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A análise do discurso diante de estranhos espelhos: visualidade e (inter)discursividade na pintura

Resumos

Este artigo intenciona compreender a dimensão discursiva das pinturas por meio da análise do discurso ancorada em Michel Foucault. Recorta-se a figura do espelho em pinturas canônicas com vistas a observar seu funcionamento discursivo enquanto elemento do enunciado artístico visual. Apresenta três partes: a primeira, que determina o lugar ocupado pelo discurso estético nos trabalhos de Michel Pêcheux e de Michel Foucault; a segunda, que se concentra na análise de três pinturas europeias, a saber, As meninas, de Velásquez; Um bar em Folies-Bergère, de Manet; e As ligações perigosas, de Magritte; e a terceira parte, que discute a intersecção entre visualidade e interdiscursividade a partir (a) das reflexões de M. Foucault acerca do discurso estético e (b) da figura do espelho presente nessas pinturas.

Análise do discurso; Discurso estético; Michel Foucault


This paper aims to understand the discursive dimension of some paintings through Michel Foucault'sdiscourse analysis approach. The image of the mirror in several canonical paintings was selected, intending to observe its discursive operation as an element of the visual artistic utterance. Basically, this text has three parts: firstly, it determines the place occupied by the aesthetic discourse in Michel Pêcheux's and Michel Foucault's works; secondly, it focuses on the analysis of three European paintings, namely The Maids of Honour by Velásquez, A Bar at the Folies-Bergère by Manet, and Dangerous Liaisons by Magritte; thirdly, it discusses the intersection between visuality and interdiscursivity based on a) the contributions of M. Foucault's works on aesthetic discourse and b) the image of the mirror found in those paintings.

Discourse Analysis; Aesthetic Discourse; Michel Foucault


ARTIGOS

A análise do discurso diante de estranhos espelhos: visualidade e (inter)discursividade na pintura

Renan Belmonte MazzolaI; Maria do Rosário Valencise GregolinII

IUniversidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", UNESP, Araraquara, São Paulo, Brasil; mazzola.renan@gmail.com

IIUniversidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", UNESP, Araraquara, São Paulo, Brasil; mrgregolin@gmail.com

RESUMO

Este artigo intenciona compreender a dimensão discursiva das pinturas por meio da análise do discurso ancorada em Michel Foucault. Recorta-se a figura do espelho em pinturas canônicas com vistas a observar seu funcionamento discursivo enquanto elemento do enunciado artístico visual. Apresenta três partes: a primeira, que determina o lugar ocupado pelo discurso estético nos trabalhos de Michel Pêcheux e de Michel Foucault; a segunda, que se concentra na análise de três pinturas europeias, a saber, As meninas, de Velásquez; Um bar em Folies-Bergère, de Manet; e As ligações perigosas, de Magritte; e a terceira parte, que discute a intersecção entre visualidade e interdiscursividade a partir (a) das reflexões de M. Foucault acerca do discurso estético e (b) da figura do espelho presente nessas pinturas.

Palavras-chave: Análise do discurso; Discurso estético; Michel Foucault

Introdução

Como a análise do discurso pode abordar objetos que não possuem inscrições linguísticas explícitas, como é o caso das pinturas? Pergunta aparentemente simples, ela gera uma série de outras questões quando se confronta um objeto exclusivamente visual com o quadro teórico e metodológico desse domínio do saber. Algumas delas são: a) de que análise do discurso estamos falando? b) na teoria, é possível tomarmos a pintura em sua materialidade discursiva? c) esse objeto coloca problemas para a teoria, ajuda a desenvolvê-la? Com vistas a refletir sobre essas questões, tomamos a figura do espelho, em diversas pinturas, enquanto elemento do enunciado visual, responsável por ativar memórias e mobilizar discursos.

Nossas reflexões baseiam-se na análise do discurso de tradição francesa, derivada dos diálogos entre Michel Pêcheux – e seu grupo – e Michel Foucault. Para nossas análises, observaremos a atuação de elementos da materialidade visual na rede interdiscursiva que atravessa o campo discursivo (Cf. MAINGUENEAU, 2009, p.23) da arte como condição de sua interpretabilidade.

Consideramos a interdiscursividade como princípio que rege a produção de sentidos. É justamente porque "'algo fala' (ça parle) sempre 'antes, em outro lugar e independentemente" (PÊCHEUX, 2009, p.149), que os textos e as imagens fazem sentido para nós. Ao colocar em evidência o discurso e o interdiscurso, observamos o primado deste sobre aquele; essa hierarquia é amiúde a principal tese da escola francesa, principalmente nas reflexões de M. Pêcheux (2009). Por isso, é mais adequado falar em interdiscursividade do que em discursividade, uma vez que esta pressupõe aquela. Ao considerarmos as formações discursivas (Cf. PECHEUX 2009, p.147) que estão em relação no campo discursivo da arte, mais particularmente no subcampo discursivo das pinturas, observaremos de que maneira as técnicas e os efeitos são nomeados em cada uma. Segundo Charaudeau e Maingueneau (2006, p.287), a "identidade de um discurso é indissociável de sua emergência e (de) sua manutenção através do interdiscurso".

Assim, tratar da visualidade nos discursos significa observar como a materialidade não verbal atua no interior do interdiscurso, mobilizando certas memórias e silenciando outras, constituindo certos tipos de discurso (Cf MAINGUENEAU, 2009, p.129), colocando em relação "unidades discursivas (que pertencem a discursos anteriores do mesmo gênero, de discursos contemporâneos de outros gêneros, etc.) com os quais um discurso particular entra em relação implícita ou explícita" (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2006, p.286; grifo do autor).

M. Pêcheux, em seus últimos textos (GADET; PÊCHEUX, 1981; PÊCHEUX, 1990b; PÊCHEUX, 2002), já alertava para as transformações do discurso político, sem no entanto deter-se nos desdobramentos das tecnologias de comunicação de massa e futuras consequências de sua popularização para a percepção do homem público. Embora estivesse consciente da mutação dos discursos com relação à mídia emergente, esses apontamentos aparecem sob a forma de breves menções, e a ausência de um maior aprofundamento impede a plena ancoragem de afirmações nesses trechos.

