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Representações sociais dos estudantes de enfermagem sobre assistência hospitalar e atenção primária

Representaciones sociales de los estudiantes de enfermería sobre asistencia hospitalaria y atención primaria

RESUMO

Objetivo:

analisar como se estruturam as representações sociais dos cuidados hospitalares e comunitários em dois grupos de estudantes de enfermagem - 1º e 4º anos.

Métodos:

pesquisa qualitativa orientada pela Teoria das Representações Sociais. Utilizou-se um questionário com Associação Livre de Palavras. Os dados foram analisados no Software IRaMuTeQ 0.6 alpha 3.

Resultados:

aplicou-se o método da Classificação Hierárquica Descendente e obtiveram-se 4 classes. A classe 4 tem a maior representação social (30,41%) do corpus. Os dois eixos organizadores são enfermeiro e doença/doente no núcleo central. Na periferia destaca-se o cuidado e ajuda ligados ao enfermeiro e o tratamento e a prevenção associados à doença.

Conclusões:

as representações sociais centram-se na doença/doente e no papel do enfermeiro no tratamento, prevenção e cuidado. A promoção da saúde e os determinantes sociais da saúde estão ausentes das representações sociais dos estudantes.

Descritores:
Estudantes de Enfermagem; Educação em Enfermagem; Assistência Hospitalar; Atenção Primária à Saúde; Educação Baseada em Competências

RESUMEN

Objetivo:

analizar cómo se estructuran las representaciones sociales de los cuidados hospitalarios y comunitarios en dos grupos de estudiantes de enfermería - 1º y 4º años.

Método:

pesquisa cualitativa orientada por la Teoría de las Representaciones Sociales. Se utilizó un cuestionario con Asociación Libre de Palabras. Se analizaron los datos en el software IRaMuTeQ 0.6 alpha 3.

Resultados:

se aplicó el método de la Clasificación Jerárquica Descendiente, y fueron obtenidas 4 clases. La clase 4 tiene la mayor representación social (30,41%) del corpus. Los dos ejes organizadores son enfermero y enfermedad/enfermo en el núcleo central. En la periferia se destaca el cuidado y la ayuda ligados al enfermero y el tratamiento y la prevención asociados a la enfermedad.

Conclusión:

las representaciones sociales se centran en la enfermedad/enfermo y en el papel del enfermero en el tratamiento, prevención y cuidado. La promoción de salud y los determinantes sociales de la salud están ausentes de las representaciones sociales de los estudiantes.

Palabras clave:
Estudiantes de Enfermería; Educación en Enfermería; Asistencia Hospitalaria; Atención Primaria a la Salud; Educación Basada en Competencias

ABSTRACT

Objective:

To analyze how social representations of hospital and community care are structured in two groups of nursing students - 1st and 4th years.

Method:

Qualitative research oriented by the Theory of Social Representations. We used a questionnaire with Free Association of Words. Data were analyzed in the Software IRaMuTeQ 0.6 alpha 3.

Results:

We applied the method of Descending Hierarchical Classification and obtained four classes. Class 4 has the largest social representation (30.41%) within the corpus. The two organizational axes are nurse and disease/patient in the central core. On the periphery are the care and help related to the nurse and the treatment and prevention associated with the disease.

Conclusion:

Social representations focus on disease/patient and on the role of nurses in the treatment, prevention, and care. Health promotion and the social determinants of health are absent from the social representations of students.

Key words:
Nursing Students; Nursing Education; Hospital Assistance; Primary Health Care; Skills-Based Education

INTRODUÇÃO

A realização do presente estudo partiu do quotidiano das autoras, professoras de uma escola de enfermagem, que durante anos se questionaram sobre a hegemonia da clínica, baseado nos cuidados intra-hospitalares, na estrutura curricular dos diversos planos do curso de enfermagem. Essa hegemonia conceitual tende a dominar o processo de aquisição de conhecimento e competências, ao longo do curso, por parte dos estudantes. Surgiu então o desafio de realizar este estudo, com o objetivo de analisar as Representações Sociais (RS) dos estudantes de enfermagem, do 1º e 4º anos do curso, sobre os cuidados hospitalares e os cuidados comunitários e verificar se a aparente hegemonia dos primeiros anos durante o processo de formação dos estudantes modela as suas RS de cuidados hospitalares e cuidados comunitários.

Estudos realizados em outros países(11 Sousa FEM, Oliveira EN, Nunes JM, Lopes RE, Gubert FA. Percepção de estudantes de enfermagem acerca da profissão. Rev Rene [Internet]. 2010[cited 2015 Oct];11(4):110-7. Available from: http://www.revistarene.ufc.br/revista/index.php/revista/article/view/432
http://www.revistarene.ufc.br/revista/in...
,22 Erdmann AL, Rodrigues ACRL, Koerich MS, Backes DS, Drago LC, Klock P. O olhar dos estudantes sobre sua formação profissional para o Sistema Único de Saúde. Acta Paul Enferm [Internet]. 2009[cited 2015 Jul];22(3):288-94. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ape/v22n3/a08v22n3.pdf
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), nomeadamente o Brasil, revelam uma realidade idêntica com os estudantes que representam a saúde pública e comunitária de forma predominantemente negativa e a profissão de enfermagem centrada no cuidado ao doente. Salientam também que o tecnicismo e a forte biologização dos conteúdos dominam a formação em enfermagem, o que leva a um perfil profissional que não está preparado para responder aos desafios da atenção integral à saúde em termos de promoção, prevenção, atenção precoce e reabilitação das pessoas e populações.

