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Complexo de Carney: relato de um caso e revisão da literatura

Carney complex: a case report and literature review

Resumos

Complexo de Carney (CNC) pode ser definido como uma forma de neoplasia endócrina múltipla familial associada a alteração de pigmentação cutânea e de mucosa, doença nodular pigmentosa primária das adrenais, mixomas cardíacos e cutâneos, adenomas hipofisários produtores de GH e PRL, neoplasia testicular, adenoma ou carcinoma de tireóide, além de cistos ovarianos. CNC tem herança autossômica dominante e possui manifestações clínicas que são, em alguns aspectos, similares às da síndrome de McCune-Albright. Recentemente, genes envolvidos na via de sinalização dependente de AMPc foram implicados na etiologia do CNC. Vamos apresentar, inicialmente, um caso de um paciente masculino de 17 anos com doença adrenal nodular pigmentosa, lentiginose facial e osteoporose severa. A seguir, procuramos analisar os aspectos clínicos e a genética molecular do CNC, assim como descrever os critérios diagnósticos e recomendações para o seguimento.

Complexo de Carney; Síndrome de Cushing; Doença adrenal nodular pigmentosa; PKA


Carney complex (CNC) is a familial multiple neoplasia syndrome associated with abnormal skin and mucosal pigmentation, primary pigmented nodular adrenocortical disease (PPNAD), cardiac and cutaneous myxomas, GH and PRL pituitary adenoma, testicular tumors, thyroid adenoma or carcinoma and ovarian cysts. CNC is inherited as an autosomal dominant trait and has some clinical similarities to McCune-Albright syndrome. Recently, genes related to stimulation of the cAMP signaling pathway have been considered candidates for causing CNC. We report a 17-yr-old man with PPNAD, lentigines on the face and severe osteoporosis. In this article we aim at describing the clinical aspects and molecular genetics of CNC and also summarizing diagnostic criteria for CNC and recommendations for follow-up.

Carney complex; Cushing's syndrome; Primary pigmented nodular adrenocortical disease; PKA


CASO ESPECIAL

Complexo de Carney: relato de um caso e revisão da literatura

Carney complex: a case report and literature review

Madson Q. de Almeida; Maria C. B. F. Villares; Berenice B. de Mendonça

Serviço de Endocrinologia e Metabologia do Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Maria Adelaide A. Pereira Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar 255PAMB, 8º andar, Bloco 3 05403-000 São Paulo, SP Fax: (11) 3088-6964 E-mail: slmnendoc@hcnet.usp.br

RESUMO

Complexo de Carney (CNC) pode ser definido como uma forma de neoplasia endócrina múltipla familial associada a alteração de pigmentação cutânea e de mucosa, doença nodular pigmentosa primária das adrenais, mixomas cardíacos e cutâneos, adenomas hipofisários produtores de GH e PRL, neoplasia testicular, adenoma ou carcinoma de tireóide, além de cistos ovarianos. CNC tem herança autossômica dominante e possui manifestações clínicas que são, em alguns aspectos, similares às da síndrome de McCune-Albright. Recentemente, genes envolvidos na via de sinalização dependente de AMPc foram implicados na etiologia do CNC. Vamos apresentar, inicialmente, um caso de um paciente masculino de 17 anos com doença adrenal nodular pigmentosa, lentiginose facial e osteoporose severa. A seguir, procuramos analisar os aspectos clínicos e a genética molecular do CNC, assim como descrever os critérios diagnósticos e recomendações para o seguimento.

Descritores: Complexo de Carney; Síndrome de Cushing; Doença adrenal nodular pigmentosa; PKA

ABSTRACT

Carney complex (CNC) is a familial multiple neoplasia syndrome associated with abnormal skin and mucosal pigmentation, primary pigmented nodular adrenocortical disease (PPNAD), cardiac and cutaneous myxomas, GH and PRL pituitary adenoma, testicular tumors, thyroid adenoma or carcinoma and ovarian cysts. CNC is inherited as an autosomal dominant trait and has some clinical similarities to McCune-Albright syndrome. Recently, genes related to stimulation of the cAMP signaling pathway have been considered candidates for causing CNC. We report a 17-yr-old man with PPNAD, lentigines on the face and severe osteoporosis. In this article we aim at describing the clinical aspects and molecular genetics of CNC and also summarizing diagnostic criteria for CNC and recommendations for follow-up.

Keywords: Carney complex; Cushing's syndrome; Primary pigmented nodular adrenocortical disease; PKA

O OBJETIVO DESSA DISCUSSÃO FOI FAZER uma revisão sobre os aspectos clínicos, laboratoriais e genéticos dos pacientes portadores de complexo de Carney (CNC). Inicialmente será apresentado um paciente com síndrome de Cushing causada por doença nodular pigmentosa primária das adrenais e lentiginose, atendido pelo Grupo de Desenvolvimento do Serviço de Endocrinologia e Metabologia do HCFMUSP, e que motivou esta revisão.

APRESENTAÇÃO DO CASO

Dr. Madson Queiroz de Almeida (médico residente do Serviço de Endocrinologia e Metabologia do HCFMUSP)

Paciente de 17 anos, do sexo masculino, com aumento de peso (10kg), aparecimento de estrias violáceas no abdômen, acne e pletora facial há cerca de 2 anos. Apresentava lentiginose em face desde os 9 anos. Exame Físico: peso=76kg, altura=165cm, IMC= 28kg/m2 e PA=160/120mmHg. Fácies cushingóide, pletora facial, preenchimento de fossas supraclaviculares, giba, pele atrófica e estrias violáceas em abdômen, tórax e membros. Presença de lentiginose facial em região peripalpebral, conjuntiva e lábios (lesões hipermelanocíticas que acometem áreas atípicas) (figura 1). Antecedentes familiares: pais não consangüíneos; avó paterna, pai, duas irmãs, três tias paternas e vários primos com lentiginose; filha de tia paterna com puberdade precoce e baixa estatura.