Com relação ao discurso estético1 1 O discurso estético, ou discurso artístico (optamos por utilizá-los como sinônimos) de um certo momento histórico tem como referência variadas manifestações artísticas: a pintura, a escultura, a música, etc. Neste artigo, privilegiamos a pintura. Com base nas reflexões e noções propostas por D. Maingueneau (2009), podemos dizer que o objeto de nossas reflexões é o campo discursivo da arte observado a partir do mirante da escola francesa de análise do discurso com forte influência foucaultiana. Mais particularmente, trata-se de analisar três discursos de posicionamento em pintura: o discurso barroco, o discurso impressionista e o discurso surrealista. Procedendo dessa maneira, acabaremos por perceber os discursos de produção de uma categoria de locutores: aqueles dos pintores europeus com relação à escola artística a que se filiam, isto é, perceberemos a contribuição de Velásquez com relação ao barroco espanhol, a contribuição de Manet na determinação do impressionismo francês, e a contribuição de Magritte para o surrealismo belga. , todavia, constatamos que M. Pêcheux menciona essa natureza de discurso, encontrada frequentemente nos trabalhos de M. Foucault. Nos textos de Pêcheux dos anos 1980, podemos observar as mutações do principal objeto da análise do discurso: o discurso político. Além disso, a partir dos desenvolvimentos operados por J.-J. Courtine – e por meio das indicações do próprio Pêcheux –, observamos também que alguns elementos antes desconsiderados (a voz, a entoação, os gestos, sua transmissão pelo rádio, pela televisão), passaram a ser entendidos como características do enunciado, como que traços dele, produzindo (efeitos de) sentido2 2 Repetimos que M. Pêcheux não se aprofundou nas características específicas desses traços enunciativos. . Ainda assim, o objeto de análise de M. Pêcheux continua a ser o discurso político-partidário. No entanto, não se interdita a análise do discurso de trabalhar sobre as diversas materialidades discursivas, "[...] implicadas em rituais ideológicos, nos discursos filosóficos, em enunciados políticos, nas formas culturais e estéticas, através de suas relações com o cotidiano, com o ordinário do sentido" (PÊCHEUX, 2002, p.49). Em um artigo publicado em 1984, originalmente em alemão, Pêcheux (2012)3 3 A tradução brasileira baseia-se na versão francesa do artigo apresentado em primeira versão em alemão: "Metapher und Interdiskurs", in J. Link e U. Wulfing (Eds), Bewegung und Stillstand in Metaphern und Mythen, Stuttgart, Klett-Cota, 1984, p.93-99. afirma:

Nosso empreendimento supõe, parece-me, levar a sério a noção de materialidade discursiva enquanto nível de existência sócio-histórica, que não é nem a língua, nem a literatura, nem mesmo as "mentalidades" de uma época, mas que remete às condições verbais de existência dos objetos (científicos, estéticos, ideológicos...) em uma conjuntura histórica dada.

Desse ponto de vista, a decisão de não restringir, a priori, o estudo do material textual aos objetos literários consagrados, parece-me extremamente interessante e positiva: ela permite interrogar os processos de construção da referência discursiva em toda sua extensão, compreendendo tanto a Alltagssprache (e a Alltagsfiktion) quanto os discursos científicos, técnicos, políticos e estéticos. (p.151-152; grifo do autor).

Segundo ele, trata-se de estudar as outras materialidades sempre com relação ao discurso político. Em geral, nesses dois últimos trechos apresentados acima, mostra-se a possibilidade de trabalhar as materialidades discursivas implicadas nas formas estéticas. Ainda assim, parece-nos que M. Pêcheux fala de "condições verbais de existência", por exemplo, "o discurso impressionista" enquanto o que foi dito sobre o movimento impressionista, pois "permite interrogar os processos de construção da referência discursiva [que não são os objetos literários consagrados, mas outros materiais textuais] dos discursos estéticos" (PÊCHEUX, 2012). Esse trecho revela a complexidade do pensamento de M. Pêcheux, que ora ancora as formas estéticas no discurso político-ideológico, ora redireciona as formas estéticas como domínios que determinam o campo da análise do discurso, sem explicitar essas mesmas relações com o político-ideológico, mas interpretando-as como correlacionadas:

A política burguesa começava, produzindo um novo tipo de relação ao alhures e ao inexistente (o "nós", o "todos" e o "cada um" nas assembleias, as festas revolucionárias, o novo exército... e a língua nacional): o feudalismo havia mantido a ordem dominante traduzindo-a em formas específicas (representações, imagens) destinadas às classes dominadas. A particularidade da revolução burguesa foi a de tender a absorver as diferenças rompendo as barreiras: ela universalizou as relações jurídicas no momento em que se universalizava a circulação do dinheiro, das mercadorias... e dos trabalhadores livres (PÊCHEUX, 1990b, p.10; grifo do autor).

O discurso estético, antes da revolução de 1789, servia como ferramenta da ordem dominante, regida pelo discurso religioso. Dessa maneira, não só os ensinamentos religiosos (bíblicos) eram transmitidos por meio de vitrais e pinturas à população iletrada; essas materialidades transmitiam a própria ordem política das sociedades em que se inscreviam4 4 Segundo Pêcheux (1990b, p.10, grifo do autor), "[...] a ideologia religiosa, que dominava a formação sócio-histórica, feudal e monárquica, consistia essencialmente em administrar esta relação com o 'alhures' que a funda; ela representava este 'alhures', tornando-o visível através das cerimônias e das festas – inscrevendo-se aí os discursos – que colocavam em cena este corpo social unificado, radioso, transfigurado, que manifesta o inexistente constitutivo da sociedade feudal". . Nesse caso, o discurso estético era subordinado ao discurso religioso, regido pela ideologia dominante, derivado da Igreja. A arte, nessa perspectiva, era atravessada por estratégias de dominação.

O discurso estético, como classificamos na nota 5, pode ser tomado como um campo discursivo do qual selecionamos três posicionamentos e três categorias de locutores5 5 Campo discursivo, discursos de posicionamento e discursos de produção de uma categoria de locutor são noções encontradas em Maingueneau (2009, p.44-47). para a análise. Em 1969, na França, duas grandes teorias do discurso foram formuladas: a de M. Pêcheux e a de M. Foucault. Esses dois autores6 6 "Em suas convergências e divergências, as propostas desses fundadores de discursividades dialogaram com outros textos teóricos e, desde os anos 60, desestabilizaram certezas sobre a língua, sobre o discurso, sobre o sujeito, sobre o sentido. Eles construíram as bases para que possamos pensar, hoje, nas relações entre a língua e o discurso, na não-evidência dos sentidos, nas articulações da subjetividade com a alteridade, nas determinações ideológicas, no diálogo, na intertextualidade, na interdiscursividade... Construíram a possibilidade de novos olhares para o texto, para os processos discursivos que os sustentam" (GREGOLIN, 2001, p.30; grifo do autor). eram contemporâneos e dialogavam, mesmo que suas teorias do discurso não fossem idênticas. Há pontos de contato importantes, que ajudam a repensar a teoria discursiva de ambos.

Em nosso percurso de compreensão da obra de M. Foucault com relação à análise do discurso estético, partiremos de A arqueologia do saber em direção a outros textos em que se discutem os enunciados artísticos. Essa escolha se justifica pelo fato desse livro se configurar como principal referência da análise do discurso de base foucaultiana no Brasil (GREGOLIN, 2006; SARGENTINI, V.; NAVARRO-BARBOSA, 2004; FERNANDES, 2007). Na parte IV, seção 6 (Ciência e saber), subseção "f", nomeada Outras arqueologias, M. Foucault (2007) questiona a possibilidade de se conceber uma análise arqueológica que fizesse aparecer a regularidade de um saber em outros domínios diferentes daqueles das figuras epistemológicas e das ciências. Ele menciona uma série de orientações possíveis, como a análise de pinturas; além disso, elenca procedimentos:

Para analisar um quadro, pode-se reconstituir o universo latente do pintor; pode-se querer reencontrar o murmúrio de suas intenções que não são, em última análise, transcritas em palavras, mas em linhas, superfícies e cores; pode-se tentar destacar a filosofia implícita que, supostamente, forma sua visão do mundo. [...] A análise arqueológica teria um outro fim: pesquisaria se o espaço, a distância, a profundidade, a cor, a luz, as proporções, os volumes, os contornos, não foram, na época considerada, nomeados, enunciados, conceitualizados em uma prática discursiva; e se o saber resultante dessa prática discursiva não foi, talvez, inserido em teorias e especulações, em formas de ensino e em receitas, mas também em processos, em técnicas e quase no próprio gesto do pintor (p.217).