Nas escolas, se no âmbito teórico os conceitos de holismo e cuidar dominam as concepções subjacentes à formação dos estudantes, é, no entanto, o desempenho e o treino de procedimentos técnico-instrumentais que são privilegiados, com os ensinos clínicos que ocorrerem majoritariamente em contextos hospitalares. Apesar de alguns currículos terem dado ênfase na Atenção Primária à Saúde na década de 1990, o ensino de enfermagem tem sido consistente e tradicionalmente focado na preparação de enfermeiros para prática de cuidados em ambiente de cuidados diferenciados(33 Mackey S, Hatcher D, Happell B, Cleary M. Primary health care as a philosophical and practical framework for nursing education: rhetoric or reality? Contemp Nurse [Internet]. 2013[cited 2015 Oct];45(1):79-84. Available from: httphttp://web.b.ebscohost.com/ehost/pdfviewer/pdfviewer?sid=6d97b388-2a2b-4f16-a98e-69055b50487c%40sessionmgr198&vid=12&hid=116
http://web.b.ebscohost.com/ehost/pdfview...
).

Perante o hospitalocentrismo que continua a dominar os planos curriculares do curso de Enfermagem, tentamos compreender como é que essa concepção se expressa nas RS dos estudantes acerca dos cuidados hospitalares e comunitários, realizando a comparação entre os estudantes do 1º ano (início do curso), que ainda não tiveram contato com os conteúdos das unidades curriculares do plano de estudos, e os estudantes do 4º ano (no final do seu trajeto acadêmico).

A opção pelos estudantes de 1º e 4º ano reside no fato de estarmos perante indivíduos que construíram as suas RS a partir do senso comum (1º ano) e universo científico (4º ano), com implicações importantes para a prática profissional. As RS guiam os comportamentos e as práticas e, dessa forma, justificam as tomadas de posição e os comportamentos. As RS construídas pelos estudantes expressam uma realidade simbólica, não apreensível numa primeira aproximação, que tem capacidade de mobilizar a realidade gerando e orientando os comportamentos e as atitudes(44 Formozo GA, Oliveira DC. [Social representations of the care provided to HIV seropositive patients]. Rev Bras Enferm [Internet]. 2010[cited 2015 Feb];63(2):230-7. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v63n2/10.pdf Portuguese.
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).

Além disso, elas (RS) influenciam não só as práticas de cuidados em cada um dos contextos de trabalho (cuidados intra-hospitalares e cuidados comunitários), como influenciam também as futuras opções pelo contexto profissional de trabalho. Os enfermeiros recém-formados optam predominantemente pelo exercício profissional nos cuidados hospitalares em detrimento dos cuidados comunitários. Ao longo dos anos tem-se verificado que, dos 35 recém-formados anualmente na Universidade de Évora, apenas uma percentagem mínima opta por iniciar o seu percurso profissional na saúde comunitária(55 Parreira Mendes FR, Mantovani MF. [Current dynamics of nursing in Portugal: nurses' representations]. Rev Bras Enferm [Internet]. 2010[cited 2015 Oct];63(2):209-15. Available in: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=267019594007
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).

Pretende-se com este estudo analisar como se estruturam as representações sociais dos cuidados hospitalares e comunitários em dois grupos de estudantes de enfermagem - 1º e 4º ano.

A formação em enfermagem: Do hospitalocentrismo aos cuidados na comunidade

Em Portugal, o ensino de enfermagem seguiu, durante longos anos, uma orientação hospitalocêntrica que se concretizava, na importância e no peso consensualmente atribuídos às áreas clínicas, nos planos curriculares dos cursos de enfermagem, conforme preconizado pelos modelos formativos flexnerianos. Essa orientação assentava na concepção do hospital como o paradigma central do sistema de saúde e o baluarte da intervenção tecnológica, indissociável da cura da doença. Nesse cenário, aos cuidados de saúde na comunidade era reservado um papel secundário, que se traduzia na desvalorização social não só dos cuidados prestados, mas também dos profissionais (nomeadamente médicos e enfermeiros) que aí exerciam(66 Carapinheiro G. A Saúde enquanto matéria política. In G. Carapinheiro (Org). Sociologia da Saúde. Estudos e Perspectivas. Coimbra: Pé de Página Editores; 2006: 137-64.).

A reforma dos cuidados de saúde primários, iniciada em Portugal nos anos 1970 e concretizada no final dos anos 1990, com o objetivo de reorientar a prestação de cuidados - do hospital para a comunidade -, deu importantes contributos para reverter a situação de hospitalocentrismo dos cuidados de saúde e do próprio ensino da enfermagem. Essa reforma deparou-se, no entanto, durante longos anos, com o peso da história - uma forte desconfiança social em face dos cuidados de saúde na comunidade.

Historicamente, a formação em enfermagem centrou-se num modelo médico/clínico baseado no domínio de procedimentos técnicos de diagnóstico e tratamento, onde os planos curriculares no ensino de enfermagem expressavam um cuidado fragmentado dando origem a uma inquietação em relação aos valores de uma abordagem centrada na pessoa(77 Wood C. Choosing the 'right' people for nursing: can we recruit to care? Br J Nurs [Internet]. 2014[cited 2015 Oct];23(10):528-30. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24851917
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). Tratava-se de formar profissionais, dotados de competências e habilidades, que assegurassem a prestação de cuidados intra-hospitalares, dirigidos para a cura da doença e alívio dos sintomas e que expressavam a racionalidade técnica inerente à perspectiva biomédica.

