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Em busca de uma visão antropológica no Programa de Saúde da Família

En búsqueda de una visión antropológica en el Programa de Salude de la Familia

Looking for an anthropologic vision in the Family Health Program

Resumos

Este estudo tem como objetivos: Analisar o Programa Saúde da Família enquanto estratégia de reorientação da atenção básica; Discutir a visão antropológica de saúde correlacionando-a com o PSF. Verificamos que existem dois elementos que são fundamentais no direcionamento do PSF, o conceitual e o estrutural, que influenciam diretamente no âmbito institucional e, por conseguinte no cuidado. Considerando-se os fortes fatores que facilitam a mudança no processo de saúde e doença, as perspectivas que devem ser sinalizadas devem ser apoiadas na busca de uma visão antropológica de saúde como ferramenta para a efetivação de fato da Estratégia Saúde da Família, de forma que possamos oferecer com uma assistência/cuidado prestado de qualidade.

Programa Saúde da Família; Saúde da família; Enfermagem


Este estudio tiene como Objetivos: Analizar el Programa Salud de la Familia mientras estrategia de reorientación de la atención básica; Discutir la visión antropológica de salud correlacionándola con El PSF. Verificamos que existen dos elementos que son fundamentales en el *direcionamento del PSF, el conceptual y el estructural, que influencia directamente en el ámbito institucional y, así pues en el cuidado. Considerándose los fuertes factores que facilitan el cambio en el proceso de salud y enfermedad, las perspectivas que deben ser señalizadas deben ser apoyadas en la búsqueda de una visión antropológica de salud como herramienta para la efectivación de hecho de la Estrategia Salud de la Familia, de forma que podamos ofrecer con una asistencia/cuidado prestado de calidad.

Programa Salud de la Familia; Salud de la Familia; Enfermería


This study aimed at analyzing the Family Health Program as a reoriented strategy for basic attention; to discuss the anthropologic health vision correlating it with the FHP. We verified that there are two main elements in the conduction of the FHP, the conceptual element and the structural element. They directly act on in the institutional scope and, therefore, in the health care as a whole. Considering the strong factors that smooth the change in the illness and health process, the perspectives that should be marked must be supported in seach of a health anthropologic vision as a tool to accomplish the family's health strategy, as a matter of fact, as well as a special health care that must be rendered with top quality.

Family Health Program; Family health; Nursing


REFLEXÃO

Em busca de uma visão antropológica no Programa de Saúde da Família

Looking for an anthropologic vision in the Family Health Program

En búsqueda de una visión antropológica en el Programa de Salude de la Familia

Elaine Antunes CortezI; Florence Romijn TocantinsII

IEnfermeira. Mestre em Enfermagem; Docente da Universidade Estácio de Sá (UNESA), Rio de Janeiro, RJ, e da Fundação Técnico Educacional Souza Marques (FTESM). lainecortez@ig.com.br

IIEnfermeira. Doutora em Enfermagem. Departamento de Enfermagem Saúde Pública - EEAP/UNIRIO, Rio de Janeiro, RJ

RESUMO

Este estudo tem como objetivos: Analisar o Programa Saúde da Família enquanto estratégia de reorientação da atenção básica; Discutir a visão antropológica de saúde correlacionando-a com o PSF. Verificamos que existem dois elementos que são fundamentais no direcionamento do PSF, o conceitual e o estrutural, que influenciam diretamente no âmbito institucional e, por conseguinte no cuidado. Considerando-se os fortes fatores que facilitam a mudança no processo de saúde e doença, as perspectivas que devem ser sinalizadas devem ser apoiadas na busca de uma visão antropológica de saúde como ferramenta para a efetivação de fato da Estratégia Saúde da Família, de forma que possamos oferecer com uma assistência/cuidado prestado de qualidade.