A regularidade de um saber, segundo as reflexões de Foucault, pode ser observada também em manifestações diversas do sentido, nas variadas materialidades discursivas. Os elementos formais de uma pintura (o espaço, a distância, a profundidade, a cor, a luz, as proporções, os volumes, os contornos) encarados enquanto elementos de uma prática discursiva, podem ser objetos de uma análise arqueológica, isto é, podem ser objeto – enquanto signos visuais de um discurso de posicionamento específico (Cf. MAINGUENEAU, 2009, p.45) – do que nós chamamos aqui de "análise do discurso estético".

Sublinhamos o fato de que o período em que M. Foucault vivia na Tunísia e ministrava conferências sobre arte, representou também o período em que ele elaborou A arqueologia do saber, entre outros trabalhos: "Diante dessa polêmica da primavera de 1966, ele vai em alguma medida aproveitar sua estadia na Tunísia [...] para apresentar a sua concepção do método arqueológico (que resultará em A arqueologia do saber, escrita em Sidi Bou Saïd em 1967-1968 e publicada em 1969")7 7 "Face à cette polémique du printemps 1966, il va en quelque sorte profiter de son retrait em Tunisie [...] pour présenter sa conception de la méthode archéologique (qui aboutira à L'archéologie du savoir, écrit à Sidi Bou Saïd en 1967-1968 et paru em 1969)". (TRIKI, 2004, p.52). Esses trabalhos (sobre a arqueologia das ciências, de um lado; e sobre a arte, de outro) não eram totalmente independentes, eles se inter-relacionavam. Essa inter-relação permite enxergar a dimensão discursiva das pinturas e tomá-las como enunciados compostos de elementos não verbais que as determinam, que as fazem pertencer a certas formações discursivas, que as fazem compor o arquivo estético de uma época.

A seguir, ao analisar três pinturas europeias – As meninas, de Velásquez; Um bar em Folies-Bergère, de Manet; e As ligações perigosas, de Magritte –, observaremos particularmente a figura do espelho na composição do enunciado artístico. O espelho, a partir da segunda metade do século XV, já era considerado como "emblema da pintura". Mais do que possuir a função de mise en abyme, ele constituía um elemento simbólico. Entre o renascimento italiano e o surrealismo belga, passando pelo barroco espanhol e pelo impressionismo francês, sua função alterna-se entre reduplicação e distorção da realidade. Para este trabalho, elegemos a figura do espelho enquanto elemento para onde convergem, por vezes mesclando-se, três naturezas de discursos, apontadas por Maingueneau (2009): (i) os discursos de posicionamento em um campo discursivo (barroco, impressionismo, surrealismo); (ii) os discursos de posicionamento de uma categoria de locutor (os pintores Velásquez, Manet, Magritte); e (iii) o discurso de tipo científico, seja o da história da arte (GOMBRICH, 2001), seja o da simbologia (do espelho) na arte (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982).

1 O reflexo revelador em Velásquez

Admirado consideravelmente por E. Manet, D. Velásquez (1599-1660) foi o principal artista da corte do rei Felipe IV da Espanha, e um dos principais representantes do barroco de seu tempo (GOMBRICH, 2001, p.406). Em suas obras, coloca-se o problema da representação. Não é à toa que uma de suas telas é escolhida para integrar as primeiras páginas de As palavras e as coisas, em que Foucault discute justamente o parâmetro de representação na Idade Clássica. Para Gombrich (2001, p.408-410),

De fato, a beleza das obras de maturidade de Velásquez se estabelece de tal forma no efeito da pincelada e na harmonia delicada das cores que as ilustrações dão somente uma fraca ideia dos originais. [...] Por causa de efeitos desta ordem, os pintores impressionistas admiravam Velásquez mais que qualquer outro mestre antigo8 8 "En fait, la beauté des œuvres de maturité de Velázquez repose tellement sur l'effet de la touche et sur l'harmonie délicate des couleurs que les illustrations donnent seulement une faible idée des originaux. [...] C'est pour des effets de cet ordre que les peintres impressionnistes admiraient Velázquez plus que tout autre maître ancien". .

Sua pintura mais contemplada no Museu do Prado de Madri é, sem dúvida, As meninas, produzida em 1656. Na infinidade de detalhes do quadro, que vai da menor pincelada do vestido da infanta até o jogo complexo de olhares entre as personagens da composição, o espelho desempenha um papel crucial na construção dos efeitos de sentido.


Na bela análise realizada por Foucault (2006a) desta tela de Velásquez, o espelho não passou, obviamente, despercebido. Elencamos uma série de trechos em que se trata particularmente dele:

(a) Mas eis que, entre todas essas telas suspensas, uma dentre elas brilha com uma luminosidade singular (p.198).

[...]

(b) Entre todos esses elementos destinados a oferecer representações, mas que as contestam, as ocultam, as escamoteiam por sua posição ou por sua distância, aquele é o único que funciona com toda honestidade e que mostra o que deve mostrar (p.199).

[...]

(c) Em vez de girar em torno dos objetos visíveis, esse espelho atravessa todo o campo da representação, negligenciando o que ele poderia ali captar, e restitui a visibilidade ao que permanece fora de qualquer olhar (p.200).

[...]

(d) O espelho, mostrando, mais além das paredes do ateliê, o que se passa na frente do quadro faz oscilar, em sua dimensão sagital, o interior e o exterior (p.203).

O espelho fornece as respostas que o espectador procura: para quem o pintor e a princesa olham? Quem é o modelo do quadro? O que está sendo pintado na tela que se encontra diante de Velásquez, na composição? Além disso, ele reflete o que se encontra fora das margens da pintura – o casal real, Felipe IV e sua esposa, Marianna. Estes ocupam o "centro simbólico" do quadro, ao qual o olhar da criança e a imagem no espelho estão finalmente submetidos. O espaço refletido pelo espelho, fora das margens da composição, pode vir a ser ocupado por vários indivíduos a fim de se tornarem o sujeito que observa.

Esse centro é simbolicamente soberano no contexto, pois ele é ocupado pelo rei Philipe IV e sua esposa. Mas, sobretudo, ele o é pela tripla função que exerce em relação ao quadro. Nele vêm se sobrepor exatamente o olhar do modelo no momento em que o pintam, o do espectador que contempla a cena e o do pintor no momento em que ele compõe seu quadro (não aquele que está representado, mas o que está diante de nós e do qual falamos). Essas três funções "contempladoras" se confundem em um ponto exterior ao quadro, mas perfeitamente real, pois é a partir dele que se torna possível a representação como modelo, como espetáculo e como quadro (FOUCAULT, 2006a, p.207-208).

