocorrências: a figura do exagero procura provocar um efeito de suficiência, de completude, de inexistência de exceções. A totalidade cria esse efeito de suficiência como estratégia de adesão do interlocutor, e, ao mesmo tempo, em contraposição, estabelece uma possibilidade de refutação, já que basta o interlocutor conhecer apenas um caso que contradiga a totalidade para que se dê a refutação do argumento generalizante. A matriz relativa às vozes sociais dota de discursos consensuais (aspecto generalizante) e de discursos polêmicos (eventual refutação do discurso do interlocutor).

4 Análise de enunciados consensuais e polêmicos de uma dissertação escolar

Analisaremos uma redação produzida em um processo seletivo para ingresso em uma instituição de ensino superior privada localizada no interior do Estado de São

Paulo. Antes, porém, apresentaremos a proposta de redação que norteou a prova de redação:

Muito se discute atualmente a diminuição da maioridade penal dos atuais dezoito anos para dezesseis, devido a ocorrências graves envolvendo menores de idade, em que eles são autores de crimes bárbaros. Pode-se citar o recente episódio em São Paulo, no qual um casal de namorados foi morto por menores quando ocupavam uma casa em uma fazenda. O crime chocou pelos resquícios de crueldade inimagináveis.

O assunto é muito polêmico. As pessoas que defendem a responsabilidade pelos atos a partir dos dezesseis anos argumentam que o jovem, nesta idade, já sabe exatamente o que está cometendo; além disso, a medida seria uma forma de conter a escalada da violência. Aqueles que defendem a manutenção da maioridade penal a partir dos dezoito anos justificam, entre outros argumentos, que, além de inconstitucional, a proposta é desnecessária, pois bastam algumas alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente para que se atinja um estágio em que se conteriam os atos de violência envolvendo menores.

Escreva sua redação posicionando-se em relação à polêmica. Exponha seu ponto de vista e defenda-o.

Redação - transcrição ipsis litteris:

"Fábrica de idelinquentes" /(1) ¡numeradas razões, discute o fato da maioridade penal seja apartir dos dezesseis anos de idade. Destúrbios bárbaros vem acontecendo com famílias de adolescentes, Mas que para ocorra a maioridade penal aos dezesseis anos, basta fazer algumas modificações bem articuladas no Estatuto da Criança e do Adolescente. /(2) A questão seria que aos dezesseis anos o adolescente já sabe de suas responsabilidades porque apartir desta idade o próprio adolescente que estiver com dezesseis anos pode escolher um indivíduo para governar o seu proprio país, então ele sabe muito bem das suas virtudes, e é por esse fato que temos que compreender. O crime em São Paulo por exemplo, foi muito chocante para nós, e o que aconteceu com aqueles adolescentes que mataram o casal? Se foram punidos ainda não sabemos. Mas acontece que a família do casal ainda espera alguma justiça. /(3) Pelo fato dos crimes serem constantes ainda temos chance de alterar no Estatuto alguma justiça justa para punir adolescentes irresponsaveis dentro da nossa sociedade, senão, estaremos criando uma fabrica de criminosos dentro da nossa propria casa.

A redação "Fábrica de idelinquentes" apresenta a adoção parcial de posicionamento, porque o produtor aceita a redução da maioridade penal, desde que sejam também realizadas alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente. É uma manifestação da categoria polêmica, pois há uma cisão na polaridade da proposta. Apesar de o recorte temático conduzir à conclusão sobre a reprovação da proposta de diminuição da idade penal, alguns argumentos encaminham-se para a posição adversa: o discernimento do jovem aos dezesseis anos, a concessão legal que lhe permite votar, a dúvida quanto à punição dos adolescentes infratores citados na narrativa do crime, e a aclamação pela punição de "adolescentes irresponsáveis dentro da nossa sociedade". Esse discurso polêmico possibilita-nos apontar uma adoção parcial de posicionamento: o Estatuto de Criança e do Adolescente tem de ser modificado, para que haja punição aos jovens infratores.

A principal manifestação da categoria consensual consiste no diálogo com o texto-estímulo, por meio de enunciados parafrásticos. O acatamento do discurso que defende alteração no Estatuto da Criança e do Adolescente, extraído da proposta, remete-nos à posição contrária à redução da maioridade penal para dezesseis anos; embora o enunciador não explicite esse posicionamento. A fidelidade à proposta de redação também passa pela preferência do uso por extenso do numeral dezesseis, e pelo pinçamento do argumento da proposta referente ao discernimento do jovem aos dezesseis anos. Além disso, o comentário do enunciador a respeito do crime também representa um intertexto da proposta de redação.

Outra manifestação da categoria polêmica consiste no uso da interrogativa retórica no segmento "e o que aconteceu com aqueles adolescentes que mataram o casal? Se foram punidos ainda não sabemos". O enunciado interrogativo retórico cerca o interlocutor, porque já traz consigo a resposta lógica; um discurso de difícil refutação.

Ocorre a aplicação do raciocínio lógico preestabelecido hipótese-argumentostese, pois o produtor insere um primeiro parágrafo, introdutório, em que expõe a hipótese favorável à redução da maioridade penal. Após, ele exerce a argumentação em apenas um parágrafo, sob basicamente um argumento: o infrator menor de idade, aos dezesseis anos, já tem ciência dos atos que comete. O último parágrafo traz a tese: a exigência de punição aos "adolescentes irresponsáveis". O respeito ao método predeterminado é uma manifestação da categoria consensual, em função da segurança que esse modelo proporciona ao sujeito-produtor.