Descritores: Programa Saúde da Família; Saúde da família; Enfermagem;

ABSTRACT

This study aimed at analyzing the Family Health Program as a reoriented strategy for basic attention; to discuss the anthropologic health vision correlating it with the FHP. We verified that there are two main elements in the conduction of the FHP, the conceptual element and the structural element. They directly act on in the institutional scope and, therefore, in the health care as a whole. Considering the strong factors that smooth the change in the illness and health process, the perspectives that should be marked must be supported in seach of a health anthropologic vision as a tool to accomplish the family's health strategy, as a matter of fact, as well as a special health care that must be rendered with top quality.

Descriptors: Family Health Program; Family health; Nursing.

RESUMEN

Este estudio tiene como Objetivos: Analizar el Programa Salud de la Familia mientras estrategia de reorientación de la atención básica; Discutir la visión antropológica de salud correlacionándola con El PSF. Verificamos que existen dos elementos que son fundamentales en el *direcionamento del PSF, el conceptual y el estructural, que influencia directamente en el ámbito institucional y, así pues en el cuidado. Considerándose los fuertes factores que facilitan el cambio en el proceso de salud y enfermedad, las perspectivas que deben ser señalizadas deben ser apoyadas en la búsqueda de una visión antropológica de salud como herramienta para la efectivación de hecho de la Estrategia Salud de la Familia, de forma que podamos ofrecer con una asistencia/cuidado prestado de calidad.

Descriptors: Programa Salud de la Familia; Salud de la Familia; Enfermería

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Por considerar oportuna a discussão acerca do Programa Saúde da Família (PSF) como estratégia de reorientação da atenção básica com uma visão antropológica de saúde para sua efetivação, e por estarmos envolvidas diretamente nesse processo, desenvolvemos este estudo com intuito de aprofundar a compreensão da temática. Ressaltamos que foi um desafio muito grande refletir sobre o tema, pelo fato de estarmos inseridas no contexto universitário, onde ainda é privilegiado o modelo hospitalar de assistência, temos uma certa dificuldade em observar com clareza os meandros das mudanças que estão ocorrendo no âmbito das políticas de saúde. Por isso, preocupadas em elaborar um recorte que contemplasse a temática e que fosse possível a argumentação para tracejar, ainda que em síntese, propomos analisar a perspectiva do PSF com uma visão antropológica de saúde. Tomamos como ponto de partida o contexto atual, mediante o qual elaboramos três questões: Como surgiu o PSF, seus aspectos históricos? O que é o PSF enquanto estratégia de reorientação da atenção básica? Qual é a contribuição de uma visão antropológica de saúde no cuidado de enfermagem no PSF?

Entre as autoridades do setor saúde, os profissionais que atuam nesta área e usuários do sistema, há o consenso de que o modelo de atenção à saúde vigente, que prioriza a assistência curativa e individual com ênfase no atendimento hospitalar, não consegue modificar a condição de saúde da população, por considerar como mais importante a doença em si em detrimento dos condicionantes sociais e epidemiológicos, que interferem no processo saúde doença(1).

A necessidade de se reorganizar a assistência à saúde partindo da Atenção Básica, valorizando as práticas de promoção e prevenção e colaborando na organização do Sistema Único de Saúde (SUS), fizeram com que o Ministério da Saúde (MS) propusesse a partir de 1994, a estratégia de Saúde da Família, mais conhecida como Programa Saúde da Família a qual segundo Mendes: deseja criar, no primeiro nível do sistema, verdadeiros centros de saúde, em que uma equipe de saúde da família, em território de abrangência definido, desenvolve ações focalizadas na saúde; dirigidas às famílias e ao seu hábitat; de forma contínua, personalizada e ativa; com ênfase relativa no promocional e no preventivo, mas sem descuidar do curativo-reabilitador; com alta resolutividade; com baixos custos diretos e indiretos, sejam econômicos, sejam sociais e articulando-se com outros setores que determinam a saúde(2).

A atenção básica de acordo com o MS(3) é : "um conjunto de ações, de caráter individual e coletivo (...) no primeiro nível de atenção nos sistemas de saúde, voltada para a promoção da saúde, a prevenção de agravos, o tratamento e a reabilitação".