Avaliação laboratorial:

Cortisol basal: 26mg/dL (VN: 7-31)

ACTH: < 5pg/mL (VN: <60)

Cortisol urinário: 2809mg/24h (VN: 30-300)

Cortisol pós-dexametasona 1mg: 22mg/dL

Androstenediona: 9,5ng/ml (VN: 0,8-2,8)

DHEAS: 2679ng/ml (VN: 678-4127)

PRL: 7,7ng/mL (VN: <14,5)

Testosterona: 433ng/dL (VN: 271-965)

GH: 0,5ng/mL (VN: <5)

IGF-1: 261ng/mL (VN: 210-659).

Metabolismo ósseo:

Cálcio: 9,8mg/dL (VN: 8,5-10,5)

Fósforo: 3,5mg/dL (VN: 2,3-4,6)

Cálcio urinário: 72mg/24h (VN: 100-300)

PTH: <18pg/mL (VN: <62).

Densitometria óssea:

coluna (L1-L4): 0,5969g/cm2 (T: -4,75 dp) e

fêmur total: 0,792g/cm2 (T: -2,16 dp).

Avaliação radiológica:

1) Tomografia computadorizada (TC) de abdômen: adrenal direita de dimensões normais e adrenal esquerda com um micronódulo de 0,8mm;

2) Ressonância magnética (RM) de abdômen: adrenal direita normal e adrenal esquerda de dimensões aumentadas com aspecto micronodular. As imagens em T1 fora de fase, sem supressão de gordura, evidenciam melhor o aspecto micronodular da adrenal esquerda (figura 2);

3) RM de hipófise: normal.


Feito o diagnóstico de síndrome de Cushing ACTH-independente sem imagem de tumor adrenal. Como o paciente era portador de lentiginose, tinha história familiar desse tipo de alteração e apresentava doença nodular adrenal primária, foi feita a hipótese diagnóstica de síndrome de Cushing associada ao complexo de Carney. Realizado o rastreamento para tumores cardíacos, testiculares e tireóideos, que resultou negativo. O ecocardiograma evidenciou disfunção diastólica de ventrículo esquerdo e ausência de mixomas. Os exames de ultrassonografia de testículos e tireóide foram normais.

O paciente foi submetido a adrenalectomia bilateral em dois tempos cirúrgicos e foi mantido com doses substitutivas de acetato de cortisona e acetado de fludrocortisona.

O exame anátomo-patológico das adrenais revelou: Macroscopia: adrenal esquerda de dimensões aumentadas e adrenal direita de dimensões normais, com ambas apresentando micronódulos pigmentados de coloração enegrecida ao corte seccional. Microscopia: na coloração por HE, observamos a presença de micronódulos com componente lipomatoso importante localizados principalmente na junção córtico-medular. Na coloração Fontana-Masson, específica para melanina, observamos a presença de pigmento negro dentro dos nódulos (figura 3).


Portanto, a cirurgia confirmou a suspeita clínica de síndrome de Cushing causada por doença nodular pigmentosa das adrenais. A associação com a lentiginose facial permitiu o diagnóstico final de complexo de Carney.

Heredograma da família: o paciente apresenta lentiginose com PPNAD; a avó paterna, todos os tios paternos, o pai, as duas irmãs e todos os primos têm lentiginose facial; o pai, as duas irmãs e uma prima apresentaram teste de supressão com 1mg de dexametasona negativo; essa prima tem lentiginose e antecedente de puberdade precoce com menarca aos 9 anos, tendo procurado atendimento médico por baixa estatura.

Como os familiares apresentam lentiginose facial e têm um parente de primeiro grau afetado, eles preenchem, como veremos a seguir, os critérios para o diagnóstico de complexo de Carney (figura 4).


COMPLEXO DE CARNEY (CNC)

Aspectos Clínicos

Embora a primeira descrição de síndrome de Cushing associada a nódulos hiperpigmentados nas adrenais tenha sido feita por Chute e col. em 1949 (1), apenas em 1967 surge, na literatura, a discussão sobre uma nova etiologia para a síndrome de Cushing, quando Meador e cols. (2) descrevem caso de uma paciente de 14 anos de idade com síndrome de Cushing associada a ACTH indetectável, hipercortisolismo não responsivo a administração de metopirona, doses altas de dexametasona e ACTH, e sem evidência de tumores hipofisário, adrenal ou extra-hipofisário. Essa paciente foi submetida a adrenalectomia bilateral e o anátomo-patológico revelou glândulas de tamanho normal com vários nódulos escuros, menores que 2mm, dispersos no córtex adrenal. Os autores fazem uma revisão da literatura, detectam 7 casos com características laboratoriais e patológicas que poderiam se assemelhar àquelas da paciente descrita e propõem o termo "Displasia Nodular Adrenocortical Primária" para descrever essa nova etiologia de síndrome de Cushing independente de ACTH (2).