O texto mantém um enunciado argumentativo-descritivo: "O crime em São Paulo por exemplo, foi muito chocante para nós, e o que aconteceu com aqueles adolescentes que mataram o casal? Se foram punidos ainda não sabemos. Mas acontece que a família do casal ainda espera alguma justiça". Esse enunciado relata o acontecimento já citado pelo texto-estímulo, e menciona que a família das vítimas espera justiça. Esse enunciado descritivo manifesta a categoria consensual, porque é constituído para a aplicação da seguinte estratégia: a descrição de características de um cenário cumpre a função de um enunciado propriamente temático, pois a caracterização do cenário dispensa um conceito, como se ele se autossustentasse e convencesse mais do que um enunciado temático.

Essa redação não apresenta relevantes enunciados de aspecto generalizante, já que a argumentação se fundamenta em apenas um argumento, por meio de um enunciado temático, mesmo que pinçado da proposta de redação; e verifica-se, em detrimento de noções generalizantes, uma ilustração para o argumento, uma interrogativa retórica e um enunciado descritivo. A categoria polêmica remete a um único conectivo adversativo mas, que representa a condição para o acatamento da redução da maioridade: as alterações no Estatuto.

A polarização, regida pela categoria consensual, ocorre no parágrafo introdutório: o produtor defende a redução da maioridade desde que haja mudanças no ECA, mas não indica quais as ações que seriam desenvolvidas para que se obtivesse tal resultado; tampouco o produtor menciona quais seriam as alterações no Estatuto. Essa propriedade causa um efeito de acabamento ao conceito.

Não há nessa redação as seguintes propriedades: redução temática e rompimento com a proposta de redação.

Considerações Finais

Embora essas reflexões não tenham a pretensão de formular uma metodologia para o ensino de leitura e redação, entendemos que elas sejam subsídios que levem o profissional da área de Comunicação e Expressão a uma discussão sobre as estratégias argumentativas desta tipologia, principalmente no que diz respeito à aplicação dos discursos do senso comum e, por conseguinte, o posicionamento contrário a eles. Compreender a finalidade argumentativa das propriedades dialógicas pode justificar muitas ocorrências que, à primeira vista, poderiam ser interpretadas como uma improbidade: redução temática, polarização e noções generalizantes, por exemplo.

Acreditamos que esta pesquisa possibilita uma orientação quanto a critérios de avaliação de textos desta tipologia. A avaliação deveria privilegiar a capacidade de o aprendiz produzir uma argumentação com base em uma fundamentação crítica: conscientemente acatar o senso comum ou não após um exercício de avaliação.

Uma metodologia nesses moldes não permite normas estruturais tão rígidas para a organização do raciocínio argumentativo; é preciso que haja o exercício crítico das ideias, a partir das habilidades de leitura. A não aceitação de um discurso sem que ele sofra contraposições é condição indispensável para que o exercício crítico argumentativo fundamente as estratégias de ensino de leitura e de redação. Afinal, o objetivo dessa prática pedagógica não pode ser somente avaliatório; é preciso priorizar a formação de cidadão engajado em seu meio social, que procurará não se deixar convencer por conceitos inconclusos ou ideologicamente corrompidos.

Tornar o aprendiz um sujeito produtor crítico, participante no seu universo social, político e econômico, é uma habilidade plenamente satisfatória e complementar ao principal compromisso da escola: promover uma competência linguístico-discursiva da modalidade escrita da língua materna.

Recebido em 03/03/2012

Aprovado em 01/06/2012

  • BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • ______. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1997.
  • ______. /VOLOCHINOV, V. N. Discurso na vida e discurso na arte: sobre poética sociológica. Tradução de C. A. Faraco e C. Tezza. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dl/noticias/downloads/curso_bakhtin2008_profa.%20macristina_sampaio/artigo_volosh_bakhtin_discurso_vida_arte.pdf>. Acesso em: 23 fev. 2012.
  • ______. /VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Fratexchi Vieira. 11.ed. São Paulo: Hucitec, 2004.
  • COTRIM, G. Consciência crítica e filosofia. In: Fundamentos da filosofia: história e grandes temas. 15.ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 41-55.
  • GEERTZ, C. O senso comum como um sistema cultural. In: . O saber local. 8.ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2006, p. 111-41.
  • GUARIGLIA, R. O consensual e o polêmico no texto argumentativo escolar. 2008. 195 f. Tese (Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa) - Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista - UNESP, Araraquara, 2008.
  • MAINGUENEAU, D. Cenas da enunciação. Curitiba: Criar, 2006.
  • MARCHEZAN, R. C. Discurso, produção e recepção. Estudos Linguísticos. São Paulo: Grupo de Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo, 2001.
  • PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
  • RANCIÈRE, J. As novas razões da mentira. Folha de S. Paulo, São Paulo, 22 ago. 2004. Caderno Mais!, p. 3.
  • VOESE, I. Análise do discurso e o ensino de língua portuguesa. São Paulo: Cortez, 2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2012

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2012
  • Aceito
    01 Jun 2012
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bakhtinianarevista@gmail.com