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Enfrentar a violência infantil na Atenção Básica: como os profissionais percebem?

Enfrentar la violencia infantil enatención primaria: ¿cómo la perciben los profesionales?

RESUMO

Objetivo:

conhecer a percepção dos profissionais da saúde que atuam na Atenção Básica acerca da violência infantil, visto que a violência contra a criança tem aumentado progressivamente no mundo, requerendo todos os esforços para a intervenção.

Método:

trata-se de estudo qualitativo, descritivo e exploratório, realizado por meio de entrevistas com os profissionais da Atenção Básica em um distrito de saúde do município de São Paulo, sendo utilizada a ferramenta Alceste para a análise dos dados oriundos dos discursos.

Resultados:

as percepções dos profissionais apontam para os limites e dificuldades da rede assistencial para o enfrentamento; necessidade de ações intersetoriais; situações de violências identificadas no âmbito dos atendimentos; e causas e repercussões da violência no desenvolvimento infantil.

Conclusão:

constatou-se que há necessidade de formação qualificada dos trabalhadores, organização da rede de saúde para oferta de serviços assistenciais em quantidade e qualidade e aporte de recursos financeiros para o enfrentamento da violência infantil.

Descritores:
Violência Doméstica; Desenvolvimento Infantil; Atenção Primária à Saúde; Enfrentamento; Assistência à Saúde

RESUMEN

Objetivo:

conocer la percepción de los profesionales sanitarios que trabajan en atención primaria sobre el abuso infantil, pués la violencia contra los niños ha aumentado de manera progressiva en el mundo, lo que requiere todos los esfuerzos posibles para la intervención.

Método:

estudio cualitativo, descriptivo y exploratorio realizado a través de entrevistas con los profesionales de la atención primaria en un área sanitaria de São Paulo. La herramienta Alceste fue utilizada para el análisis de los datos de los discursos.

Resultados:

las percepciones de los profesionales apuntan a los límites y las dificultades de la red de cuidado en el enfrentamiento; la necesidad de una acción intersectorial; situaciones de violencia identificadas dentro de la atención; y las causas y efectos de la violencia en el desarrollo infantil.

Conclusión:

hay necesidad de una formación cualificada de los trabajadores, la organización de la red de salud para la prestación de servicios de atención en la cantidad y la calidad, y los recursos financieros para enfrentar la violencia contra los niños.

Descriptores:
Violencia Doméstica; Desarrollo Infantil; Atención Primaria de Salud; Enfrentamiento; Cuidado de la Salud

ABSTRACT

Objective:

to know the perception of health professionals working in primary care about child violence, since this has increased progressively in the world, requiring every effort to intervene.

Method:

this is a qualitative, descriptive and exploratory study performed through interviews with professionals in primary care in a health district of São Paulo. The Alceste tool was used for analysis of data from the speeches.

Results:

perceptions of professionals point to the limits and difficulties of the care network with coping; need for intersectoral action; violence situations identified within the caresetting; and causes and effects of violence on child development.

Conclusion:

there is need for qualified training of workers, health network organization for the provision of quantity and quality of care services, and financial resources for coping with child violence.

Descriptors:
Domestic Violence; Child Development; Primary Health Care; Coping; Health Care

INTRODUÇÃO

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a violência que envolve crianças e adolescentes como todas as formas de maus-tratos emocionais e/ou físicos, abuso sexual, negligência ou tratamento negligente, comercial ou outras formas de exploração, com possibilidade de resultar em danos potenciais ou reais à saúde das crianças, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade no contexto de uma relação de responsabilidade, confiança ou poder(11 Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, organizadores. World report on violence and health. Geneva (CH): World Health Organization, 2002.).