Posteriormente, pesquisadores do National Institutes of Health (NIH) descrevem 2 pacientes de 19 e 23 anos portadores de doença adrenal micronodular com síndrome de Cushing associada a osteopenia severa. A avaliação laboratorial demonstrava independência do hipercortisolismo ao ACTH e o estudo anátomo-patológico das adrenais revelava glândula contendo nódulos pequenos, de coloração escura, distribuídos uniformemente no córtex com atrofia do tecido internodular. A revisão de 10 casos de doença semelhante, já descritos na literatura, mostrava que os pacientes eram jovens, com idade média de 20 anos (14 a 37 anos), hipercortisolismo de gravidade variável e osteoporose importante em mais de 50% dos casos. Foi proposto tratar-se de uma doença adrenal primária de etiologia a esclarecer que diferia da hiperplasia adrenal micro ou macronodular secundária, já que, nesta última eventualidade, a idade dos pacientes era maior, o hipercortisolismo era dependente do ACTH, os eventuais nódulos adrenais não apresentavam pigmentação e o tecido internodular era hiperplásico (3).

Nova revisão do tema, realizada cerca de 10 anos após essa, identifica 30 casos da doença descritos até esta data. A partir da análise desses casos, os autores procuram estabelecer as características clínicas e patológicas dessa nova doença adrenal primária.

Tratava-se de quadro de hipercortisolismo de início precoce, em geral na infância ou adolescência (7 dias a 29 anos), associado, com freqüência, a presença de osteoporose. A avaliação laboratorial demonstrava ACTH suprimido, cortisol não responsível a doses elevadas de dexametasona e resposta variável ao ACTH. A avaliação radiológica hipofisária não revelava tumor e a TC das adrenais evidenciava glândula de tamanho normal ou minimamente aumentado.

A lesão adrenal era sempre bilateral com as características macro e microscópicas já descritas por Ruder e cols. (3), com a diferença para a possibilidade de não haver atrofia cortical internodular em alguns casos, principalmente nos pacientes muito jovens. O tratamento indicado foi a adrenalectomia bilateral e não ocorreu desenvolvimento de hiperpigmentação ou síndrome de Nelson, mesmo após longo seguimento, o que sugere que a doença é independente do ACTH, não existindo nenhuma doença hipofisária subjacente. Os autores chamavam a atenção para o fato de existir 4 famílias com mais de um membro afetado e que, em três delas, havia outras doenças associadas, como mixomas cardíacos e cutâneos, tumores de testículo e hiperpigmentação de pele (4).

Em 1984, o termo PPNAD (primary pigmented nodular adrenocortical disease) foi sugerido para identificar esta nova doença e, novamente, foi ressaltada a associação com outros tumores e hiperpigmentação de pele (5). Revisão detalhada, macro e microscópica, das adrenais de 8 pacientes portadores dessa doença, realizada por pesquisadores do NIH, também permitiu concluir que a denominação mais adequada fosse PPNAD, e sugere que as denominações anteriores, como displasia adrenal bilateral, hiperplasia micronodular adrenal, hiperplasia adenomatosa adrenal etc, fossem abandonadas, já que a doença não era uma patologia pré-maligna como o nome displasia poderia sugerir, não existia, em geral, hiperplasia e, sim, atrofia do córtex adrenal internodular, podiam existir macronódulos e não havia evidências de que os nódulos fossem adenomatosos ou neoplásicos. Os autores também chamam a atenção para a possibilidade de associação da PPNAD com outras doenças e para a ocorrência de casos familiares (6).

Em 1985, Carney e cols., que indagavam sobre o significado da ocorrência de doenças raras, como PPNAD e mixomas cardíacos, em um mesmo paciente e, ocasionalmente, em uma mesma família, fazem levantamento dos pacientes, atendidos na Mayo Clinic e em outros serviços, com pelo menos duas das seguintes condições: síndrome de Cushing, mixomas cardíacos, mixomas cutâneos, fibroadenoma mamário mixóide e manchas hiperpigmentadas na pele. Detectam 40 pacientes, 16 homens e 24 mulheres, com idades que variavam entre 3 e 42 anos quando a primeira condição foi diagnosticada, e verificam que 10 pacientes (25%) tinham casos de doenças semelhantes na família.

Setenta e dois por cento dos pacientes tinham mixomas cardíacos, com idade de detecção da neoplasia variando de 10 a 40 anos (média: 24,4 anos e mediana: 25 anos); os tumores eram únicos em 16 pacientes e múltiplos em 13, podendo, neste último caso, ser assincrônicos, e localizavam-se, preferencialmente, nos átrios, embora tenha sido registrada a sua ocorrência em câmaras ventriculares. Anormalidades cutâneas ocorreram em 80% dos pacientes, sendo que 14 pacientes tinham lesões hiperpigmentadas, 6 tinham mixomas e 12 tinham ambas as condições; as lesões hiperpigmentadas, ou lentiginose, eram escuras (marrons ou negras), em geral pequenas e se distribuiam na face, incluindo região perioral e periorbitária, pálpebras, orelha, lábios, tronco, conjuntiva ou esclera, vulva e, menos freqüentemente, em membros inferiores e superiores; essas lesões eram precoces, podendo aparecer desde o nascimento ou ser percebidas mais tardiamente. Mixomas cutâneos estavam presentes em 45% dos pacientes; a maioria desses tumores são múltiplos, com idade de aparecimento variando de 2 a 38 anos (média: 17,7 anos); sua principal localização era palpebral, mas podiam se localizar, em ordem decrescente de freqüência, em mamilos, couro cabeludo, face, orelhas, axila, tronco, membros, períneo, palato e língua.