A diferença entre esta nova estratégia, e os centros ou postos de saúde vai muito além do nome. Os Postos ou CMS utilizam um modelo de saúde passivo, curativo e sanitário, sem vínculo efetivo com as pessoas, sem responsabilidade maior com a saúde da comunidade, com um atendimento individualizado, limitando-se a encaminhar os doentes para CMS especializados ou hospitais mais próximos. As USF identificam os problemas, as necessidades das famílias, planejando, priorizando e organizando o atendimento.

O PSF prevê um atendimento integral e hierárquico à saúde da população de sua abrangência, pois está inserida no primeiro nível de ações e serviços do sistema local de assistência, a atenção básica, está vinculada à rede de serviços para garantir a atenção integral aos indivíduos e às famílias, com um sistema de referência e contra-referência para outros níveis de complexidade; trabalha com a população adscrita (mapeada/definida), que é feito através de cadastramento realizados nas visitas aos domicílios por uma equipe multiprofissional; trabalha com a participação da comunidade na identificação das causas dos problemas de saúde, na definição das prioridades e no acompanhamento e avaliação do trabalho, o PSF se integra ao serviço de saúde da região enriquecendo e reorganizando, caracterizando-se como porta de entrada do sistema municipal de saúde. As equipes de PSF, muitas das vezes, dispõem na maioria das vezes, de profissionais capazes de resolver as maiorias dos problemas de saúde na própria unidade, fazendo visitas domiciliares.

Entendemos o PSF como uma estratégia de atenção à saúde que precisa de novos olhares e saberes profissionais, para que de fato reconheçam as reais necessidades dos usuários, a partir da identificação dos dados demográficos (idade, sexo e origem dos membros da família), socioeconômicos (renda, condições de trabalho, ocupação, estudo, condições de moradia, escolaridade, meios de comunicação que tem acesso, serviços de saúde acessados e transportes que utilizam), meio ambiente (condições das águas, terra, do ar e do clima), e índices de mortalidade e morbidade (óbitos na família e condições de risco), sócio-culturais (estrutura familiar, religião e participação de grupos comunitários)(4).

Estima-se que 15% da demanda(5) são encaminhadas para unidades especializadas, quando há a necessidade de profissionais especializados e equipamentos mais sofisticados. Os profissionais do PSF são generalistas com atribuições e competências para áreas de planejamento, programação, epidemiologia, o que possibilita ações de vigilância em saúde, com a intervenção sobre os problemas de saúde; ênfase em problemas que requeiram atenção e acompanhamentos contínuos; operacionalização do conceito de risco; articulação entre ações promocionais, preventivas e curativas; atuação intersetorial; ações sobre o território; e com intervenções sobre a forma de operações.

A equipe de Saúde da Família deve ser composta, no mínimo, por um médico generalista (clínica médica), um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e de quatro a seis Agentes Comunitários de Saúde. A condição essencial, para o êxito desta estratégia é que todos trabalhem oito horas por dia, o que dá quarenta horas por semana, para que a partir disso, possa garantir o vínculo, ligação efetiva, com a comunidade, garantindo dedicação integral à Saúde da Família. Recomenda-se que cada equipe acompanhe entre 600 a 1000 famílias, não ultrapassando 4500 pessoas(6).

Nessa estratégia o enfermeiro desempenha um papel bastante importante, pois é ele quem vai acompanhar, supervisionar, promover capacitações, educação continuada com os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e auxiliares de enfermagem, além de atuar na atividade de cuidar com ênfase na Promoção da saúde. Destacando a ênfase na intersetorialidade nos serviços e práticas de saúde, nas políticas públicas e no desenvolvimento regional e local.

Dentre as atividades desenvolvidas pelos enfermeiros, a educação em saúde, a qual é uma prática onde a realidade e os discursos das pessoas deveriam se aproximar e para tal não podemos esquecer que, ao educar, temos que nos atentar quanto ao saber, a crença, o hábito e a cultura de cada um. A educação em saúde, principalmente no PSF deve deixar de ser tradicional, baseada em repasses de informações com tradição autoritária e normatizadora, com imposição de normas e condutas. Valla e Stotz(7) discutem sobre o objetivo da prática educativa em saúde, denominando-a de educação popular em saúde, descrevendo que a sua função seria o de facilitar sempre que possível o poder dos indivíduos sobre suas vidas.