A partir dos anos 70 do século XX, com a reconceitualização da noção de saúde pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e a realização das diferentes conferências internacionais de saúde, nomeadamente a de Alma-Ata (1978), as mudanças nas políticas de saúde começaram a fazer-se sentir e, consequentemente, assistiu-se a uma reconfiguração e valorização dos cuidados de saúde na comunidade, com a principal aposta a ser dirigida à promoção da saúde e prevenção da doença, incentivando e responsabilizando cada indivíduo pela sua saúde e manutenção desta. Esses fatos tiveram também o seu impacto e marcaram o ensino da enfermagem(88 Portugal. Ordem dos Enfermeiros. Ordem dos Enfermeiros elabora dossiê documental sobre a Legislatura de 2009/2013. Rev Ord Enferm [Internet]. 2010[cited 2015 Oct];33:11-4. Available from: http://www.ordemenfermeiros.pt/comunicacao/Revistas/ROE33Janeiro_2010.pdf
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). O objetivo foi tornar o profissional de enfermagem/enfermeiro capaz de atuar junto do indivíduo ou na comunidade, nos três níveis de prevenção, e ainda preparar profissionais de enfermagem / enfermeiros, para serem capazes de estudar e solucionar os problemas de saúde de uma comunidade(99 Cardoso R. Caring in Silence: The Voice of Nursing in Portugal. Interações. [Internet]. 2012 Nov[cited 2015 Apr];22:23-37. Available from: http://interacoes-ismt.com/index.php/revista/article/view/333/345
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).

No início dos anos 80 (século XX), a expectativa do cuidar e os contributos das ciências sociais e humanas passam a ser valorizados no plano curricular, aliviando a subjugação à perspectiva biomédica(44 Formozo GA, Oliveira DC. [Social representations of the care provided to HIV seropositive patients]. Rev Bras Enferm [Internet]. 2010[cited 2015 Feb];63(2):230-7. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v63n2/10.pdf Portuguese.
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), mas ainda com as probabilidades subjacentes à cura da doença e, portanto, os cuidados hospitalares a serem centrais à formação.

Em 1988, com a integração do ensino de enfermagem no ensino superior, é claramente assumido que a preparação técnico-científica dos futuros profissionais se deverá centrar nos três níveis de prevenção e ser dirigida ao indivíduo, família e comunidade(1010 Fernandes, O. Entre a teoria e a experiência. Loures: Lusociência; 2007.).

Cerca de dez anos depois (1999), a aposta nos cuidados de saúde extra-hospitalares torna-se mais forte, sendo contempladas, no plano curricular do Curso de Enfermagem, disciplinas teóricas, teórico-práticas e ensinos clínicos, direcionadas para a prestação de cuidados na comunidade, centrados nas necessidades de cada usuário, implicando o indivíduo, a família, os grupos e a comunidade nos cuidados e ainda perspectivando a família como unidade de cuidados.

Simultaneamente, a matriz conceitual seguida baseia-se nas recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Conselho Internacional de Enfermeiros (ICN), para além dos princípios estabelecidos pela Ordem dos Enfermeiros e que se traduziram num conjunto de conceitos que deviam sustentar a aquisição de competências dos estudantes e visando à construção de uma identidade socioprofissional autônoma. O processo formativo necessitava captar e afirmar uma independência e autonomia própria feita de questionamento dos modelos existentes, afirmação de modelos alternativos e integração de novos desenvolvimentos científicos.

Apesar das mudanças ocorridas, quer no plano curricular (desde 2006, com a adequação do curso de enfermagem ao Processo de Bolonha, passando de um modelo passivo para um modelo baseado no desenvolvimento de competências e numa aprendizagem mais ativa e participativa por parte do estudante), quer no próprio sistema de organização dos cuidados de saúde (maior investimento político e financeiro nos cuidados comunitários), os cuidados comunitários ainda hoje congregam um conjunto de representações com significados predominantemente desvalorizados, dominados pela concepção de que as instituições hospitalares são por excelência espaços onde se aprende a ser enfermeiro(1111 D'Espiney LMCA. Enfermeiros nas comunidades: Produção de cuidados e reconstrução identitária. [Tese]. Universidade de Lisboa [Internet]. Lisboa. 2010[cited 2015 Apr 02]; Available from: http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/3394/1/ulas060468_td_Luisa_d_espiney.pdf
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).

A representação social da enfermagem comunitária continua a pautar-se por um menor estatuto e valorização social, precisamente por estar afastada dos contextos onde imperam a tecnologia, o intensivismo e as situações de emergência - fenômenos historicamente indissociáveis da afirmação da pericialidade e valorização social dos enfermeiros(1212 Carapinheiro G. Saberes e Poderes no Hospital. Porto: Edições Afrontamento; 1993.).