Dezoito pacientes (45%) tinham PPNAD, sendo que o diagnóstico foi feito após adrenalectomia para tratamento de síndrome de Cushing em 11 pacientes e, na autópsia, em 7 pacientes que não apresentavam hipercortisolismo clínico; a idade de aparecimento dos sintomas variou de 8 a 19 anos, e a idade média da exploração cirúrgica das adrenais ou da autópsia foi de 19,1 e 23,3 anos, respectivamente. Tumores mamários estavam presentes em 10 pacientes (25%) do sexo feminino, com idades de 20 a 27 anos; tratavam-se de tumores benignos (fibroadenoma mixóide), bilaterais e múltiplos, variando de 2mm a 2cm. Nove pacientes (56% dos pacientes do sexo masculino) apresentavam tumores de testículos, freqüentemente bilaterais e multicêntricos, com idade do diagnóstico variando de 5 a 33 anos (média: 16,7 anos); esses tumores eram de células de Sertoli (LCCSCT: large-cell calcifying Sertoli cell tumor) ou, menos comumente, de células esteroídicas (células de Leydig ou tumores de restos adrenais), podendo estar associados a hiperprodução hormonal. Quatro pacientes (10%) tinham tumores hipofisários produtores de GH, com o início dos sintomas ocorrendo dos 11 aos 27 anos. Outras condições, relatadas com menor freqüência, foram: tumores de tireóide benignos e malignos (3 pacientes), tumores neuroectodérmicos pigmentados calcificados (2 pacientes), leiomioma uterino (1 paciente), neuroma acústico (1 paciente), teratoma ovariano cístico (1 paciente), cisto ovariano (1 paciente). Os autores verificaram que o primeiro sintoma ou sinal que levou ao diagnóstico foi mixoma cardíaco em 17 pacientes, PPNAD em 8 pacientes, tumores de testículo em 6 pacientes, alterações de pele, do tipo hiperpigmentação e mixomas, em 4 pacientes e fibroadenoma de mama em 2 pacientes. Embora essas alterações fossem aquelas que levaram o paciente a procurar atendimento médico, a lentiginose estava presente em 16 pacientes antes da detecção de qualquer outra condição. Ficou evidente, a partir dessa revisão, que doenças aparentemente diferentes e não relacionadas, como mixomas cardíacos e cutâneos, fibroadenoma de mama, lesões pigmentadas de pele (lentiginose e nevos azuis), doenças endócrinas (PPNAD, tumores de testículo e tumores de hipófise), tivessem uma conexão causal. Nessa síndrome, a doença é bilateral quando acomete órgãos pares (adrenal, mama e testículo) e pode acometer indivíduos de uma mesma família, que são dados sugestivos de uma base genética na sua patogênese (7). Desde então, a síndrome passou a ser denominada de complexo de Carney.

Posteriormente, outras doenças como tumores de tireóide e ovarianos também foram associadas ao complexo de Carney (8,9).

Mais recentemente, em 2001, Stratakis, Kirschner e Carney fazem extensa revisão de 338 pacientes descritos na literatura com complexo de Carney, estabelecendo os critérios diagnósticos para a síndrome e definindo as recomendações para avaliação dos pacientes e familiares (10). Os dados que daremos a seguir são referidos neste trabalho.

Do ponto de vista demográfico, os pacientes se distribuem eqüitativamente quanto ao sexo, com 144 (43%) homens e 194 (57%) mulheres. A idade média ao diagnóstico foi 20 anos, com 5 casos diagnosticados ao nascimento.

Nos casos familiares, a transmissão ocorreu de forma autossômica dominante, e 74% dos pacientes pertencem a 67 famílias afetadas. Casos esporádicos representam apenas 26% dos pacientes.

Do ponto de vista clínico, a manifestação mais freqüente do complexo de Carney é pigmentação cutânea, que acomete 77% dos pacientes. Mixomas cardíacos e cutâneos acometem, respectivamente, 53% e 33% dos pacientes, enquanto PPNAD 26% deles.

Outras manifestações são: tumores de células de Sertoli (23%), acromegalia clinicamente evidente (10%), schwanoma melanótico (10%), nódulos tireóideos (5%) e adenoma ductal de mama em 1% (tabela 1).

Com relação à idade de detecção do primeiro componente do complexo, os autores verificaram que a maioria dos sinais e sintomas aparece na infância, mas podem ocorrer mais tardiamente. As manchas cutâneas podem estar presentes desde o nascimento, mas a lentiginose, que é a alteração cutânea característica da síndrome, não assume a densidade, distribuição e intensidade típicas até o período peripuberal. Nevos azuis, manchas café-com-leite e lesões despigmentadas podem aparecer desde o nascimento ou nos primeiros anos de vida. Os tumores testiculares de células de Sertoli e os nódulos de tireóide aparecem, em geral, nos primeiros 10 anos de vida. Os mixomas cardíacos e cutâneos podem aparecer em qualquer idade. A PPNAD tem uma distribuição bimodal com relação à idade, podendo aparecer nos primeiros 2 a 3 anos de vida, enquanto a maioria se manifesta na segunda ou terceira década.

Os mixomas cardíacos ocorrem numa idade mais precoce do que os esporádicos, são multicêntricos, podendo acometer todas as cavidades cardíacas, principalmente o átrio esquerdo, e constituem a principal causa de óbito no complexo de Carney. O quadro clínico mais freqüente é obstrução mitral, em 67% dos casos. Fenômenos embólicos, tanto em território sistêmico como em circulação pulmonar, podem acometer 29% dos pacientes. Sintomas gerais como febre e artralgia, relacionados à produção de interleucina 6 pelo mixoma, podem ocorrer em 34% dos casos, e 10% dos pacientes são assintomáticos.

Cinqüenta e um porcento dos pacientes com mixoma cardíaco têm duas ou mais cirurgias por recorrência do tumor. Os mixomas cutâneos são tumores, freqüentemente, múltiplos e bilaterais, ocorrendo, classicamente, em pálpebras, canal auditivo externo e aréola mamária, mas podendo acometer mama, orofaringe, trato genital e pelve feminina.