Ao buscarmos uma prática educativa mais participativa, construindo saberes e práticas junto aos usuários de saúde, com fortalecimento de diálogos, negociação entre diversos atores, com conhecimento dos seus padrões culturais, e a partir disso, sermos capazes de reorientar as práticas de saúde, tornando-as mais integradas à vida local e com um cuidar de enfermagem na perspectiva da integralidade. Concordamos com Acioli e Monteiro(8) de que não podemos falar em cuidado integral se não começarmos a criar formas de sentir, falar e fazer nossas práticas de modo compartilhado no campo da saúde.

O cuidado de saúde no PSF deveria ser compreendido como algo maior do que apenas a execução de algum procedimento ou técnicas junto aos usuários dos serviços de saúde e sim um cuidar profissional que envolve interação, baseado em valores, em educação participativa e conhecimento tanto de quem cuida como de quem é cuidado. Desta forma, mais uma vez, a religiosidade compõe a expressão comportamental de valor do usuário a ser cuidado.

O "modo de andar na vida", do usuário do PSF, deve compor a reflexão e conseqüentemente as atividades dos enfermeiros. Desta forma entendemos que a saúde é resultante das condições de vida, biológica, social e do estilo de vida da população que inclui a religiosidade para cuidar de sua saúde. O conceito de saúde aqui é a busca de uma qualidade de vida de acordo com o "modo de andar na vida" da comunidade e/ou das famílias que se trabalha, com a valorização do cuidado integral, requisito de dignidade e de sua cidadania.

A busca ativa é um dos métodos de trabalho do PSF, a equipe vai nas casa das pessoas, das famílias, seja para cadastrar, para captar, para cuidar e/ou para assistir e a partir de então, vê de perto a realidade de cada família, planeja suas ações de saúde, tomando as devidas providências para, promover a saúde, prevenir, melhorar e/ou minimizar os problemas de saúde, atuam nos que já existem, dá orientação para possibilitar uma vida melhor e com saúde. E é neste momento que muitas das vezes os profissionais de saúde esbarram-se em situações conflituosas, quando o usuário expressa a suas necessidades assistenciais, a sua preferência pela sua prática, explicação e/ou entendimento religioso, na sua religiosidade, para promover a sua saúde ou dar conta de seus problemas de saúde e das suas condições de vida. Entendemos necessidade de acordo com Tocantins, pois estas estão imbricadas no mundo da vida, na cultura e também na crença(9).

O PSF sinaliza uma nova lógica que inclui a prevenção, promoção e a recuperação da saúde das famílias, para que os indivíduos possam ter autonomia e co-responsabilidade no cuidar de sua própria saúde. Esta estratégia está sendo adotada gradativamente no Brasil, e podem ser encontradas mais de 15.000 Equipes de Saúde da Família (ESF) implantadas nos diversos estados da federação, propiciando o acompanhamento de mais de 50 milhões de brasileiros(10).

2. ASPECTOS HISTÓRICOS

A assistência à saúde centrada na família não é uma inovação trazida pelo PSF. A conferência internacional sobre cuidados primários de saúde, realizada em Alma-Ata, em 1978, ao definir cuidados primários de saúde já destacava a família como sujeito das ações de saúde, ao afirmar que estes cuidados "representam o primeiro nível de contato do indivíduo, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde"(11).

Posteriormente, identificamos em Cruz(12), a qual observou que a enfermagem de saúde pública utilizava vários tipos de intervenções na assistência à família. Da mesma forma, Nascimento(13) já verificava o reconhecimento da família como unidade de serviço em enfermagem.

A origens do PSF, nos moldes que se conhece hoje, estão nos movimentos reformistas das décadas de 1970 e 1980, quando já se pensava em substituir o modelo tradicional de saúde, baseado na concentração de aprimoramentos para tecnologia de ponta em detrimento das reais necessidades da população, seguindo um modelo sanitário hegemônico com a atenção centrada nos hospitais e serviços baseados na doença, por um novo modelo que priorizasse a prevenção e promoção da saúde, com a participação da população.O Ministério da Saúde afirma que, naquela ocasião os princípios da atenção primária em saúde eram discutidos em conferências e experimentados em alguns países, inclusive na América Latina(14).