No Brasil a preocupação com os maus-tratos na infância sob a ótica da epidemiologia, a prevenção dos fatores de risco e o atendimento especializado são ainda muito recentes, tendo origem na década de 1980, coincidindo com a colocação do tema da violência na pauta da saúde pública(22 Sanchez RN, Minayo MCS. Violência contra Crianças e Adolescentes: Questão Histórica, Social e de Saúde. In: Lima CA, organizador. Violência faz mal à saúde. Brasília: MS, 2006. p. 29-38.).

A violência contra crianças, seja na forma dos abusos, seja na de negligência, é no mínimo incompreensível, visto tratar-se de seres que demandam do universo adulto a proteção e segurança necessárias para melhor se desenvolverem. Por se encontrarem em processo de crescimento e desenvolvimento, crianças e também adolescentes apresentam maior vulnerabilidade no que concerne à violência, o que pode trazer repercussões sobre sua saúde(22 Sanchez RN, Minayo MCS. Violência contra Crianças e Adolescentes: Questão Histórica, Social e de Saúde. In: Lima CA, organizador. Violência faz mal à saúde. Brasília: MS, 2006. p. 29-38.).

As situações de violência podem ser bastante deletérias à saúde das pessoas ao longo dos anos, o que aumenta a importância de orientar ações e pactuar estratégias para atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias, articuladas com as políticas sociais e de direitos humanos. A rede de serviços do SUS, embora se constitua num espaço privilegiado para a identificação, acolhimento, atendimento, notificação, cuidados e proteção de crianças e adolescentes em situação de violência, assim como para orientação às famílias, convive com o desafio de lidar com as complexas questões relacionadas à violência, que envolvem aspectos de ordem moral, ética, ideológica e culturais(33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Linha de cuidado para a atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violências: orientação para gestores e profissionais de saúde. Brasília: MS ; 2010.).

No âmbito da saúde, a questão necessita ser abordada focalizando o olhar sobre as pessoas que sofrem violência, com vistas a prestar tanto o atendimento adequado e alívio do sofrimento quanto a pensar nos modos de prevenir as ocorrências e no sentido de construir uma forma ampliada de fazer a saúde e promover uma sociedade saudável(44 Souza ER, Jorge MHPM. Impacto da violência na infância e adolescência brasileiras: magnitude da morbimortalidade. In: Lima CA, organizador. Violência faz mal à saúde. Brasília: MS, 2006. p. 23-8.).

Estudos acerca da violência doméstica mostram tanto a falta de qualificação dos profissionais de saúde quanto a importância da atuação deles na interrupção do ciclo de violência, na promoção das relações interpessoais salutogênicas, no reconhecimento e notificação dos casos e na assistência e intervenção necessária tanto para as vítimas quanto para os agressores(55 Nascimento EFGA, Ribeiro AP, Souza ER. Perceptions and practices of Angolan health care professionals concerning intimate partner violence against women. Cad Saúde Pública [Internet]. 2014 [cited 2015 Sep 18];30(6) 1229-38. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csp/v30n6/0102-311X-csp-30-6-1229.pdf
http://www.scielo.br/pdf/csp/v30n6/0102-...
-66 Salcedo-Barrientos DM, Miura PO, Dias MV, Egry EY. How do primary health care professionals deal with pregnant women who are victims of domestic violence? Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2014[cited 2015 Sep 18];22(3). Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v22n3/0104-1169-rlae-22-03-00448.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rlae/v22n3/0104...
). E esse processo de qualificação, assim como a devida instrumentalização - no sentido humano, do saber e no de equipamentos e capacidade instalada - devem fazer parte das políticas de enfrentamento da violência contra crianças(77 Sakata KN, Egry EY, Narchi NZ. The Brazilian Policy for reduction of accidents and violence aligns with international perspectives? Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2014[cited 2015 Sep 18];48(Esp):197-203. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v48nspe2/0080-6234-reeusp-48-nspe2-00197.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v48nspe2...
-88 Apostólico MR, Hino P, Egry EY. Possibilities for addressing child abuse in systematized nursing consultations. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2013[cited 2015 Sep 18];47(2):318-24. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v47n2/en_07.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v47n2/en...
).