A PPNAD é a manifestação endócrina mais comum, ocorrendo, principalmente, em adultos jovens que podem se apresentar com síndrome de Cushing típica ou atípica (osteoporose severa, baixa estatura e atrofia muscular), subclínica ou periódica. Evidência histológica de PPNAD tem sido encontrada em quase todos os pacientes em estudos de autópsia, indicando que a incidência descrita de 26% é, provavelmente, um dado subestimado. A intensidade da osteoporose na doença nodular pigmentosa das adrenais está, provavelmente, relacionada ao período prolongado e insidioso do hipercortisolismo, que pode ter tido início no período pré-puberal. Os autores demonstraram que 9 de 13 pacientes com PPNAD responderam ao teste de Liddle (depressão com doses altas de dexametasona) com aumento de 50% ou mais dos níveis de cortisol urinário livre. No entanto, esse teste apresenta uma baixa sensibilidade e especificidade na diferenciação da PPNAD de outras causas de síndrome de Cushing ACTH-independente, já que os pacientes com hiperplasia macronodular e adenoma adrenal também podem apresentar aumento paradoxal nos níveis de cortisol urinário, após a dose de dexametasona.

Os tumores de células de Sertoli calcificados (LCCSCT) são multicêntricos e bilaterais e ocorrem em 33% dos pacientes do sexo masculino. Essa freqüência pode ser subestimada, já que a ultrassonografia (USG) identifica microcalcificações testiculares na maioria dos pacientes adultos com complexo de Carney. O tumor de células de Sertoli pode apresentar uma maior expressão da P450 aromatase, com conseqüente aumento da produção de estrógenos e quadro de ginecomastia e puberdade precoce. Vinte e seis pacientes com complexo de Carney e LCCSCT foram estudados por Wachescka e cols. (11), a fim de determinar o curso natural desses tumores e definir qual a melhor forma de tratamento que, até a conclusão deste estudo, era orquiectomia na maioria dos casos.

A idade dos pacientes variou de 4 a 51 anos. O tumor foi bilateral em 61% dos casos, apresentando-se principalmente como uma massa testicular assintomática.

Ginecomastia estava associada a 19%, puberdade precoce a 15% e infertilidade a 8% dos casos. Não houve relação com criptorquidismo, radiação ou tumores de células germinativas. O seguimento desses pacientes indicou que esses tumores apresentam curso indolente e baixo potencial metastático. O tratamento desses tumores deve ser realizado de forma conservadora através de acompanhamento ultrassonográfico, com indicação de orquiectomia somente nos casos com ginecomastia e puberdade precoce, que não respondem adequadamente aos inibidores da aromatização. Outros tumores testiculares que podem ocorrer no complexo de Carney, em geral associados aos LCCSCT, são os tumores de células de Leydig e de restos adrenais testiculares.

Stratakis e cols. (8) investigaram a possibilidade de desenvolvimento de tumores ovarianos em 18 pacientes com complexo de Carney por um período médio de seguimento de 35 meses, evidenciando que 67% das pacientes estudadas apresentaram pelo menos uma USG pélvica com cistos ovarianos, com progressão das lesões e indicação cirúrgica em dois casos.

O anatomopatológico mostrou a presença de cistoadenoma seroso nesses casos. Ao contrário dos tumores testiculares, os tumores ovarianos no complexo de Carney derivam do epitélio de superfície. Existem alguns casos descritos na literatura de pacientes do sexo feminino com complexo de Carney e antecedente de puberdade precoce; contudo, não existe descrição da avaliação hormonal dessas pacientes a fim de definir se o quadro era dependente ou não de gonadotrofinas e se existia associação com cistos ovarianos (8).

Acromegalia, clinicamente evidente, é uma manifestação infreqüente no complexo de Carney, acometendo 10% dos pacientes, principalmente após a 3ª década de vida. Elevação assintomática de IGF-1 e prolactina podem ocorrer em 75% dos casos, e alterações bioquímicas discretas podem ser evidenciadas no teste de tolerância à glicose oral (TTGo) ou no teste do TRH, o que pode indicar a presença de alterações subclínicas decorrentes de hiperplasia somatotrófica precedendo o desenvolvimento do tumor e explicar o período insidioso para o estabelecimento de acromegalia nos pacientes com complexo de Carney. Em 2000, Pack e cols. (12) estudaram 8 pacientes acromegálicos, que foram submetidos a cirurgia transesfenoidal. Quatro pacientes apresentaram acromegalia como manifestação inicial e quatro desenvolveram quadro clínico evidente com 5 anos de seguimento, embora já tivessem níveis elevados de GH e IGF-1.

Os pacientes com microadenoma evoluíram com um percentual de cura maior do que os pacientes com macroadenoma. A imuno-histoquímica foi positiva para GH e prolactina em todos os pacientes, e nos casos onde foi analisado o tecido peritumoral hipofisário foi detectada a presença de hiperplasia peritumoral com imuno-histoquímica positiva para GH e prolactina. Esse trabalho não mostra dados com relação ao índice de recorrência durante o seguimento (12).

Tumores de tireóide, comprovados histologicamente, ocorreram em 11 dos 338 pacientes (6 adenomas foliculares, 3 carcinomas papilíferos e 2 carcinomas foliculares). Esta incidência de 1,4% de carcinoma é bem maior que a incidência anual de carcinomas de tireóide na população geral, que varia de 0,5 a 10 casos por 100 mil habitantes. Rastreamento com USG de tireóide revela anormalidades tireóideas, principalmente nódulos sólidos hipoecóicos bilaterais, em até 75% dos pacientes.