Essas concepções estão longe do moderno conceito de promoção da saúde, que sugere a união de esforços individuais, ações coletivas e institucionais para intervir na realidade quotidiana de indivíduo e comunidades, resolver problemas de saúde da população e melhorar a sua qualidade de vida. Nesse sentido, todas as ações e ou omissões relativamente ao autocuidado estão relacionadas com modelos, valores socioculturais e crenças. Assim, não são apenas as opções individuais, como pressupõe o modelo biologicista, a determinarem as concepções e práticas de saúde no mundo ocidental. O processo de saúde e de doença e a procura de cuidados devem ser concebidos como processos dinâmicos, históricos e sociais(1313 Vendruscolo C, Verdi M. Promoção da Saúde: representações sociais de estudantes dos cursos de graduação na área da saúde. Rev Saude Transf Soc [Internet]. 2011[cited 2015 Feb];1(2):108-15. Available from: http://incubadora.periodicos.ufsc.br/index.php/saudeetransformacao/article/view/516/669
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).

Se no campo político a saúde pública/comunitária passou a ser idealizada como a rede de apoio das comunidades individual e coletivamente consideradas e passou a dominar as agendas da saúde, o mesmo não aconteceu nos planos curriculares da formação básica dos futuros enfermeiros.

Este estudo tem como objetivo analisar como se estruturam as representações sociais dos cuidados hospitalares e comunitários em dois grupos de estudantes de enfermagem - 1º e 4º anos.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa orientada pela Teoria das Representações Sociais (TRS), muito usada na enfermagem. Ela possibilita ao investigador recolher a interpretação dos próprios participantes da realidade que pretende estudar permitindo compreender atitudes e comportamentos de um grupo social. São uma forma de conhecimento socialmente organizado e partilhado(1414 Silva SED, Camargo BV, Padilha MI. A teoria das representações sociais nas pesquisas da Enfermagem brasileira. Rev Bras Enferm [Internet]. 2011[cited 2015 Oct];64(5):947-51. Available from: www.scielo.br/pdf/reben/v64n5/a22v64n5.pdf
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).

Alguns autores afirmam que a TRS pode ser um caminho para se tentar explicar que podem existir diferenças entre o ideal de um pensamento conforme a ciência, a razão e a realidade e o pensamento no mundo social(1515 Moscovici S, Hewstone M. De la science au sens commun. In Serge Moscovici (Editor), Psychologie sociale. 6a ed. Paris: PUF; 1996: 539-66.). Este precisa ser capturado e compreendido quando se pretendem propor ações transformadoras para determinado grupo. Essas ações são aquelas que permitem modificar as crenças e os valores subjacentes aos modelos e às práticas (neste caso formativas) dos indivíduos ou grupos.

A amostra foi constituída por 132 estudantes do Curso de Licenciatura em Enfermagem (CLE) da Escola Superior de Enfermagem da Universidade de Évora (ESESJDUE), sendo 71 do 1º ano e 61 do 4º ano. Integraram o estudo todos os estudantes de 1º e 4º anos que aceitaram participar. Todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Na coleta de dados foi utilizado um questionário composto por duas partes. Na primeira constavam as variáveis sociodemográficas e na segunda apresentavam-se dois estímulos indutores, com recurso à técnica de Associação Livre de Palavras. Os dados foram coletados durante os anos de 2012 e 2013. Para o tratamento dos dados sociobiográficos utilizou-se o Software IBM®SPSS®Statistic versão 20, foi realizada a análise no Software IRaMuTeQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires) 0.6 alpha 3, desenvolvido por Pierre Ratinaud, que permite fazer análises estatísticas sobre corpus textuais e sobre tabelas indivíduos/palavras(1616 Camargo BV, Justo AM. Tutorial para o uso do software de análise textual IRAMUTEQ. Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição - LACCOS. [Internet]. 2013[cited 2015 Apr 02]; Universidade Federal de Santa Catarina. Available from: http://www.iramuteq.org/documentation/fichiers/tutoriel-en-portugais
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). O corpus é constituído por 398 UCI com 268 segmentos analisados, ou seja, 64,32% do total do corpus.

Durante o estudo foram respeitadas as recomendações constantes das Declarações de Helsinque, da Organização Mundial da Saúde e da Comunidade Europeia, no que se refere a pesquisa que envolva seres humanos. Foi também obtida a autorização da Comissão de Ética/Área da Saúde e Bem-Estar da Universidade de Évora.

RESULTADOS

Dos 134 estudantes incluídos no estudo, 52,98% frequentavam o 1º ano e 45,52% dos estudantes frequentava o 4º ano do CLE.

A maioria dos estudantes é do sexo feminino, com 79,85%, e apenas 19,4% do sexo masculino, o que encontra a sua justificativa no fato de a enfermagem ser ainda uma profissão majoritariamente feminina. De acordo com dados de 2014 da Ordem dos Enfermeiros, existiam em Portugal 66.452 enfermeiros, dos quais 54.374 (81,82%) eram do sexo feminino e 12.078 (18,17%) eram do sexo masculino. Na Europa não existem dados disponíveis referentes a 2014, mas em 2012 essa tendência era idêntica tanto no cenário nacional como europeu(1717 Fundação Francisco Manuel dos Santos. Pordata. [Internet]. Alunos matriculados no ensino superior: total e por sexo, Base de Dados Portugal Contemporâneo. 2014[cited 2015 Feb]. Available from: http://www.pordata.pt/Portugal/Alunos+matriculados+no+ensino+superior+total+e+por+sexo-1048
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). Verificou-se também que por área de educação é o sexo feminino que está na sua maioria inscrito na área da Saúde e Proteção Social (76,6%), logo a seguir à área da Educação (80,7%)(1818 Fundação Francisco Manuel dos Santos. Pordata. [Internet]. Alunos do sexo feminino em % dos matriculados no ensino superior: total e por área de educação e formação - Portugal, Base de Dados Portugal Contemporâneo. Lisboa: 2014[cited 2015 Feb]. Available from: http://www.pordata.pt/Portugal/Alunos+do+sexo+feminino+em+percentagem+dos+matriculados+no+ensino+superior+total+e+por+area+de+educacao+e+formacao-1051
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); já no panorama europeu apenas são disponibilizados dados referentes a 2012, sendo esta tendência mantida(1919 Fundação Francisco Manuel dos Santos. Pordata. [Internet]. Mulheres no total de alunos matriculados (ISCED 5-6): total e por área de educação (%) - Europa, Base de Dados Portugal Contemporâneo. Lisboa: 2014 [cited 2015 Feb]. Available from: http://www.pordata.pt/Europa/Mulheres+no+total+de+alunos+matriculados+(ISCED+5+6)+total+e+por+area+de+educacao+(percentagem)-1305
http://www.pordata.pt/Europa/Mulheres+no...
).