Novos conhecimentos adquiridos pelos profissionais envolvidos no atendimento à criança vítima de violência e suas famílias podem aprimorar suas práticas, de forma que sejam capazes de reorganizá-las para oferecer melhor assistência. Por outro lado, a realidade da violência infantil e suas diferentes formas de manifestação também colocam em pauta a necessidade de ampliar os saberes dos profissionais de saúde de modo que possam compreender e atuar diante das complexas situações que se apresentam.

Compreender e atuar diante da violência doméstica na infância e na adolescência representa uma realidade que tem exigido, cada vez mais, um posicionamento dos profissionais da saúde, colocando em pauta a necessidade de construir um referencial teórico-analítico capaz de permitir sua compreensão, considerando para tanto sua complexidade e diferentes formas de manifestação(99 Cano MAT. Debaixo do mesmo teto: análise sobre a violência doméstica. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2009[cited 2015 Sep 18];14(5):1949-50. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csc/v14n5/38.pdf
http://www.scielo.br/pdf/csc/v14n5/38.pd...
).

OBJETIVO

Conhecer a percepção dos profissionais da saúde acerca da violência infantil na Atenção Básica, tendo por finalidade subsidiar programa de qualificação específica para o enfrentamento desse fenômeno.

MÉTODO

Aspectos éticos

O projeto foi aprovado pelos comitês de ética da Escola de Enfermagem da USP e da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, atendendo aos dispositivos legais contidos na Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, vigente quando da aprovação do projeto(1010 Minayo MCS. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. 9ª ed. São Paulo: Hucitec; 2006.).

Referencial teórico-metodológico

O estudo fundamenta-se na Teoria da Intervenção Práxica da Enfermagem em Saúde Coletiva (Tipesc)(1111 Egry EY. Saúde coletiva: construindo um novo método em enfermagem. São Paulo (SP): Ícone; 1996.), que, do ponto de vista da construção teórica, se constitui num instrumental teórico-metodológico fértil para a intervenção da enfermagem no processo saúde-doença da coletividade. Como método, apresenta a possibilidade de uma sistematização dinâmica de captar e interpretar um fenômeno articulado aos processos de produção e reprodução social, referente à saúde e doença de uma dada coletividade. A Tipesc contém as seguintes etapas: captação da realidade objetiva, interpretação da realidade objetiva, intervenção na realidade e reinterpretação da realidade. Os instrumentos para a coleta dos dados foram adaptados a partir da sistematização proposta pela Tipesc, mais especificamente relacionados às etapas de captação e interpretação da realidade objetiva.

Tipo de estudo

Estudo descritivo, na perspectiva da pesquisa qualitativa(1212 Prefeitura Municipal de São Paulo [Internet]. São Paulo: PMSP, 2014. [cited 2015 Sep 18]. Available from: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/atencao_basica
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/s...
), e fundamentado na Teoria da Intervenção Práxica da Enfermagem em Saúde Coletiva (Tipesc)(1111 Egry EY. Saúde coletiva: construindo um novo método em enfermagem. São Paulo (SP): Ícone; 1996.).

Procedimentos metodológicos

Cenário do estudo

O cenário de pesquisa foi o Distrito de Capão Redondo, vinculado à Supervisão Técnica de Saúde do Campo Limpo, da Coordenadoria de Saúde Sul, conforme organização do Sistema Único de Saúde no Município de São Paulo. O Distrito de Capão Redondo apresenta população estimada em 270.716 habitantes, densidade demográfica de 19,549 habitantes/km2 e taxa de crescimento de 0,77% ao ano(1313 Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde Brasil. Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996. Conselho Nacional de Saúde [Internet]. 1996[cited 2015 Sep 18]. Available from: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/1996/reso196.doc
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/...
). A estratégia Saúde da Família tem sido implementada em 14 Unidades Básicas de Saúde (UBS), totalizando 81 equipes de saúde da família, cujo percentual de cobertura está em 94,7%(1313 Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde Brasil. Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996. Conselho Nacional de Saúde [Internet]. 1996[cited 2015 Sep 18]. Available from: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/1996/reso196.doc
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/...
).