Em linhas gerais, a tela de Velásquez classifica-se como "representação da representação", "quadro do quadro" (FOUCAULT, 2006a). Ela ilustra uma scene de genre com a qual o pintor está habituado, isto é, a produção de um retrato real em uma das dependências do Alcázar de Madri. O espelho plano representado por Velásquez no século XVII difere de muitos espelhos convexos presentes na pintura do século XV9 9 Citamos, por exemplo, Giovanni Arnolfini e sua mulher, de Jan van Eyck, 1434, óleo sobre madeira, 81,8x59,7cm, Londres, National Gallery. Cf. GOMBRICH, 2001, p.241. . O reflexo do rei e da rainha no espelho é impreciso, fluido; essa técnica também é encontrada em Vênus ao espelho – o que afasta o pintor do realismo.

Como elemento do enunciado artístico, o espelho participa do jogo complexo de olhares das personagens do quadro, explicita o modelo da tela, coloca em evidência a relação que existe entre realidade e ilusão. Nas palavras de Foucault (2006a, p.209), portanto, "a representação pode se dar como pura representação".

2 O reflexo inquietante em Manet

A revolução pictural que ocorreu na França do século XIX teve três fases: o romantismo, representado por E. Delacroix (1798-1863); o realismo, representado por G. Courbet (1819-1877); e o impressionismo, determinado por E. Manet (1832-1883). Manet e seu grupo procuravam desconstruir o que, na arte, era apenas convenção. Dessa maneira, eles faziam experiências artísticas consideradas extravagantes por seus contemporâneos. Expondo modelos e objetos ao sol, por exemplo, constatavam oposições violentas de luz e sombra, diferentes daquelas percebidas no interior do ateliê, representadas nas telas pelos dégradés. Segundo Gombrich (2001, p.514), "pode-se dizer também que Manet e seu grupo foram os instigadores de uma revolução no tratamento das cores quase comparável à revolução trazida pelos gregos no tratamento das formas" 10 10 "aussi peut-on dire que Manet et son groupe ont été les instigateurs d'une révolution dans le traitement des couleurs presque comparable à la révolution apportée par les Grecs dans le traitement des formes". .

Dos períodos em que realizou estudos no campo da pintura (FOUCAULT, 2002; 2004; 2006a), aquele em que esteve na Tunísia mostrou-se particularmente produtivo.

Ao séjour de Foucault na Tunísia, que se situa entre o mês de setembro de 1966 e o verão de 1968, é preciso somar as visitas de setembro de 1968 e maio de 1971 a Túnis. A conferência pública sobre Manet, realizada em 20 de maio de 1971 no Clube cultural Tahar Haddad constitui, pode-se dizer, a razão desse interesse no período em que Foucault esteve na Tunísia, que foi provavelmente também aquele em que ele realizou um certo número de estudos de obras picturais, sob a forma de cursos11 11 "Au séjour tunisien de Michel Foucault, qui se situe entre le mois de septembre 1966 et l'été 1968, il faut ajouter les visites de septembre 1968 et mai 1971 à Tunis. La conférence publique sur Manet donnée le 20 mai 1971 au Club culturel Tahar Haddad constitue, pourrait-on dire aujourd'hui, ici, la raison de cet intérêt pour la période tunisienne de Foucault, qui a été probablement aussi celle où il a entrepris un certain nombre d'études d'œuvres picturales, sous formes de cours". (TRIKI, 2004, p.51).

Quanto mais se pesquisa esse momento de produção intelectual de Foucault na África, mais se confirma a hipótese de que os domínios da ciência e da epistemologia não eram os únicos a ser encarados por uma arqueologia dos saberes. A denominação "análise do discurso estético" não é arbitrária, mas se liga estreitamente com o que o próprio Foucault indicava nos trechos de Outras arqueologias.

O discurso estético em questão será proposto prudentemente ao fim de A arqueologia do saber, em um longo parágrafo no interior de uma parte intitulada "Outras arqueologias", que trata da ética e da política, e coloca a questão de um saber que não se estabeleceria necessariamente sob figuras epistemológicas. Foucault propõe, nessa passagem, extrair o "dizer" sem palavras da pintura, isto é, a dimensão discursiva, a positividade de um saber que a atravessa e que seria o fato do que hoje nós chamamos de ciência da arte e poiétique, mas que lembra sobretudo o período exemplar da Renascença italiana, no qual as teorias científicas e as práticas teóricas dos pintores humanistas acompanhavam o estabelecimento da nova representação pictural12 12 "Le discours esthétique dont il est question sera proposé prudemment à la fin de L'archéologie du savoir, dans un long paragraphe à l'intérieur d'une partie intitulée «D'autres archéologies», qui traite de l'éthique et de la politique, et pose la question d'un savoir qui ne se donnerait pas nécessairement sous des figures épistémologiques. Foucault propose dans ce passage d'extraire le «dire» sans mot de la peinture, c'est-à-dire la dimension discursive, de la positivité d'un savoir qui la traverse et qui serait le fait de ce qu'aujourd'hui on nomme la science de l'art et la poiétique, mais qui surtout rappelle la période exemplaire de la Renaissance italienne où les théories scientifiques et les pratiques théoriques des peintres humanistes allaient de pair avec la mise en place de la nouvelle représentation picturale". (TRIKI, 2004, p.59).

Compreender a visualidade por meio da análise do discurso, portanto, significa observar de que maneira a materialidade não verbal mobiliza certas regiões da interdiscursividade, colocando em jogo a heterogeneidade discursiva, o discurso pré-construído e a sua própria formação discursiva. Proceder dessa maneira permite atingir a dimensão (inter)discursiva que constitui as pinturas, que faz a arte falar mesmo sem palavras, que coloca os objetos em território interpretável, localizável no tempo e no espaço. Segundo Foucault (2007, p.217), "a análise arqueológica teria um outro fim: pesquisaria se o espaço, a distância, a profundidade, a cor [...] não foram, na época considerada, nomeados, enunciados, conceitualizados em uma prática discursiva".