Schwannoma melanótico foi descrito em 33 pacientes (10%), sendo maligno em 6 casos. Acomete principalmente o trato gastrointestinal (esôfago e estômago), cadeia simpática paraespinhal e sistema nervoso periférico. São tumores ricos em melanina, freqüentemente calcificados e multicêntricos. Sintomas sugestivos de tumores nestas localizações devem motivar a realização de imagens de medula espinhal, tórax, abdômen e pelve.

Tumores mamários também estão associados ao complexo de Carney. Adenoma ductal mamário foi detectado em 6 pacientes, sendo bilateral em 3 casos. Outro componente do complexo de Carney é o osteocondromixoma. Na literatura, existem 4 casos descritos, um dos casos diagnosticado logo após o nascimento. Os demais casos foram diagnosticados em torno do primeiro ano de vida. Em dois pacientes, foi realizada ressecção sem recidiva tumoral durante o seguimento. Em um dos casos foi realizada somente biópsia, não havendo progressão da lesão. O único óbito foi relacionado a complicações locais do osteocondromixoma (localizado na órbita) (13).

Foram estabecidos critérios maiores e suplementares para os diagnósticos de complexo de Carney (tabela 2). Em resumo, o paciente é considerado portador do complexo se tiver dois critérios maiores ou um critério maior associado a um dos critérios suplementares. Alguns achados, como os apresentados na tabela 3, podem sugerir a doença e devem motivar a pesquisa clínica, laboratorial e familiar do complexo.

Os autores sugerem como deve ser feito o seguimento dos pacientes com complexo de Carney: 1) Para pacientes peripuberais e adultos de ambos os sexos, é recomendado que sejam feitos os seguintes estudos anuais: ecocardiograma, determinação de cortisol urinário e IGF-1. A detecção de síndrome de Cushing ou acromegalia subclínica pode exigir testes complementares mais sofisticados (ritmo de cortisol, teste de supressão com 1mg de dexametasona, TTGo, TRH, RM de hipófise etc.). Os pacientes do sexo masculino devem ser submetidos à avaliação inicial com USG testicular; microcalcificações sugestivas de LCCSCT devem ser seguidas com USG anual. USG de tireóide deve ser feita na avaliação inicial e repetida se necessário. Em pacientes do sexo feminino, a USG pélvica deve ser feita na avaliação inicial e repetida apenas quando necessária, devido ao baixo risco de malignidade das alterações ovarianas. 2) Para pacientes pediátricos, são recomendados os seguintes estudos: ecocardiograma durante os primeiros 6 meses de vida e anualmente a partir de então; ecocardiograma bianual pode ser recomendado para pacientes que já foram submetidos à cirurgia de mixoma. A presença de tumor testicular deve ser pesquisada com USG e os pacientes devem ser seguidos cuidadosamente com avaliação de taxa de crescimento, estadiamento puberal e presença de ginecomastia; qualquer alteração detectada deve motivar a avaliação laboratorial e da idade óssea. Como as outras alterações endócrinas somente se tornam clinicamente evidentes após a segunda década, a exploração de síndrome de Cushing ou acromegalia, em um paciente assintomático, não é considerada necessária.

A expectativa de vida dos pacientes com complexo de Carney é reduzida. Cinqüenta e um pacientes (15%) foram a óbito, 57% em decorrência de causas cardíacas, diretamente relacionadas ao mixoma em 25% dos casos, fenômenos embólicos em 12% e complicações de cirurgia cardíaca em 10%. Sete (14%) óbitos foram relacionados a schwanoma melanótico maligno. Outras causas de óbito estão relacionadas na tabela 4.

Genética Molecular do Complexo de Carney

Cerca de um ano após a publicação que descreveu a síndrome, Carney e col. determinaram que o complexo mixomas, pigmentação cutânea e hiperatividade endócrina é herdado através de herança autossômica dominante (14). Posteriormente, em 2000, dois grupos demonstraram de forma independente que o gene da PRKAR1A (protein kinase A type 1a regulatory subunit), localizado na banda 24 do braço longo do cromossomo 17, confere susceptibilidade ao complexo de Carney (15,16).

Kirschner estudou 53 pacientes com complexo de Carney, 34 casos familiais e 20 esporádicos, identificando 15 mutações distintas do gene da PRKAR1A em 22 (41%) dos 54 casos estudados: 44% dos casos familiais e 35% dos esporádicos apresentaram a mutação, não existindo diferença na incidência da mutação em casos familiais e esporádicos. Não existe correlação entre as manifestações clínicas e o tipo de mutação apresentada pelo paciente. A penetrância para o defeito da PRKR1a é de 98%, somente um caso com mutação não preenchia critérios para o diagnóstico (17).

Como uma mutação deste tipo promoveria as alterações clínicas descritas no complexo de Carney? As manifestações clínicas do complexo são, de alguma forma, similares às da síndrome de McCune-Albright e, como não foram detectadas mutações da proteína Gsa, o defeito de sinalização do AMPc poderia estar localizado em uma etapa posterior, após a produção do AMPc. Como o complexo da proteína kinase (PKA) tem papel importante na sinalização dependente de AMPc, tornou-se um potencial candidato na etiologia do complexo de Carney.