Fonte de dados

Foram realizadas entrevistas junto aos profissionais da Atenção Básica do Distrito, no período de julho de 2013 a março de 2014. Os critérios para inclusão foram: atuar há mais de seis meses na Atenção Básica em nível local ou regional ou central e se dispor a responder às questões da entrevista. Não houve critérios de exclusão. Em nível local, os entrevistados foram 22 profissionais que compunham equipes de Saúde da Família (agentes comunitários de saúde, auxiliares de enfermagem, médicos e enfermeiras), gerentes das Unidades de Saúde e as referências para questões de violência ou membro do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), em três diferentes UBS. Em nível regional (Distrito do Capão Redondo) e central (Secretaria Municipal de Saúde) foram entrevistados três membros da coordenação que atuavam como referência para as questões relacionadas à violência.

Coleta e organização dos dados

A coleta de dados foi realizada por meio de roteiro semiestruturado de entrevista, onde os profissionais tiveram a oportunidade de discorrer sobre o tema da violência infantil, iniciando-se com a descrição de uma situação de violência infantil vivenciada na prática profissional. A seguir, solicitou-se que, diante da situação descrita, discorresse sobre o significado da violência contra a criança; as repercussões da violência no desenvolvimento da criança; notificação da violência; as dificuldades e facilidades para o enfrentamento da violência contra a criança; a contribuição das instituições, profissionais e políticas públicas na assistência à criança vítima de violência. As entrevistas foram realizadas por duas das pesquisadoras, gravadas, transcritas e revistas por outra pesquisadora do grupo. As entrevistadoras tinham familiaridade com as unidades de atenção básica, bem como outros níveis, tendo sido facilitada a introdução das pesquisadoras junto aos entrevistados por uma das pesquisadoras pertencentes ao quadro funcional do Distrito.

Análise dos dados

Os discursos foram processados pelo programa Alceste- Análise Lexical por Contexto de um Conjunto de Segmentos de Texto(1414 Camargo BV. ALCESTE: um programa informático de análise quantitativa de dados textuais. In: Moreira ASP, Camargo BV, Jesuíno JC, Nóbrega SM, organizadores. Perspectivas Teórico-metodológicas em representações sociais. João Pessoa (PB): Ed. Universitária; 2005. p. 511-39.). Esse programa realiza uma análise lexical automática de textos e quantifica as estruturas mais significativas, dentro do seu contexto de ocorrência, apontando quais fenômenos poderão ter interesse científico. A análise de dados textuais classifica os enunciados, comparando-se entre os perfis lexicais; além de considerar a qualidade do fenômeno estudado, fornece critérios provenientes do próprio material para a sua consideração como indicador de um fenômeno de interesse científico(1414 Camargo BV. ALCESTE: um programa informático de análise quantitativa de dados textuais. In: Moreira ASP, Camargo BV, Jesuíno JC, Nóbrega SM, organizadores. Perspectivas Teórico-metodológicas em representações sociais. João Pessoa (PB): Ed. Universitária; 2005. p. 511-39.). Para que essa análise possa ser realizada pelo Alceste há duas condições necessárias: o corpus deve apresentar coerência temática em seu conjunto e o documento precisa ser volumoso de forma a permitir que se considere o elemento estatístico(1515 Oliveira DC, Gomes AMT, Marques SC. Análise estatística de dados textuais: alguns princípios e uma aplicação ao campo da saúde. In: Menin MSS, Shimizu AM, organizadores. Experiência e Representação Social: questões teóricas e metodológicas. São Paulo (SP): Casa do Psicólogo; 2005. p.157-200.).