Na conferência sobre E. Manet13 13 Publicada sob o título La peinture de Manet. Foi ministrada com algumas variantes em Milão (em 1967), em Tóquio e Florença (em 1970), e por fim em Túnis (em 1971). A versão impressa é baseada na última conferência, de Túnis. Cf. M. Saison (2004). , ministrada na Tunísia, M. Foucault (2004) analisa 13 telas do pintor francês, agrupadas sob três rubricas: a) o espaço da tela; b) a iluminação; e c) o lugar do espectador. Colocando em evidência esses três aspectos encontrados na pintura francesa do século XIX, Foucault demonstra gradativamente a modernidade presente nas telas de Manet e a influência que se notará sobre pintores das gerações seguintes. Cada tela de Manet constitui-se em um "enunciado modernista"14 14 «L'énoncé moderniste, repensé à travers la perspective de l'archéologie foucaldienne, fait du champ de la représentation un champ auquel nous appartenons encore» (SAISON, 2004, p.15). , o conjunto desses enunciados contribui parcialmente na atribuição de uma unidade ao discurso da escola impressionista, na França, no século XIX. A pincelada, habilidade primeira dos maîtres de la touche, é um dos elementos visuais que mobilizam a memória das técnicas de escolas anteriores, colocando dois momentos históricos e artísticos em um campo de relações. A identidade enunciativa refletida no campo discursivo de posicionamento (Cf. MAINGUENEAU, 2009, p.100) do impressionismo francês constrói-se, em grande medida, a partir da ruptura com as escolas anteriores: de acordo com Gombrich (2001, p.514), "[...] Manet abandonava o método tradicional das sombras dégradées para agarrar-se a contrastes mais rudes e mais energéticos; isso gerou uma onda de protestos entre os artistas acadêmicos"15 15 "[...] Manet abandonnait la méthode traditionnelle des ombres dégradées pour s'attacher à des contrastes plus rudes et plus énergétiques, ce fut un tollé parmi les artistes académiques". . Esses protestos renderam-lhe um lugar no Salão dos recusados 16 16 Em 1863, o júri recusou-se a aparesentar suas obras (de Manet) no Salão oficial. Os protestos foram tantos que se decidiu apresentar todas as obras condenadas pelo júri numa exposição especial que se chamou "Salão dos recusados" (GOMBRICH, 2001, p.514). Original: "En 1863, le jury refusa de présenter ses oeuvres (de Manet) au Sallon officiel. Les protestations furent telles que l'on décida de présenter toutes les oeuvres condamnées par le jury dans une exposition spéciale que l'on nomma 'Salon des réfusés'" .

Não pretendemos abordar as três rubricas elencadas por Foucault com relação a Manet (nem tampouco algumas das características mais prestigiadas de tais pinturas). Iremos convocar apenas a última delas: o espaço do espectador. Para tratar dessa questão, Foucault analisa um dos quadros mais famosos de Manet:


Esta tela é uma combinação de retrato, natureza-morta e cena de cotidiano. Nela, o espelho é o elemento do enunciado visual que mais contribui para o efeito de "estranhamento"17 17 "C'est le dernier des grand tableaux de Manet, c'est le Bar aux Folies-Bergère, qui se trouve actuellement à Londres. Tableau évidement dont je n'ai pas besoin de vous signaler l'étrangeté" (FOUCAULT, 2004, p.44). sentido pelo espectador. Entre tantos outros elementos presentes na composição – os quais necessitariam de uma grande quantidade de páginas para explorá-los exaustivamente – o espelho atua como um nó de sentido, para onde convergem os outros elementos visuais no momento da interpretação dessa pintura. Ele recobre grande parte da superfície da tela, e o incômodo gerado deve-se a três fatores:

(a) O reflexo da mulher. Para que o reflexo seja visto onde está, seria preciso que o pintor e o espectador estivessem posicionados na extrema esquerda do quadro, segundo princípios de óptica. Lá onde o pintor se encontra, um reflexo seria gerado justamente atrás do corpo da mulher, pois o espelho não está colocado em posição oblíqua. Segundo Foucault (2004, p.45), "O pintor ocupa então – e o espectador é convidado depois dele a ocupar – sucessivamente, ou ainda simultaneamente, dois lugares incompatíveis: um aqui e outro ali"18 18 "Le peintre occupe donc – et le spectateur est invité après lui à occuper – successivement ou plutôt simultanément deux place incompatibles: une ici et l'autre là". .

(b) A figura do homem. Notamos no reflexo do espelho que há um homem que conversa com a atendente. Pelo reflexo, ele se posiciona bem perto do balcão e do rosto da mulher, sobre os quais deveria haver alguma espécie de sombra. Mas não há nada. "Ora, ali não há nada: a iluminação vem com toda a força, choca-se sem obstáculo nem proteção alguma contra todo o corpo da mulher e contra o mármore que está ali [...]"19 19 "Or, il n'y a rien: l'éclairage vient de plein fouet, frappe sans obstacle ni écran aucun tout le corps de la femme et le marbre qui est là [...]". . (FOUCAULT, 2004, p.46).

(c) O jogo de olhares. Entre as personagens do quadro, pintor e espectador, há um jogo de olhares. Pelo reflexo do espelho, percebemos que o homem que conversa com a atendente é bem mais alto que ela, ela deveria olhar para cima se estivesse conversando com ele. Ela, no entanto, olha para baixo. Se a posição ocupada pelo homem fosse, na verdade, a do pintor, observaríamos a mulher de cima, mas tanto o pintor quanto o observador observam a servente da mesma altura que ela, ou mesmo, ainda, mais abaixo.

O espelho é o lugar em que podemos observar estes três sistemas de incompatibilidade: (a) a posição ambígua e simultânea do pintor e do espectador; (b) a presença e a ausência do personagem que conversa com a servente, influenciando os jogos de luz; (c) o olhar descendente daquele que fala com a atendente e o olhar ascendente em direção à cena representada. Essa estruturação da cena contrasta com aquela da escola renascentista italiana. Nas pinturas do Renascimento, o espectador possuía uma posição fixa a ser ocupada para que se pudesse contemplar toda a cena representada20 20 "Pour vérifier cette hypothèse [selon laquelle la matérialité jouirait sur la mobilité du spectateur], nous devons entrer plus avant dans l'histoire de la place du spectateur qu'il [Foucault] esquisse, des Mots et les choses à « La peinture de Manet ». Dans la représentation classique, le spectateur se voit attribuer une place idéale et fixe d'où il peut aisément voir le spectacle représenté. Ce lieu, l'œuvre l'indique au spectateur de deux manières : par la perspective, certes, mais également par le regard des personnages représentés. C'est le cas de Les ménines de Vélasquez qui contient un autoportrait [...]. L'immobilisation du spectateur à mi-distance de l'œuvre participe d'une stratégie de dissimulation de la planéité initiale de son support" (MARIE, 2004, p.84). . Na tela de Manet, o espectador é convidado a deslocar-se em torno da tela a fim de encontrar a posição que lhe é acordada. No entanto, essa posição não existe... é uma posição mista, aqui e lá simultaneamente.

3 O reflexo radioscópico em Magritte

Membro importante de um grupo de artistas que se denominavam "surrealistas", R. Magritte (1898-1967) transmite em suas obras o universo fantástico e onírico. De acordo com Gombrich (2001, p.590), ele "compreendeu, todavia, que o que ele faz não é copiar a realidade, mas sim criar uma nova realidade, como nós fazemos em nossos sonhos, mesmo se nós não sabemos como chegamos a isso"21 21 "Il a compris toutefois que ce qu'il fait n'est pas de copier la réalité, mais plutôt de créer une nouvelle réalité, comme nous faisons dans nos rêves, même si nous ne savons pas comment nous y parvenons". .