Relativamente à variável idade dos estudantes, esta encontra-se entre os 15-19 anos e os 40-44 anos, situando-se a maioria no intervalo dos 20-24 anos com 50,75%, seguido do intervalo dos 15-19 anos com 37,31%. Verificou-se ainda que uma pequena percentagem situa-se acima dos 30 anos, o que se deve à nova modalidade de entrada de estudantes no ensino superior, "Maiores de 23". O Ensino Superior pelos Maiores de 23 destina-se aos candidatos que tenham 23 ou mais anos, ou que os completem até o dia 31 de dezembro do ano em que se candidatam, e não possuam habilitações para se candidatar pelo contingente geral, como, por exemplo, escolaridade insuficiente ou prova de ingresso em falta.

O corpus é constituído por 398 Unidades de Contexto Iniciais (UCI) com 268 segmentos analisados, ou seja, 64,32% do corpus. A partir de matrizes cruzando segmentos de texto e palavras, aplicou-se o método da Classificação Hierárquica Descendente (CHD) e obtivemos 4 classes (Figura 1).

Figura 1
Dendograma da classificação hierárquica descendente

O Dendograma de Classificação Hierárquica Descendente 1 (Figura 1) permite compreender as expressões e cada uma das palavras proferidas pelos participantes, analisando-as a partir de seus lugares e inserções sociais(2020 Austregesilo SC, Leal MCC, Figueiredo N, Goes PSA. A Interface entre a Atenção Primária e os Serviços Odontológicos de Urgência (SOU) no SUS: a interface entre níveis de atenção em saúde bucal. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2015[cited 2015 Oct];20(10):3111-20. Available from: http://www.scielosp.org/pdf/csc/v20n10/1413-8123-csc-20-10-3111.pdf
http://www.scielosp.org/pdf/csc/v20n10/1...
).

Nessa figura, que ilustra as relações interclasses, a leitura deve ser feita de cima para baixo, ou seja, num primeiro momento, o corpus foi dividido em dois subgrupos. Num segundo momento, o subgrupo superior foi dividido em dois, do qual resultaram as classes 3 e 1, e o subgrupo inferior foi também dividido em duas classes, a classe 2 e a classe 4. Isso significa que as classes 1 e 3 possuem menor relação ou proximidade com as classes 2 e 4. A classe 3 possui maior relação ou proximidade com a classe 1, assim como a classe 2 possui mais relação ou proximidade com a classe 4. A CHD parou aqui, pois as quatro classes mostraram-se estáveis, ou seja, compostas por Unidades de Contexto Elementar (UCE) com vocabulário semelhante.

Ao realizar a Análise Fatorial de Correspondência (AFC), o IRAMUTEQ permitiu visualizar, sob a forma de um plano fatorial, as oposições resultantes da CHD. Como mostra a Figura 2, pode-se observar que as quatro classes estão em quadrantes opostos, ou seja, cada classe abrange contextos semânticos específicos, que se refere à raiz semântica da palavra que mais interferiu na classe e permite perceber a ação das variáveis atributos e das quatro classes observadas.

Figura 2
Analise fatorial de correspondência

No eixo vertical, destacam-se dois agrupamentos de palavras, que explicam 38,18% da variância total das UCE e remetem para dois campos semânticos: um no plano superior, com as contribuições da classe 2, e outro em oposição, no plano inferior, onde se posicionam as palavras oriundas das classes 1, 3 e 4.

A classe 2, que remete para os cuidados hospitalares, aparece distante das demais classes. Quanto às classes 1, 3 e 4, embora dispostas no mesmo eixo fatorial, aparecem aglomeradas no eixo horizontal, explicando 32,95% e remetendo para um conjunto de cuidados inerentes ao processo de cuidar os pacientes. A análise do dendograma (Figura 1) e do plano fatorial (Figura 2) chamam a atenção para o modo difuso das representações sociais que os estudantes têm sobre os cuidados prestados nos diferentes contextos (hospitalar e comunitário).

Verificou-se que na classe 1 a palavra central é ajuda, seguida de bem-estar, cuidado e sociedade; na classe 2 a palavra central é enfermeiro, seguida de médicos, internamento e recurso; na classe 3 a palavra central é tratamento, seguida de vacina, comunicar e rastreio; e na classe 4 a palavra central é ensino, seguida de urgência, prevenção e promoção. Salienta-se que a classe 4 é a que tem maior representação social (30,41%) do corpus, logo seguida da classe 3 (28,38%). Surge depois a classe 2 (22,97%) e finalmente aparece a classe 1 (18,24%).