No Brasil, os anos 70 e 80 foram marcados por um processo longo de discussão sobre um novo paradigma para a saúde, ecológico e holístico, com o resgate da perspectiva da totalidade e da interdisciplinaridade, com uma nova visão de mundo, uma democratização da saúde que colaboraram para a construção dos princípios do Sistema Único de Saúde, instituído pela Constituição Federal de 1988, vide a VIII Conferência Nacional de Saúde e Reforma Sanitária.

A proposta do PSF não é nova, ela é a recuperação de uma série de iniciativas que buscavam reordenar o modelo assistencial a saúde e consolidar o SUS. Em 1991, o MS criou o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), que objetivava contribuir para o enfrentamento dos alarmantes indicadores de morbimortalidade infantil e materna na região Nordeste do Brasil. Nasceu, portanto, com uma clara focalização de cobertura e objetivos, considerando que essa região concentrava o maior percentual de população em situação de pobreza e, conseqüentemente, mais exposta ao risco de adoecer e morrer(14).

No entanto, o PACS apresentava limitações como instrumento suficiente para provocar mudanças efetivas na forma de organização dos serviços de saúde, o que levou ao reconhecimento da crise deste modelo e suscitou a necessidade emergencial de uma nova estratégia estruturante, que contemplasse a incorporação de recursos humanos e tecnologias contextualizadas nas novas práticas assistenciais propostas(15).

Com esse propósito e considerando os elementos trazidos pelo PACS (foco na família e não no indivíduo, organização da demanda a partir de ações de promoção, visão ampliada de saúde e integração efetiva com a comunidade) nasce, em 1994, o PSF, apresentado como a estratégia capaz de provocar mudança no modelo assistencial, que rompe com o comportamento passivo das unidades básicas de saúde e estende suas ações para e junto com as comunidades(14).

A esta nova estratégia foi então atribuída a função de desenvolver ações básicas, no primeiro nível de atenção à saúde, mas propondo uma tarefa maior do que a simples extensão de cobertura e ampliação do acesso. O PSF de acordo com o MS(14) "deveria promover a reorganização da prática assistencial com novos critérios de abordagem, provocando reflexos em todos os níveis do sistema", integrando-se com os serviços de saúde do município da região, enriquecendo-o e caracterizando-se como porta de entrada do sistema municipal de saúde, com uma abordagem voltada para o atendimento integral da família com intervenções específicas de promoção, prevenção e recuperação; com um trabalho interdisciplinar em equipe e com ações intersetoriais.

No entanto, o PSF não encontrou cenário favorável ao seu fortalecimento, uma vez que não foram desenvolvidas políticas que sustentassem a proposta. Os recursos humanos existentes não atendiam às necessidades trazidas por ele e não havia política de financiamento adequada, os repasses financeiros eram calculados de acordo com a quantidade de procedimentos ambulatoriais, de baixa e média complexidade realizada nos municípios, o que levou ao não estimulo das Equipes de Saúde da Família a se dedicarem à prevenção e promoção(14).

O incentivo à consolidação do PSF somente encontrou espaço, após a publicação da Norma Operacional Básica de 1996 que instituiu o Piso da Atenção Básica, fortalecendo a atenção básica, definindo as responsabilidades dos gestores municipais e estabelecendo o PSF como estratégia prioritária para a mudança do modelo assistencial. Assim, aquele que era o projeto inicial sofreu as inflexões das demandas do projeto de ajuste estrutural. Mendes, afirma:

a conceituação da saúde da família como estratégia de organização da atenção primária implica a negação de algumas versões. (...) Não é (...) um programa. (...). A sigla PSF pegou e constitui, hoje, boa marca política para a saúde da família. O importante, aqui, é falar de um Programa de Saúde da Família sabendo que não é um programa, mas, sim, uma estratégia. Não sendo programa, não é, também, uma versão contemporânea da medicina simplificada, nem projeto exclusivo para regiões e grupos sociais em situação de exclusão. Apesar disso, a estratégia de saúde da família deve ter os excluídos e as regiões mais pobres como prioridade e deve utilizar largamente tecnologias custo/efetivas(2).