Em seu ensaio sobre a pintura de R. Magritte, publicado pela primeira vez em 1968 em Les cahiers du chemin, Foucault (2002) debruça-se particularmente sobre a tela Ceci n'est pas une pipe, cuja primeira versão data de 1926. Dedicado a uma série de quadros do artista belga, o texto nos permite observar como funcionam os elementos verbais e não verbais (o que resulta em um objeto verbo-visual) na construção do discurso surrealista. Sem dúvida, esse texto de Foucault é o que aborda mais explicitamente a verbo-visualidade na pintura, uma vez que trata das relações entre as duas materialidades discursivas: "e, em retorno, a forma visível é cavada pela escrita, arada pelas palavras que agem sobre ela do interior e, conjurando a presença imóvel, ambígua, sem nome, fazem emergir a rede das significações que a batizam, a determinam, a fixam no universo dos discursos" (FOUCAULT, 2002, p.23). Observamos também, em R. Magritte, trabalhos que colocam o espelho em evidência, atribuindo-lhe uma determinada função segundo seu discurso de posicionamento. Vejamos o seguinte quadro:


O espelho segurado pela mulher22 22 É interessante notar que o espelho é um símbolo feminino (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1982). , nessa tela, é utilizado para esconder o corpo nu. No entanto, ele o reflete. Paradoxalmente, o que é utilizado para esconder faz justamente o contrário. Embora reflita somente o que esconde, o reflexo do espelho revela um ângulo do corpo da mulher que não é acessível da posição em que o espectador se encontra. Temos, em alguma medida, certa "representação em abismo", pois a) a mulher faz gesto de esconder-se, utilizando-se do espelho; b) o espelho revela o que a mulher esconde: a parte do corpo que vai dos ombros à altura das coxas; c) o gesto do corpo da mulher no reflexo é de quem se esconde. É um jogo de esconder e revelar, em que não se sabe qual vem primeiro.

O espelho funciona um pouco ao modo de uma tela radioscópica. Mas com todo um jogo de diferenças. [...] A imagem é notavelmente menor do que a própria mulher, indicando assim, entre o espelho e o que ele reflete, uma certa distância que a atitude da mulher contesta, ou é por ela contestada, apertando o espelho contra seu próprio corpo para melhor escondê-lo (FOUCAULT, 2002, p.70-71).

Observamos também que a sombra, na tela de R. Magritte, apresenta um comportamento interessante. O corpo da mulher encontra-se entre uma parede cinza e o espelho pesado. A sombra revela que a distância é mínima. Como observa Foucault (2002, p.71), "nessa sombra projetada, falta uma forma, a da mão esquerda que segura o espelho; normalmente, deveria ser vista à direita do quadro. [...]" Tanto o reflexo do espelho quanto o contorno da sombra na parede não condizem com o comportamento desses elementos na realidade, todavia, são esses os elementos do enunciado imagético que o inserem no discurso artístico e o tornam interpretável enquanto manifestação da escola surrealista, uma vez que o funcionamento desses elementos na composição revela a dimensão onírica determinante da obra de Magritte. Gombrich (2001, p.590) afirma que "[...] muitas de suas imagens oníricas, pintadas com uma precisão meticulosa e expostas com títulos enigmáticos, são memoráveis precisamente porque elas são inexplicáveis"23 23 "[...] beaucoup de ses images oniriques, peintes avec une précision méticuleuse et exposées avec des titres énigmatiques, sont mémorables précisément parce qu'elles sont inexplicables". .

Palavras finais: entre a visualidade e a interdiscursividade

Três pintores. Três escolas. Três discursos. Nessa sala de espelhos, em que os reflexos não são mais que tintas sobre panos e madeira, ensaiamos capturar a dimensão interdiscursiva de enunciados pictóricos, compreender a fala sem palavras dos traços, das cores, das superfícies, dos matizes.

Em Velásquez, o espelho configura-se como um elemento visual que remete o espectador para dentro e para fora do quadro repetidamente. Em alguma medida, seu funcionamento contrapõe-se àquele da escola renascentista, cujo princípio é tornar invisível o objeto-pintura, encarando-a como uma janela que se abre para uma dada cena. Esse espaço refletido pelo espelho, além de ter sido ocupado pelo pintor (no momento da criação da pintura), pode ser ocupado tanto pelo modelo pintado por Velásquez (na tela representada de costas, na composição), quanto pelo espectador. Observa-se um espaço de revezamento contínuo.

Em Manet, o espelho coloca em causa o lugar ocupado pelas personagens do quadro, além do lugar do pintor e o do espectador. Este procura deslocar-se a fim de encontrar um posicionamento que seja coerente com o reflexo que se observa, e tenta definir, por sua vez, a posição ocupada por aquele no jogo de olhares e reflexos presentes em Un bar aux Folies-Bergère. Na conferência sobre Manet, encontramos numerosas referências à estrutura cênica da Renascença: "lugar panóptico do pintor e do espectador, regime interno de iluminação, estabelecimento de relações entre as personagens devido à sua distribuição espacial e ao seu olhar"24 24 "place panoptique du peintre et du spectateur, régime interne des lumières, mise en rapport des personnages rendue par leur distribution spatiale et par celle de leur regard." (TRIKI, 2004, p.57). Muitos elementos na tela de Manet dialogam com a estética visual do Renascimento. A movimentação do espectador observada no século XIX contrasta com o lugar fixo que lhe era sugerido nos séculos XV e XVI. O espelho, aqui, produz um lugar de deslocamentos.

Em Magritte, o espelho revela paradoxalmente as partes do corpo que deveriam ser escondidas por ele. A face reflexiva do espelho expõe o que a face opaca oculta. Ele funciona segundo uma transparência estranha, que devolve a imagem do corpo em ângulos diferentes. Ainda assim, o espelho é lugar de exposição.

Nos três casos, observamos regularidades e diferenças. Em cada um deles, o elemento visual do espelho reafirma, no enunciado imagético, o discurso de posicionamento Cf. MAINGUENEAU, 2009, p.45) de sua escola artística: no caso de Velásquez, o espelho instaura o problema da representação; no caso de Manet, o espelho é símbolo de distorção; no caso de Magritte, ele revela a dimensão onírica e fantástica do discurso surrealista.

Consideramos que o princípio que rege o funcionamento dos reflexos é heterotópico, pois eles comportam-se como

[...] espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais [...] estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis (FOUCAULT, 2006b, p.415).

Neste mesmo ensaio, Outros espaços, Foucault atribui ao espelho o estatuto de experiência mista entre as utopias e as heterotopias. Ele é utopia porque seu reflexo é um espaço irreal que se abre virtualmente, e heterotopia porque torna o lugar que se ocupa diante do espelho ao mesmo tempo real (com relação ao espaço que envolve) e irreal (uma vez que, para ser percebida, a imagem passa pelo ponto virtual distante).

Dos seis princípios elencados por Foucault responsáveis por reger o funcionamento das heterotopias, constatamos que o espelho, na arte, aproxima-se muito do terceiro deles: "A heterotopia tem o poder de justapor em um só lugar real vários espaços, vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis" (FOUCAULT, 2006b, p.418). Na pintura de Velásquez, há justaposição do espaço do rei e do espectador no centro simbólico do quadro. Na pintura de Manet, há justaposição dos espaços entre o homem e a servente, dos espaços do pintor e do espectador, etc. Na pintura de Magritte, observamos a justaposição dos espaços da frente e de trás do corpo, do espaço visto e daquele ocultado.