RESULTADO

O conjunto de dados produzidos a partir dos textos processados pelo Alceste(1414 Camargo BV. ALCESTE: um programa informático de análise quantitativa de dados textuais. In: Moreira ASP, Camargo BV, Jesuíno JC, Nóbrega SM, organizadores. Perspectivas Teórico-metodológicas em representações sociais. João Pessoa (PB): Ed. Universitária; 2005. p. 511-39.) identificou 25 Unidades de Contexto Inicial (UCI), sendo estas compatíveis com o número de entrevistas realizadas e processadas pelo programa. O corpus foi dividido em 1.011 Unidades de Contexto Elementar (UCEs), que apresentaram 41.693 formas ou palavras distintas, correspondendo a 100% do material disponibilizado, classificando para análise 762 UCEs, o que representa 98,51% de aproveitamento do material submetido à análise.

As UCEs classificadas para análise encontram-se agrupadas em quatro classes lexicais, conforme distribuição descrita na Tabela 1:

Tabela 1
Distribuição das unidades de contexto elementar, segundo as classes geradas pelo Alceste

Na Classe 1 predomina o conteúdo discursivo das UCEs referente aos sujeitos de nível central (membros da coordenação municipal que atuavam como referência para as questões relacionadas à violência), no total de 15 UCEs dentro das 20 que a compõem. Nas Classes 2, 3 e 4, há o predomínio dos discursos de nível local (agentes comunitários de saúde, auxiliares de enfermagem, médicos e enfermeiras, gerentes e as referências para questões de violência ou NASF), correspondendo a 70 UCEs das 72 que as compõem. O discurso dos sujeitos de nível regional apresenta seis UCEs nas Classes 2, 3 e 4 e duas UCEs na Classe 1.

Adotou-se o modo de análise padrão, visto que por meio dela podem-se obter resultados mais condizentes para a interpretação do corpus.

A primeira e segunda classificação hierárquica descendente (CHD) realizadas pelo Alceste apontam para a estruturação das UCIs em dois eixos temáticos: o primeiro eixo, constituído pelas Classes 1 e 2, refere-se aos limites e dificuldades dos serviços na atenção às situações de violência infantil e à necessidade de ações intersetoriais no combate às situações de violência infantil. O segundo eixo, constituído pelas Classes 3 e 4, aponta as situações de violências identificadas no âmbito dos atendimentos e as causas e repercussões da violência no desenvolvimento infantil.

Considerando que a divisão dos conteúdos em dois eixos resulta de um bloco textual comum, é possível entender que as classes que os compõem apresentam complementaridade no que tange aos significados dos contextos analisados.

Os conteúdos do discurso da Classe 1, mais condizentes com os limites e dificuldades dos serviços na atenção às situações de violência infantil, apontam que as formas de enfrentamento esbarram numa rede carente de serviços assistenciais em quantidade e organização, recursos financeiros e pessoas capacitadas para lidar com as situações de violência. A atuação em rede é bastante dificultada por uma lógica setorizada e verticalizada de execução das ações no âmbito do município, pela lenta e desarmoniosa comunicação e troca de informações, além do reduzido quantitativo de profissionais que atuam na rede de prevenção.

As falas dos profissionais entrevistados pontuam aspectos importantes condizentes com dificuldades e limites para atuação diante das situações de violência infantil: a percepção de que houve aumento no quantitativo de notificações de violência, a necessidade de ações voltadas para um trabalho com os perpetradores, indicação e encaminhamento para profissionais que saibam lidar melhor com as situações de violência, desconhecimento pelos profissionais que atuam na assistência direta dos fluxos de encaminhamento para as situações de violência identificadas, necessidade de fortalecimento da atenção básica como referência e apoio à identificação das situações de violência, necessidade de diretrizes mais claras sobre os fluxos de encaminhamento e de maior conhecimento das equipes sobre violência.