Na verdade, desde 1993, com a Portaria nº 692 do MS o PSF vem sendo implantado em nosso país. À época, apesar de não ter sido publicada a NOB-96, já era possível reconhecer o caráter conservador que o PSF passou a assumir, suavizador das tensões sociais que já iam se avolumando a época, e, de certa forma, o "drible" para que a implantação de um PSF dava nas dificuldades políticas, operacionais e de financiamento do SUS.

O PSF ao contemplar ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde, tem contribuído para os indicadores sociais da população assistida, permitindo a racionalização do uso dos serviços de média e alta complexidade do SUS, solucionando em até 85% os problemas das famílias com redução de custos. Ele deve ser a porta de entrada do sistema local de saúde, mas para tal mudança exige a integração entre os vários níveis de atenção(2).

A responsabilidade de cuidar da saúde das famílias de forma universal, integral, equânime, contínua e, acima de tudo, resolutiva, faz do PSF o caminho de "completar" a Reforma Sanitária, no que tange ao desenho e à operacionalização de um novo modelo de atenção à saúde. Buscando ter clareza do significado do PSF, mas não fugindo dele como realidade concretamente estabelecida, consideramos que a adesão consciente a este projeto poderia representar um avanço mais propriamente do ponto de vista técnico, de aperfeiçoamento da clínica - em relação aos velhos programas verticais para organizar a ação no território.

3. A ANTROPOLOGIA CULTURAL

Após diversas leituras(16-18) e entendimentos sobre o que é antropologia, chegamos à compreensão de que a antropologia cultural é o ramo da ciência que visa essencialmente o conhecimento do homem, desde as suas origens biológicas ao seu comportamento comunitário e social. Ela permite compreender as diferentes formas de vida em sociedade: do ponto de vista político, facilita o relacionamento social e cultural com outros povos.

Os antropólogos culturais estudam a cultura dos povos, em sua sociedade, concomitantemente com suas crenças, valores e atitudes que direcionam o modo de percepção e ação dessas pessoas que estão sendo analisadas(16).

Como cultura entendemos que seja a apreensão de significados, crenças e valores que impulsionam a nossa maneira de se colocar no mundo e é repassada por gerações. Assim, muitas das vezes, a cultura é idealizada como única, tornando-se até dogmática.

Laraia(16)enfatiza que o fato do homem olhar o mundo através de sua cultura o deixa propenso a considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. Tal tendência, na qual é denominada de etnocentrismo, e é responsável em seus casos extremos pela ocorrência de numerosos conflitos.

Os germânicos no início do século XIX utilizavam os termos Kultur para representar os aspectos espirituais de uma comunidade. Já os franceses utilizavam Civilization para representar as conquistas matérias. Porém Tylor sintetizou esses termos na palavra Culture (inglesa) e ampliou os significados, utilizando a etnografia e sua inserção nos conhecimentos das crenças, atitudes, valores, hábitos, moral que são adquiridos pelo homem em determinada sociedade(16).

Helman(17) sintetiza a definição antropológica de cultura, colocando-a como um conjunto de aspectos que os indivíduos herdam ao integrarem uma determinada sociedade e, esses princípios, permitem que as pessoas vivenciem e comportem no mundo social.