Quando abordamos a pintura por meio da análise do discurso, observamos que, bem como em textos sincréticos, o interdiscurso é o responsável pela produção dos sentidos e das interpretações. No campo discursivo da arte, por exemplo, o espelho mobiliza toda uma memória derivada dos discursos de tipo científico que se debruçam sobre a simbologia:

Speculum (espelho) originou especulação: em sua origem, especular significava observar o céu e os movimentos das estrelas com a ajuda de um espelho. Sidus (estrela) originou igualmente consideração, que significa etimologicamente observar o conjunto das estrelas. Essas duas palavras abstratas, que designam hoje operações altamente intelectuais, enraízam-se no estudo dos astros refletidos em espelhos. Daí deriva que o espelho, enquanto superfície refletora, seja o suporte de um simbolismo extremamente rico na ordem do conhecimento [...]. Esses reflexos da inteligência ou da Fala celeste fazem o espelho aparecer como o símbolo da manifestação que reflete a Inteligência criativa25 25 "Speculum (miroir) a donné le nom de spéculation: à l'origine, spéculer c'était observer le ciel et les mouvements relatifs des étoiles, à l'aide d'un miroir. Sidus (étoile) a également donné considération, qui signifie étymologiquement regarder l'ensemble des étoiles. Ces deux mots abstraits, qui désignent aujourd'hui des opérations hautement intellectuelles, s'enracinent dans l'étude des astres reflétés dans des miroirs. De là vient que le miroir, en tant que surface réfléchissante, soit le support d'un symbolisme extrêmement riche dans l'ordre de la connaissance [...]. Ces reflets de l'intelligence ou de la Parole céleste font apparaître le miroir comme le symbole de la manifestation reflétant l'Intelligence créatrice". (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p.635-636; grifo do autor).

Nas três telas analisadas, reconhecemos facilmente dois discursos que atravessam o campo discursivo da arte, atuando no nível do interdiscurso: a) o discurso da física, que nos remete ao funcionamento de espelhos, reflexos, imagens; b) o discurso dos símbolos, que resgata a simbologia do espelho no campo da literatura, da mitologia, das artes plásticas, dos costumes.

Em suma, considerar a materialidade visual da pintura e sua atuação no interdiscurso significa desfazer o nó de discursos que se emaranham na produção do enunciado artístico, colocando em evidência a heterogeneidade discursiva, o pré-construído e as relações entre formações discursivas. Por outro lado, analisar o discurso estético com base na obra de M. Foucault, mais especificamente na intersecção do método arqueológico com a materialidade pictórica, tem se mostrado muito produtivo. Como afirmou Foucault (2007, p.217), "seria preciso mostrar que, em pelo menos uma de suas dimensões, ela [a pintura] é uma prática discursiva que toma corpo em técnicas e efeitos". Analisar pinturas segundo sua própria materialidade discursiva, caracterizada pela ausência de inscrições linguísticas explícitas, sob o mirante da análise do discurso francesa, leva ainda ao encontro do verbo na dimensão interdiscursiva que atravessa as materialidades e rege a produção de sentidos em uma sociedade. Analisamos objetos que demandam certos deslocamentos teóricos para sua compreensão. Ensaiamos, via Foucault (2002; 2004; 2006a), alguns caminhos possíveis sob a inspiração de Courtine: "é preciso interrogar outros enunciados além dos enunciados políticos [...] é preciso encontrar textos que incomodem" (2006, p.27; grifo do autor).