Salienta-se que as classes 1 e 3 estão próximas no plano fatorial, mas verifica-se uma separação de conceitos, apontando para responsabilidade, qualidade, sociedade, ajuda, cuidado e bem-estar a dominarem a classe 1 (estudantes do 1º ano) e o tratamento a dominar a classe 3 (estudantes no grupo 25-29 anos). Por outro lado, há uma proximidade entre as classes 2 e 4, em termos de plano fatorial, mas maior dispersão de conceitos nessas duas classes. Apesar disso, é possível afirmar que a classe 2 agrega conceitos mais próximos da tradição dos cuidados hospitalares (sexo feminino e maior idade) e está mais afastada de todas as outras. A classe 4 apresenta conceitos relacionados com a filosofia preventiva e de promoção da saúde, que recorre ao ensino dos pacientes/populações (estudantes de 4º ano).

A análise de similitude ou de semelhanças apoia-se na teoria dos grafos, pois um grafo constitui o modelo matemático ideal para o estudo das relações entre objetos discretos de qualquer tipo e possibilita identificar as coocorrências entre as palavras e o seu resultado, traz indicações da conexidade entre as palavras, auxiliando na identificação da estrutura de um corpus textual, distinguindo também as partes comuns e as especificidades em função das variáveis ilustrativas (descritivas) identificadas na análise(2121 Marchand P, Ratinaud P. L'analyse de similitude appliqueé aux corpus textueles: les primaires socialistes pour l'election présidentielle française. Em: Actes des 11eme Journées internationales d'Analyse statistique des Données Textuelles. JADT. [Internet]. 2012[cited 2015 Apr 02];687-99. Available from: http://lexicometrica.univ-paris3.fr/jadt/jadt2012/Communications/Marchand,%20Pascal%20et%20al.%20-%20L%27analyse%20de%20similitude%20appliquee%20aux%20corpus%20textuels.pdf
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). Essa análise de semelhanças permitiu visualizar a relação entre as palavras e a sua conectividade dentro de cada classe e por outro lado a ligação entre as várias classes. Com essa análise conseguiu-se perceber como os estudantes relacionam as várias palavras para descreverem as suas RS dos cuidados hospitalares e comunitários.

Através da análise de semelhanças (Figura 3) pode-se identificar a estrutura, o núcleo central e sistema periférico da interpretação da representação social que os estudantes têm acerca dos cuidados hospitalares e cuidados na comunidade. Verificou-se que os dois grandes eixos organizadores da representação social são enfermeiro e doença/doente no núcleo central. Numa zona da periferia destaca-se o cuidado e ajuda diretamente ligados ao enfermeiro e, em outra zona da periferia, surgem o tratamento e a prevenção associados à doença.

Figura 3
Dendograma de similitude

A nuvem de palavras agrupa e organiza as palavras graficamente em função da sua frequência. É uma análise lexical mais simples, porém graficamente bastante interessante, na medida em que possibilita a rápida identificação das palavras-chave de um corpus.

Na nuvem das palavras mais evocadas pelos estudantes destaca-se enfermeiro, doença/doente, tratamento, prevenção, cuidado e ajuda. Também podem ser visualizadas palavras como ensino, internamento, atenção, idoso, responsabilidade, educar, doença, tratamento, cuidado, prevenção e responsabilidade. Pode-se constatar que a nuvem de palavras corrobora os resultados explicitados anteriormente.

DISCUSSÃO

O processo de construção das representações agrega-se em torno de 4 classes, com um núcleo central que apresenta dois eixos organizadores, enfermeiro e doença/doente.

Os dois eixos organizadores da representação dos estudantes remetem para uma RS dominada pelo hospitalocentrismo, onde a prática de enfermagem se expressa e assume por referência a doente/doença.

A teoria das RS diz-nos que é precisamente nas interações sociais diárias e nos espaços formativos quotidianos que se constroem mutuamente, quer o objeto do cuidado, quer a representação da profissionalidade (identidade). Isso significa e exige não apenas novas interpretações, mas uma ampliação do conceito de cuidado à própria saúde, que promova uma visão compreensiva e interativa das questões da saúde individual e coletiva, na atualidade(2222 Zoboli ELCP, Schveitzer MC. Nursing values as social practice: a qualitative meta-synthesis, Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2013[cited 2015 Feb 02];21(3):695-703. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v21n3/0104-1169-rlae-21-03-0695.pdf
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).

O hospitalocentrismo tem dominado o ensino da enfermagem ao longo do tempo e encontra as suas bases de sustentação no Relatório Flexner (1910), que defendia o ensino centrado na doença e o hospital como instituição de referência tanto para o ensino como para a prática clínica.

Historicamente, a saúde comunitária esteve ausente, durante longos anos, da agenda da saúde e da formação em saúde, e só após a conferência de Alma-Ata (1978) a ênfase na prevenção primária e promoção da saúde colocou enfermeiros em posições chave como modelos, promotores e prestadores de cuidados de saúde. A inclusão desses conceitos de saúde nos currículos de enfermagem pode proporcionar aos estudantes o conhecimento e as habilidades necessárias para educar os pacientes sobre estratégias específicas para melhorar a saúde(2323 Bryer J, Cherkis F, Raman J. Health-Promotion behaviors of undergraduate nursing students: a survey analysis. Nurs Educ Perspec [Internet]. 2013[cited 2015 Oct 12];11(3):569-85. Available from: https://www.questia.com/library/journal/1G1-352615134/health-promotion-behaviors-of-undergraduate-nursing
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), e essa marca não deixa de se fazer sentir nas RS dos estudantes entrevistados.