Malinowski ao discutir o que é a cultura, descreve como um "conjunto integral dos instrumentos e bens de consumo, nos códigos constitucionais de vários grupos da sociedade, nas idéias e artes, nas crenças e costumes humanos"(18). Acrescenta ainda que a cultura pode ser simples, primitiva, complexa ou desenvolvida, mas é ela que possibilita o homem a lidar com os problemas concretos e específicos que se deparam, e que suas necessidades impõe-se a respectiva cultura, ou seja, resolvem os seus problemas, suas necessidades, mediantes a sua cultura, o nível cultural, o padrão cultural, da comunidade onde está inserido, e esta tradição cultural é transmitida de geração para geração e por isso, em cada cultura, deverão existir mecanismos e métodos de caráter educativo, pois ao satisfazerem a suas necessidades básicas, os homens conjugam as suas necessidades culturais, e desta forma podemos perceber um vínculo direto, bem como uma influência e dependência face as suas ações e sua cultura, onde a crença religiosa é um bom exemplo a ser dado.

4. VISÃO ANTROPOLÓGICA DE SAÚDE E O CUIDADO NO PSF

Acreditando que a cultura reflete o modo de pensar, agir e se pronunciar mediante as diversas situações, deve-se refletir a importância da busca de uma visão antropológica de saúde neste novo modelo de atenção à saúde, assim como no cuidado de enfermagem.

A cultura é um dos fatores que possa a vir determinar e/ou contribuir para os agravos à saúde e o processo de saúde e doença, tanto de quem está sendo cuidado, assim como de seus cuidadores. Desta forma, a compreensão da cultura na formulação e prestação do cuidado torna-se um dos fatores fundamentais, principalmente no PSF, visto que os profissionais de saúde estão inseridos nas comunidades e freqüentam os lares dos usuários ao fazerem as visitas domiciliares.

Com a prática profissional, já se sabe da dificuldade do paradigma mecanicista-positivista (biomédico) para dar conta da saúde da população, o qual este tem um papel significativo nas crises do setor saúde. A crise da medicina ocidental refere-se a crise de seu paradigma dominante, que se identifica com a postura positivista, que concebe o Ser Humano como uma máquina, fragmentando suas partes. O papel do profissional de saúde é o de intervir na parte afetada e que, por conseguinte, levar as especializações, a perder a abordagem do cliente ou usuário como Ser Humano(19).

Para Queiroz(20): Existe um consenso nas Ciências Sociais, de que a compreensão da saúde e da doença não pode prescindir de fatores sociais, culturais e psicológicos, (..) tanto a saúde como a doença, depende em grande medida de componentes subjetivos e emocionais relacionados à experiência de vida.

Vislumbrando uma prática de cuidado coerente com a cultura de quem cuidamos, faz-se necessário o conhecimento e o respeito desta. A compreensão da cultura aumenta o conhecimento do cuidador, proporcionando uma abordagem mais eficaz, com identificação de problemas vinculados ao processo de saúde e doença muitas das vezes não identificada em ambientes formais de atendimento.

Mauksch apud Elsen(21): "toda a família tem um `estado' de saúde (...) com as quais seus membros contribuem dentro do contexto de sua cultura, sua consciência sobre conhecimentos relevantes de saúde."

O Profissional que atua no PSF, ao prestar uma assistência no ambiente do próprio usuário ao fazer visitas domiciliares, depara-se com questões sociais e culturais, e é neste momento que ele amplia a sua visão de saúde para uma visão também antropológica, mesmo que implicitamente. A importância de uma visão antropológica de saúde no cuidado de enfermagem faz-se necessária para complementar uma assistência adequada dentro de uma comunidade no PSF, e assim contribua para a promoção da saúde, partindo desta visão, assim como na resolução, ou minimizando os problemas diagnosticados.

Trad & Bastos(22) mencionam ser imprescindível não simplificar um objeto tão complexo como a família no momento de definir e avaliar práticas de saúde. É necessário perguntar de que família, falamos, (...) reconhecer a família como espaço privilegiado de constituição, desenvolvimento, crise e resolução dos problemas de saúde individuais e coletivos.

Não podemos nos esquecer que essa família está inserida em uma comunidade que está inserida em uma sociedade e que possui sua própria cultura, seus valores, crenças, significados e atitudes que irão direcionar seus modos de percepção e suas ações. Se nós, profissionais de saúde, nos esquecermos disto, não estaremos realizando a vigilância da saúde, a qual é: "o modelo de saúde alternativo que entende a saúde como produção social, como um processo construtivo que uma coletividade pode conquistar no seu dia-a-dia"(6).