Após a ativação dos receptores ligados à proteína Gsa, ocorre aumento dos níveis de AMPc. O complexo PKA é um tetrâmero constituído de duas subunidades regulatórias e duas subunidades catalíticas. Após ativação da PKA pelo AMPc, ocorre dissociação das subunidades regulatórias e catalíticas, que se difundem para o núcleo. As subunidades catalíticas dissociadas são enzimaticamente ativas e fosforilam o fator transcricional CREB no seu resíduo serina. O CREB é uma proteína ligadora de uma seqüência de nucleotídeos dos genes responsivos ao AMPc. Após a ativação do CREB pela fosforilação, eles se dimerizam e ligam-se ao DNA, estimulando, assim, a transcrição dos genes que são responsivos ao AMPc (18).

O gene da PRKAR1a funciona como um gene supressor tumoral através da regulação da atividade da PKA. O aumento da atividade da subunidade catalítica, devido à perda da função da subunidade regulatória, promove proliferação celular em vários tecidos. A hiperfunção endócrina e o surgimento de neoplasias, como adenomas de tireóide e hipofisário, estão relacionados ao aumento da atividade da PKA. Outro fator importante é que a ativação dos receptores do a-MSH, através do aumento da atividade da PKA, estimula a enzima tirosina hidroxilase, aumentando a síntese de melanina que é responsável pela hiperpigmentação cutânea e adrenal nos pacientes com complexo de Carney (figura 5).


O gene da PRKR1a é constituído de 11 exons. A maioria das mutações descritas concentram-se principalmente em dois exons, o exon 2 que é o maior e apresenta 4 das mutações descritas, e o exon 6 que é o terceiro maior e possui 3 mutações descritas. A deleção GT no nucleotídeo 578 do exon 4 constitui o defeito genético mais freqüente, acometendo 27% dos pacientes que apresentam a mutação. Até o momento não foram descritas mutações nos exons 1, 3, 9, 10 e 11 (figura 6).


As mutações frameshift, entre elas a deleção GT do nucleotídeo 578 do exon 4, e as mutações nonsense levam a um stop codon com a produção de uma proteína truncada. O efeito das mutações intrônicas ainda não foi elucidado, porém um mecanismo similar é esperado nesses casos.

Essas mutações descritas são germinativas em heterozigose, resultando em um alelo não expresso, o que leva a um fenômeno de haploinsuficiência com níveis de proteína R1-a 60% inferiores aos controles normais. Em estudos com Western blot, não foi identificada nenhuma proteína anômala, somente a presença da proteína normal. Isso ocorre provavelmente porque o RNA da proteína truncada é instável e sofre um processo de degradação citoplasmática.

A origem genética de 59% dos pacientes com complexo de Carney ainda não foi elucidada. Embora estudos de ligação de famílias com complexo de Carney tenham demonstrado segregação de marcadores localizados no braço curto do cromossomo 2 (2p16), não foram descritas, até o momento, mutações em genes localizados nesta região que possam estar envolvidos na etiologia do complexo de Carney (19). Em função disso, o rastreamento genético ainda não é recomendado para o diagnóstico do complexo, embora possa identificar um número importante de portadores da síndrome. O padrão ouro no rastreamento de pacientes com complexo de Carney ainda é clínico e bioquímico.

DISCUSSÃO

Dra. Maria Adelaide Albergaria Pereira (médica assistente do Serviço de Endocrinologia e Metabologia HCFMUSP)

Segundo as orientações sugeridas no trabalho de Stratakis de 2001, crianças assintomáticas não devem ser rastreadas para síndrome de Cushing. Você conhece alguma outra orientação com relação a isso? Até quando devem ser realizados ecocardiogramas anuais?

Dr. Madson Queiroz de Almeida

Como os tumores endócrinos acometem principalmente os pacientes após o período puberal, Stratakis recomenda que o screening de tumores endócrinos seja feito apenas em adultos. Contudo, como o hipercortisolismo assintomático pode ser prolongado e ter início no período pré-puberal, nós consideramos que a investigação de síndrome de Cushing deva ser realizada também em crianças. Se considerarmos que os pacientes mais idosos nos quais foram detectados mixomas cardíacos tinham entre 40 e 50 anos, me parece prudente que o exame seja feito até esta idade. Entretanto, ainda não existe orientação formal quanto ao limite de idade para essa avaliação.

Prof. Dra. Berenice Bilharinho de Mendonça (Professora da Disciplina de Endocrinologia e Metabologia do HCFMUSP)

Uma discussão que eu gostaria de colocar é em relação ao tratamento da síndrome de Cushing nos pacientes assintomáticos. Duas irmãs do paciente são assintomáticas e apresentam teste de depressão com 1mg de dexametasona positivo, o que sugere síndrome de Cushing subclínica. O que fazer com essas pacientes?

Estaríamos autorizados a fazer adrenalectomia total em pacientes assintomáticos ou seria mais adequado o tratamento com cetoconazol, já que a doença é benigna? Gostaria de saber a opinião da Dra. Adelaide sobre estas questões.

Gostaria também de saber a opinião do Dr. Pedro Henrique sobre a osteoporose grave apresentada pelo nosso paciente. Isto se deve só ao hipercortisolismo ou existe outro mecanismo ligado ao PTH, já que a sinalização deste hormônio depende da ativação da PKA?