Se o lugar privilegiado das teses flexnerianas foi a academia, também é certo que o seu impacto se estendeu à sociedade e, ainda hoje, para o senso comum, todo o universo da saúde é indissociável da doença e do contexto onde assume legitimidade - o hospital.

Os conceitos que dominam a zona da periferia ligada à doença/doente são tratamento e prevenção e os conceitos que dominam a zona da periferia ligada ao enfermeiro são o cuidado e a ajuda, conceitos ancestralmente indissociáveis da profissão de enfermagem.

É paradigmático que os conceitos presentes na periferia ligada ao enfermeiro (cuidado e ajuda) dominem as RS dos estudantes do 1º ano do curso, e nesse sentido sejam construídas a partir do senso comum e da sua mundivivência, já que o contato com os conteúdos do plano curricular ainda não tinha ocorrido, quando foram entrevistados.

Relativamente às variáveis idade e sexo, destacam-se, no sexo feminino e nos estudantes com faixa etária mais alta, RS sociais pautadas por conceitos indissociáveis dos cuidados hospitalares. Alguns autores assinalam diferenças, em função das questões de gênero, em que no feminino se verificam mais frequentemente evocações de humanização, dedicação e equipe. Essas evocações, nomeadamente da humanização, refletem a relevância e as crescentes preocupações formativas (e públicas) diante da política de humanização dos serviços de saúde, tanto em Portugal como na maioria dos países. O gênero feminino parece congregar e carregar consigo a responsabilidade pelos valores ancestrais da história da enfermagem, de que a humanização e dedicação são apenas dois exemplos.

Também relativamente à idade dos estudantes(2424 Brito AMR, Brito MJM, Gazzinelli MFC, Montenegro LC. [Social representations of Nursing students about "being nurse"]. Rev Bras Enferm [Internet]. 2011[cited 2015 Feb 02];64(3):527-35. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v64n3/v64n3a17.pdf Portuguese.
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), nota-se que o comportamento vocacional se desenvolve à medida que o indivíduo progride na idade(2525 Simões AJC. Motivações e expectativas profissionais dos estudantes de enfermagem: estudo numa escola da área de Lisboa. [Dissertação]. Universidade Aberta. Lisboa [Internet]. 2008[cited 2015 Apr 02]; Available from: https://repositorioaberto.uab.pt/bitstream/10400.2/1229/1/Motiva%C3%A7%C3%B5es%20e%20Expectativas%20Profissionais%20dos%20Estudantes%20de%20En.pdf
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).

Verificou-se que as classes com maior representatividade no corpus e onde a variável ano de curso (finalistas) e idade se destacam remetem para conceitos dominantes do hospitalocentrismo, embora permeado por conceitos que tradicionalmente dominam a atuação de enfermagem na comunidade. Uma possível explicação para essas RS pode residir no fato de os estudantes finalistas, no 4º ano do curso, realizarem dois ensinos clínicos/estágios em cuidados comunitários. Mas, mesmo aqui, é a prevenção da doença que se destaca, e não a promoção da saúde.

Há autores que salientam no seu estudo das RS dos estudantes sobre promoção da saúde, que a RS não varia em função do ano de formação, mas do envolvimento social dos estudantes na vida acadêmica e do seu interesse pessoal sobre o tema(1313 Vendruscolo C, Verdi M. Promoção da Saúde: representações sociais de estudantes dos cursos de graduação na área da saúde. Rev Saude Transf Soc [Internet]. 2011[cited 2015 Feb];1(2):108-15. Available from: http://incubadora.periodicos.ufsc.br/index.php/saudeetransformacao/article/view/516/669
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). Outros autores referem que nos relatos dos estudantes não emerge a ideia de que o enfermeiro que trabalha em contexto hospitalar possa prestar cuidados centrados na família, o que já não acontece no contexto dos cuidados comunitários(2626 Rodrigues MFMR, Costa MLV. Enfermeiro de família: que representação? Rev Ciênc Saúde [Internet]. 2013[cited 2015 Feb 02];5?42-52. Available from: http://www.salutisscientia.esscvp.eu/Site/Artigo.aspx?artigoid=31021
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). Isso significa que os estudantes concebem os cuidados hospitalares e os cuidados comunitários como contextos que remetem para esferas de atuação completamente diferentes (os doentes no hospital e as famílias na comunidade).

Esse é um dos motivos por que alguns autores afirmam que a formação acadêmica é um fator hegemônico na fragmentação das práticas(2727 Reis CB, Andrade SMO. Representações sociais das enfermeiras sobre a integralidade na assistência à saúde da mulher na rede básica. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2008 Feb[cited 2015 Feb 02];13(1):61-70. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csc/v13n1/10.pdf
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). Outros pronunciam-se no mesmo sentido, ao afirmarem a necessidade da mudança na formação dos profissionais, a qual requer novos elementos metodológicos e novos ambientes de prática, mais próximos da realidade da população(1313 Vendruscolo C, Verdi M. Promoção da Saúde: representações sociais de estudantes dos cursos de graduação na área da saúde. Rev Saude Transf Soc [Internet]. 2011[cited 2015 Feb];1(2):108-15. Available from: http://incubadora.periodicos.ufsc.br/index.php/saudeetransformacao/article/view/516/669
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).