Busca-se com isso, a compreensão de um processo de responsabilidade compartilhada das ações em saúde, incluindo uma sintonia com os diferentes setores (intersetorialidade) e participação social. As pessoas, os usuários desta estratégia, ao adquirirem esta consciência de quem podem tomar a iniciativa, passam a ser sujeitos capazes de elaborar projetos próprios de desenvolvimento, tanto individualmente como coletivamente(6).

É fundamental que avancemos no caminho da saúde, na recuperação do sujeito com seus desvios de saúde, um modelo de expansão da vida, onde teremos uma "ordem médica mais suave". Acreditamos que ao caminharmos para essa visão mais ampla de saúde poderemos ampliar as práticas de saúde no PSF, proporcionando aos sujeitos participantes a possibilidade de construir sua saúde e sua cidadania.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando as reflexões assinaladas, observamos que há necessidade de compreendermos a antropologia cultural para fundamentar a prática de enfermagem para que não contrariemos as expectativas dos usuários e não os conduza ao etnocentrismo, visto que no PSF trabalhase com uma população adscrita que tem seus valores, hábitos e culturas.

Acreditamos que ao resgatarmos o que de fato é essa nova estratégia de reorientação da atenção básica e valorizarmos a cultura dos indivíduos que estão ali inseridos, percebendo a relação direta dos seus significados com o desenvolvimento da prática de enfermagem estaremos dando um grande passo ao cuidar integral.

Ao entendermos cultura como pública, como herança, tradição, premissa, teia de significados, como sendo pública, possuindo aspectos objetivos e subjetivos, perpassando pela satisfação das necessidades básicas, repletas de crenças, mitos, valores e atitudes, passamos a olhar o homem como um ser que influencia e é influenciado por essa cultura, e assim traçarmos estratégias de cuidados de enfermagem mais adequadas a cada família a ser cuidada.

A enfermagem não pode se esquecer que ela cuida de indivíduos com as suas respectivas famílias, não podendo assim dissociá-lo desse emaranhado de significados que interfere no modo como o indivíduo se coloca e age no mundo, e essas ações incluem o modo como ele promove a sua saúde, cuida de sua saúde e de como busca caminho para a cura, tais condições interferem diretamente no processo de saúde e doença.

Julgamos assim, que uma prática de saúde que incorpore uma visão antropológica de saúde, ou seja, incorpore a cultura da comunidade/família/individuo seria um grande avanço para uma nova prática e assistência de enfermagem no PSF, fazendo-se deste, um caminho para uma ruptura do binômio saúde-doença que focaliza a saúde como ausência de doenças sem levar em conta o meio onde o sujeito vive, suas condições sociais e culturais, tão arraigado nos profissionais de saúde e na sociedade. Com essa visão o PSF seria de fato uma estratégia para o novo modelo de vigilância de saúde.

Em função do foco deste estudo endossamos a importância de buscarmos uma visão antropológica de saúde, ou seja, adequarmos as atividades desenvolvidas pelos enfermeiros (as) a cultura da comunidade/família/indivíduo, nesta nova estratégia, para que de fato o PSF seja implementado efetivamente. A participação dos enfermeiros (as) é essencial, visto estar em contato permanente com a comunidade, com suas famílias e com indivíduos que precisam muito de nós, dentro de suas expectativas, necessidades, desejos, culturas e valores.

Fundamentadas em Teixeira(23) e Saboia(24) a formação de enfermagem tem como alicerce o saber técnico e científico que privilegia a racionalidade científica, refletindo em uma atuação profissional que pouco valoriza a subjetividade e outras formas de saberes e práticas, e a religiosidade será focada nesse estudo é uma delas. Consideramos assim, que estudos sobre a temática analisando e aprofundando a compreensão sobre os conceitos de cultura propiciará uma prática mais ampliada da realidade que é dinâmica.

Submissão: 23/03/2005

Aprovação: 15/08/2006

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Mar 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2006

Histórico

  • Aceito
    15 Ago 2006
  • Recebido
    23 Mar 2005
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