Dra. Maria Adelaide Albergaria Pereira

O diagnóstico de Cushing subclínico é difícil e não deve ser estabelecido apenas com o teste de depressão com 1mg de dexametasona. Como já bastante discutido na literatura, este diagnóstico só deve ser feito após avaliação mais completa com a realização do ritmo de cortisol, determinações de ACTH, teste do CRH, teste de depressão com doses mais altas de dexametasona e cortisol urinário, lembrando que a determinação deste último tem baixa sensibilidade para o diagnóstico. Em segundo lugar, para tomarmos uma conduta terapêutica, devemos definir os efeitos do hipercortisolismo e isto pode ser feito pela avaliação clínica (presença de obesidade, hipertensão e diabetes), de densitometria óssea e laboratorial (diabetes, intolerância à glicose e resistência à insulina). No caso de haver conseqüências clínicas do hipercortisolismo, estamos autorizados a fazer adrenalectomia ou, como a Dra. Berenice sugeriu, a fazer o tratamento clínico com drogas bloqueadoras da síntese de cortisol. Se o tratamento clínico levar à normalização das alterações detectadas, devemos mantê-lo enquanto a secreção de cortisol permanecer normal. Uma droga alternativa ao cetoconazol, cujo uso ainda é problemático em crianças, seria o mitotane. Entretanto, devido às conseqüências devastadoras do hipercortisolismo, devemos considerar a adrenalectomia, nos casos em que não for possível o tratamento clínico. Um ponto a ser debatido é a realização de adrenalectomia bilateral em dois tempos cirúrgicos. Se houver normalização bioquímica após a adrenalectomia unilateral, a segunda cirurgia pode ser postergada até que haja recorrência das anormalidades.

Portanto, no caso dos familiares desse paciente, este problema ainda não se coloca, porque não acredito que suas irmãs sejam portadoras de Cushing subclínico, já que ainda não foram avaliadas adequadamente.

Dr. Pedro Henrique Silveira Corrêa (médico assistente do Serviço de Endocrinologia e Metabologia HCFMUSP)

O quadro ósseo não está esclarecido, já que frente a uma bioquímica de PTH e cálcio urinário baixos e cálcio sérico normal fica a dúvida em saber se a remodelação óssea desse paciente está aumentada em decorrência de uma possível ativação da via de sinalização do PTH. Devemos estudar melhor a remodelação óssea através da determinação dos marcadores de reabsorção. Acho que o pico de massa óssea foi bem comprometido, e isto pode estar ligado ao hipercortisolismo de longa data que, como foi dito, precedeu o Cushing clínico.

Dr. Madson Queiroz de Almeida

As duas pacientes não têm densitometria óssea ainda e, clinicamente, não possuem comorbidades relacionadas ao eventual hipercortisolismo, como hipertensão e diabetes. Elas têm uma dosagem de cortisol após dexametasona 1mg em torno de 4 e 5mg/dL e serão avaliadas laboratorialmente para o diagnóstico de Cushing subclínico. O pai do paciente tem depressão negativa com dexametasona 1mg e uma dosagem de cortisol urinário entre 300 e 350mg, que é pouco elevada. Ele também será avaliado mais cuidadosamente com relação à possibilidade de hipercortisolismo.

Prof. Dr. Bernardo Léo Wajchenberg (Professor Emérito da Disciplina de Endocrinologia e Metabologia HCFMUSP)

Numa das suas tabelas está escrito carcinoma. Carcinoma de quê?

Dr. Madson Queiroz de Almeida

Stratakis menciona alguns carcinomas como causa de morte dos pacientes da sua revisão: quatro casos de schwanoma melanótico maligno, um caso de tumor de mama, dois de carcinoma de pâncreas e um caso de tumor testicular metastático, que foi o único caso de metástase relacionada a tumor testicular num paciente com faixa etária mais avançada e que apresentava uma massa testicular maior que 5cm.

Prof. Dr. Bernardo Léo Wajchenberg

Não há nenhum caso de carcinoma de adrenal?

Dr. Madson Queiroz de Almeida

Não, nenhum caso de carcinoma de adrenal associado ao complexo de Carney foi descrito.

Dra. Maria Adelaide Albergaria Pereira

Fiquei com a idéia de que o schwanoma pode ser o tumor de maior risco, em relação à malignidade. Isto está correto? Como fazemos este diagnóstico?

Dr. Madson Queiroz de Almeida

Sim. Em relação aos tumores, é o que apresenta maior potencial metastático. O tumor acomete principalmente o trato gastrointestinal (esôfago ou estômago). Manifestações clínicas, como disfagia e obstrução, relacionadas à localização do tumor, devem motivar a pesquisa endoscópica ou radiológica.

Dra. Maria Adelaide Albergaria Pereira

Ele pode acometer a pele?

Dr. Madson Queiroz de Almeida

Sim. Pode ocorrer em pele e no sistema nervoso periférico. Dependendo da localização do tumor, o paciente pode apresentar sinais e sintomas relacionados à compressão medular.

Prof. Dr. Eder C. R. Quintão (Professor Titular da Disciplina de Endocrinologia e Metabologia do HCFMUSP)

Vocês fizeram o estudo genético desta família?

Dra. Maria Cândida B. Fragoso Villares (médica assistente do Serviço de Endocrinologia e Metabologia HCFMUSP)

Nós não temos todos os primers e alguns ainda estão sendo sintetizados. Nós já estudamos os exons 3, 4, 7, 8 e 6 e nenhuma mutação foi encontrada. Estamos aguardando a síntese dos próximos primers para podermos tentar identificar a mutação dessa família.

Recebido em 09/02/04

Revisado em 16/04/04

Aceito em 23/04/04

Local da Reunião: Serviço de Endocrinologia e Metabologia, HC-FMUSP

Edição: Maria Adelaide Albergaria Pereira

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  • Endereço para correspondência

    Maria Adelaide A. Pereira
    Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar 255PAMB, 8º andar, Bloco 3
    05403-000 São Paulo, SP
    Fax: (11) 3088-6964
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Mar 2005
    • Data do Fascículo
      Ago 2004

    Histórico

    • Aceito
      23 Abr 2004
    • Revisado
      04 Abr 2004
    • Recebido
      09 Fev 2004
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