A crítica da abordagem hospitalocêntrica da formação, considerada demasiado biologicista, também é salientada por negar a determinação social da saúde e produzir numa abordagem reducionista do conhecimento(2828 Almeida FN. [Recognizing Flexner: an inquiry into the production of myths in medical education in contemporary Brazil]. Cad. Saúde Pública [Internet]. 2010[cited 2015 Feb 02];26 (12):2234-49. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csp/v26n12/03.pdf Portuguese.
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). Em termos pedagógicos, esse modelo é considerado massificador, passivo e com efeitos nocivos sobre a formação dos profissionais de saúde.

Se a formação acadêmica dos enfermeiros reflete as influências do Relatório Flexner e se é certo que esses profissionais de saúde deram enormes contribuições para a saúde ao longo do século passado, na atualidade um modelo de formação de bases flexerianas é inadequado para enfrentar os desafios da saúde no século XXI, quando cada vez mais os cuidados de saúde assentam numa base comunitária(2828 Almeida FN. [Recognizing Flexner: an inquiry into the production of myths in medical education in contemporary Brazil]. Cad. Saúde Pública [Internet]. 2010[cited 2015 Feb 02];26 (12):2234-49. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csp/v26n12/03.pdf Portuguese.
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). A educação flexneriana não é coerente com os desafios atuais porque é fragmentada, centrada em realidades demográficas e epidemiológicas ultrapassadas e não forma profissionais para enfrentarem os problemas de saúde contemporâneos.

Na sociedade atual, a saúde e todas as práticas desta são reconhecidas como resultado de um processo político-social, cujas condições materiais permeiam inevitavelmente a prática da enfermagem(2929 Keepnews D. Mapping the Economic Value of Nursing: A White Paper, Seattle: Washington State Nurses Association. [Internet]. 2013[cited 2015 Apr 02]; Available from: http://www.wsna.org/practice/publications/documents/economic%20value%20of%20nursing%20-%20white%20paper.pdf
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). Os atuais contextos de saúde exigem enfermeiros, com uma formação capaz de responder aos novos desafios e às novas práticas, dotados de uma visão compreensiva e interativa das questões sociais e da saúde, em consonância com as complexidades dessas áreas e as pluralidades da sociedade atual(2222 Zoboli ELCP, Schveitzer MC. Nursing values as social practice: a qualitative meta-synthesis, Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2013[cited 2015 Feb 02];21(3):695-703. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v21n3/0104-1169-rlae-21-03-0695.pdf
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).

CONCLUSÃO

O processo de construção das RS dos estudantes remete para o modelo hegemônico de formação dominado pelo modelo de formação flexneriano, pelo hospitalocentrismo, nos estudantes finalistas e pelo senso comum, nos estudantes do 1º ano.

As RS não se estruturam em termos de cuidados hospitalares versus cuidados comunitários, mas centram-se na doença/doente e no papel do enfermeiro no tratamento, prevenção e cuidado. Os determinantes sociais da saúde e da doença e a promoção da saúde estão ausentes das RS dos estudantes entrevistados. O enfermeiro é representado quer como o profissional que trata, presta cuidados e ajuda, quer a partir da sua posição de poder, como o profissional que ensina e educa medidas higienistas e de prevenção da doença.

As RS dos estudantes também não evidenciam as alterações da formação em termos dos cuidados comunitários, cujos conteúdos programáticos passaram a integrar o plano curricular do curso e estão presentes, através de várias unidades curriculares teóricas, teórico-práticas e práticas em 3 anos do curso, há mais de 12 anos. Esse fato permite questionar se as RS dos estudantes de enfermagem sobre os cuidados hospitalares e cuidados comunitários têm relação com os conteúdos que vão adquirindo e desenvolvendo ao longo da sua formação, ou se os resultados obtidos não fazem mais do que confirmar a manutenção da hegemonia do hospitalocentrimo, na academia e sociedade, e apontam para a necessidade de repensar os modelos formativos.

A sociedade atual e as novas dinâmicas da saúde precisam de enfermeiros que se comprometam política e socialmente e que desenvolvam quotidianamente uma prática de ação-reflexão, sobre cada um dos diferentes contextos de trabalho, e não de enfermeiros que circunscrevam o cuidado ao cumprimento de uma, ou várias técnicas, conformes à tradição hospitalocêntrica.

Para terminar apontam-se os benefícios e limitações do estudo. A sua principal contribuição é que ele não só vem corroborar com diversos estudos e análises sobre esse tema, como também revelar a necessidade de uma participação crítica e reflexiva sobre a formação e o perfil profissional do enfermeiro, interna e externa à academia, que promova novos modelos de referência e questione e combata os modelos hegemônicos socialmente prevalentes na sociedade, onde a prática profissional de enfermagem é indissociável do hospital, da doença e do tratamento ou cura, omitindo o seu papel central, único e decisivo na saúde dos indivíduos e populações.

A principal limitação do estudo, se assim se pode designar, resultou da dificuldade em captar a RS dos cuidados hospitalares e comunitários. A questão é se essa é uma limitação inerente ao estudo ou uma limitação inerente ao modelo de formação dos estudantes.

REFERÊNCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2015
  • Aceito
    04 Nov 2015
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