Recebido em 12/03/2013

Aprovado em 06/09/2013

  • CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do discurso Coord. de trad. F. Komesu. São Paulo: Contexto, 2006.
  • CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dictionnaire des symboles: mythes, rêves, coutumes, gestes, formes, figures, couleurs, nombres. Paris: Robert Laffont/Jupiter, 1982.
  • COURTINE, J.-J. Metamorfoses do discurso político: derivas da fala pública. Trad. Nilton Milanez e Carlos Piovezani Filho. São Carlos: Claraluz, 2006.
  • FERNANDES, C. A.; SANTOS, J. B. C. (Org.). Percursos da análise do discurso no Brasil São Carlos: Claraluz, 2007.
  • FOUCAULT, M. Isto não é um cachimbo Trad. J. Coli. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
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  • FOUCAULT, M. As damas de companhia. In: MOTTA, M. B. (Org.). Michel Foucault - Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006a. p.194-209. [Ditos & Escritos, v III]
  • FOUCAULT, M. Outros espaços. In: MOTTA, M. B. (Org.). Michel Foucault - Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006b. p.411-422. [Ditos & Escritos, v III]
  • FOUCAULT, M. A arqueologia do saber Trad. Luiz Felipe B. Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
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  • GOMBRICH, E. H. Histoire de l'art Paris: Phaidon, 2001.
  • GREGOLIN, M. R. Foucault e Pêcheux na análise do discurso: diálogos e duelos. São Carlos: Claraluz, 2006.
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  • PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. E. Orlandi et al. 4.ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2009.
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  • SARGENTINI, V.; NAVARRO-BARBOSA, P. (Org.). M. Foucault e os domínios da linguagem: discurso, poder, subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004.
  • TRIKI, R. Foucault en Tunisie. In: FOUCAULT, M. La peinture de Manet Paris: Editions de Seuil, 2004. p.51-64.
  • 1
    O discurso estético, ou discurso artístico (optamos por utilizá-los como sinônimos) de um certo momento histórico tem como referência variadas manifestações artísticas: a pintura, a escultura, a música, etc. Neste artigo, privilegiamos a pintura. Com base nas reflexões e noções propostas por D. Maingueneau (2009), podemos dizer que o objeto de nossas reflexões é o
    campo discursivo da arte observado a partir do mirante da escola francesa de análise do discurso com forte influência foucaultiana. Mais particularmente, trata-se de analisar três
    discursos de posicionamento em pintura: o discurso barroco, o discurso impressionista e o discurso surrealista. Procedendo dessa maneira, acabaremos por perceber
    os discursos de produção de uma categoria de locutores: aqueles dos pintores europeus com relação à escola artística a que se filiam, isto é, perceberemos a contribuição de Velásquez com relação ao barroco espanhol, a contribuição de Manet na determinação do impressionismo francês, e a contribuição de Magritte para o surrealismo belga.
  • 2
    Repetimos que M. Pêcheux não se aprofundou nas características específicas desses traços enunciativos.
  • 3
    A tradução brasileira baseia-se na versão francesa do artigo apresentado em primeira versão em alemão: "Metapher und Interdiskurs", in J. Link e U. Wulfing (Eds),
    Bewegung und Stillstand in Metaphern und Mythen, Stuttgart, Klett-Cota, 1984, p.93-99.
  • 4
    Segundo Pêcheux (1990b, p.10, grifo do autor), "[...] a ideologia religiosa, que dominava a formação sócio-histórica, feudal e monárquica, consistia essencialmente em administrar esta relação com o 'alhures' que a funda; ela representava este 'alhures', tornando-o visível através das cerimônias e das festas – inscrevendo-se aí os discursos – que colocavam em cena este corpo social unificado, radioso, transfigurado, que manifesta o
    inexistente constitutivo da sociedade feudal".
  • 5
    Campo discursivo, discursos de posicionamento e discursos de produção de uma categoria de locutor são noções encontradas em Maingueneau (2009, p.44-47).
  • 6
    "Em suas convergências e divergências, as propostas desses
    fundadores de discursividades dialogaram com outros textos teóricos e, desde os anos 60, desestabilizaram certezas sobre a língua, sobre o discurso, sobre o sujeito, sobre o sentido. Eles construíram as bases para que possamos pensar, hoje, nas relações entre a língua e o discurso, na não-evidência dos sentidos, nas articulações da subjetividade com a alteridade, nas determinações ideológicas, no diálogo, na intertextualidade, na interdiscursividade... Construíram a possibilidade de novos olhares para o texto, para os processos discursivos que os sustentam" (GREGOLIN, 2001, p.30; grifo do autor).
  • 7
    "Face à cette polémique du printemps 1966, il va en quelque sorte profiter de son retrait em Tunisie [...] pour présenter sa conception de la méthode archéologique (qui aboutira à
    L'archéologie du savoir, écrit à Sidi Bou Saïd en 1967-1968 et paru em 1969)".
  • 8
    "En fait, la beauté des œuvres de maturité de Velázquez repose tellement sur l'effet de la touche et sur l'harmonie délicate des couleurs que les illustrations donnent seulement une faible idée des originaux. [...] C'est pour des effets de cet ordre que les peintres impressionnistes admiraient Velázquez plus que tout autre maître ancien".
  • 9
    Citamos, por exemplo,
    Giovanni Arnolfini e sua mulher, de Jan van Eyck, 1434, óleo sobre madeira, 81,8x59,7cm, Londres, National Gallery. Cf. GOMBRICH, 2001, p.241.
  • 10
    "aussi peut-on dire que Manet et son groupe ont été les instigateurs d'une révolution dans le traitement des couleurs presque comparable à la révolution apportée par les Grecs dans le traitement des formes".
  • 11
    "Au séjour tunisien de Michel Foucault, qui se situe entre le mois de septembre 1966 et l'été 1968, il faut ajouter les visites de septembre 1968 et mai 1971 à Tunis. La conférence publique sur Manet donnée le 20 mai 1971 au Club culturel Tahar Haddad constitue, pourrait-on dire aujourd'hui, ici, la raison de cet intérêt pour la période tunisienne de Foucault, qui a été probablement aussi celle où il a entrepris un certain nombre d'études d'œuvres picturales, sous formes de cours".
  • 12
    "Le discours esthétique dont il est question sera proposé prudemment à la fin de
    L'archéologie du savoir, dans un long paragraphe à l'intérieur d'une partie intitulée «D'autres archéologies», qui traite de l'éthique et de la politique, et pose la question d'un savoir qui ne se donnerait pas nécessairement sous des figures épistémologiques. Foucault propose dans ce passage d'extraire le «dire» sans mot de la peinture, c'est-à-dire la dimension discursive, de la positivité d'un savoir qui la traverse et qui serait le fait de ce qu'aujourd'hui on nomme la science de l'art et la poiétique, mais qui surtout rappelle la période exemplaire de la Renaissance italienne où les théories scientifiques et les pratiques théoriques des peintres humanistes allaient de pair avec la mise en place de la nouvelle représentation picturale".
  • 13
    Publicada sob o título
    La peinture de Manet. Foi ministrada com algumas variantes em Milão (em 1967), em Tóquio e Florença (em 1970), e por fim em Túnis (em 1971). A versão impressa é baseada na última conferência, de Túnis. Cf. M. Saison (2004).
  • 14
    «L'énoncé moderniste, repensé à travers la perspective de l'archéologie foucaldienne, fait du champ de la représentation un champ auquel nous appartenons encore» (SAISON, 2004, p.15).
  • 15
    "[...] Manet abandonnait la méthode traditionnelle des ombres dégradées pour s'attacher à des contrastes plus rudes et plus énergétiques, ce fut un tollé parmi les artistes académiques".
  • 16
    Em 1863, o júri recusou-se a aparesentar suas obras (de Manet) no Salão oficial. Os protestos foram tantos que se decidiu apresentar todas as obras condenadas pelo júri numa exposição especial que se chamou "Salão dos recusados" (GOMBRICH, 2001, p.514). Original: "En 1863, le jury refusa de présenter ses oeuvres (de Manet) au Sallon officiel. Les protestations furent telles que l'on décida de présenter toutes les oeuvres condamnées par le jury dans une exposition spéciale que l'on nomma 'Salon des réfusés'"
  • 17
    "C'est le dernier des grand tableaux de Manet, c'est le
    Bar aux Folies-Bergère, qui se trouve actuellement à Londres. Tableau évidement dont je n'ai pas besoin de vous signaler l'étrangeté" (FOUCAULT, 2004, p.44).
  • 18
    "Le peintre occupe donc – et le spectateur est invité après lui à occuper – successivement ou plutôt simultanément deux place incompatibles: une ici et l'autre là".
  • 19
    "Or, il n'y a rien: l'éclairage vient de plein fouet, frappe sans obstacle ni écran aucun tout le corps de la femme et le marbre qui est là [...]".
  • 20
    "Pour vérifier cette hypothèse [selon laquelle la matérialité jouirait sur la mobilité du spectateur], nous devons entrer plus avant dans l'histoire de la place du spectateur qu'il [Foucault] esquisse, des
    Mots et les choses à « La peinture de Manet ». Dans la représentation classique, le spectateur se voit attribuer une place idéale et fixe d'où il peut aisément voir le spectacle représenté. Ce lieu, l'œuvre l'indique au spectateur de deux manières : par la perspective, certes, mais également par le regard des personnages représentés. C'est le cas de
    Les ménines de Vélasquez qui contient un autoportrait [...]. L'immobilisation du spectateur à mi-distance de l'œuvre participe d'une stratégie de dissimulation de la planéité initiale de son support" (MARIE, 2004, p.84).
  • 21
    "Il a compris toutefois que ce qu'il fait n'est pas de copier la réalité, mais plutôt de créer une nouvelle réalité, comme nous faisons dans nos rêves, même si nous ne savons pas comment nous y parvenons".
  • 22
    É interessante notar que o espelho é um símbolo feminino (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1982).
  • 23
    "[...] beaucoup de ses images oniriques, peintes avec une précision méticuleuse et exposées avec des titres énigmatiques, sont mémorables précisément parce qu'elles sont inexplicables".
  • 24
    "place panoptique du peintre et du spectateur, régime interne des lumières, mise en rapport des personnages rendue par leur distribution spatiale et par celle de leur regard."
  • 25
    "Speculum (miroir) a donné le nom de
    spéculation: à l'origine, spéculer c'était observer le ciel et les mouvements relatifs des étoiles, à l'aide d'un miroir. Sidus (étoile) a également donné
    considération, qui signifie étymologiquement regarder l'ensemble des étoiles. Ces deux mots abstraits, qui désignent aujourd'hui des opérations hautement intellectuelles, s'enracinent dans l'étude des astres reflétés dans des miroirs. De là vient que le miroir, en tant que surface réfléchissante, soit le support d'un symbolisme extrêmement riche dans l'ordre de la connaissance [...]. Ces reflets de l'intelligence ou de la Parole céleste font apparaître le miroir comme le symbole de la
    manifestation reflétant l'Intelligence créatrice".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Dez 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      12 Mar 2013
    • Aceito
      06 Set 2013
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