Mas o atendimento ao próprio agressor é uma preocupação, a gente até consegue fazer alguns fluxos, temos uma parceria muito boa na Sul [regional] com o Ministério Público que sempre está junto com as nossas instituições nas demandas; e sempre que há a necessidade de uma medida de afastamento, é só levar o caso para eles que já faz a medida (sic). (suj_02)

Principalmente para oferecer ao território alternativas como mediação de conflitos, essas técnicas. Nós temos uma parceria com a área de práticas integrativas, então o que nós pactuamos, sempre que tiver qualquer curso nessa área de relaxamento, dança circular, empoderamento, terapia comunitária, que abrissem vagas para as pessoas dos núcleos. (suj_02)

Enquanto o número era esporádico, acontecia um caso em uma UBS, depois dois, mais outro caso. Hoje temos 120 Unidades Básicas de Saúde no nosso território; então era fácil destrinchar esses encaminhamentos. Só que o volume tem aumentado, dessas solicitações, dessas necessidades. (suj_02)

Hoje mesmo pela manhã a gente estava discutindo isso com a área técnica de saúde mental, que nós precisaríamos construir e identificar no território profissionais que conseguissem fazer o matriciamento para as Unidades Básicas de Saúde lidarem melhor com esses casos. (suj_02)

Em relação à Classe 2, que versa sobre a necessidade de ações intersetoriais no combate às situações de violência infantil, os discursos dos profissionais, ao mesmo tempo que iluminam as dificuldades, também apontam alternativas. Nesse sentido as dificuldades remetem aos seguintes aspectos: a ausência de instrumentos na formação dos enfermeiros e demais membros da equipe para trabalhar as questões relacionadas à violência, receio de exposição dos profissionais em áreas de grande violência e suporte da rede burocratizada, visto que as situações demoram a ser resolvidas. No campo das alternativas, apontam a necessidade de ter uma equipe multiprofissional como referência na UBS para as questões de violência, maior suporte e articulação das políticas locais de assistência social, saúde, educação, segurança, emprego, transferência de renda e justiça para enfrentamento da violência e apoio para as mães que também sofrem violência. Além disso, ressaltam a importância dos profissionais de saúde na notificação das situações de violência, apontando para uma forma de legitimação da questão da violência na pauta da saúde.

Há facilidade, mas, por ser uma área que abriga muita violência, pode ser que haja receio de dar a cara a tapa por conta de retaliações. A facilidade é a questão da moral, uma unidade de saúde que as pessoas têm uma moral muito elevada e não aceitam esse tipo de coisa. (suj_18)

Porque na nossa formação a gente não tem instrumento para lidar com essa questão da violência. Para lidar com essa questão um pouco maior, acho que transborda a questão biológica que a gente está mais focada na nossa formação. (suj_21)

A Classe 3, sobre as situações de violências identificadas no âmbito dos atendimentos, apresenta as situações de negligência como maior quantitativo nos casos relatados, seguida da violência física e depois sexual.

Esta foi a maior violência que presenciei contra a criança. Não temos noção do tempo, a criança chorava muito e uma das coisas era fome porque fiz uma mamadeira na casa da vizinha e o menino tomava desesperadamente. (suj_04)

Ia passar na consulta de enfermagem, quando eu comecei a examinar a criança e vi que a criança tinha marcas até de queimadura. (suj_10)

A Classe 4, que trata das causas e repercussões da violência no desenvolvimento infantil, aponta que a violência apresenta como causas principais o grande número de filhos, o uso de drogas por ambos ou um dos pais, famílias numerosas dividindo o mesmo espaço, gravidez precoce e doença mental na família; quanto às repercussões, os discursos associam violência com o desenvolvimento de transtornos mentais e atos violentos na idade adulta.

Então as crianças sofrem as consequências disso porque o dependente químico [...] ele é doente, então ele não tem muito controle sobre a atitude dele. (suj_09)

Se ela não for acompanhada desde pequena, ela vai ser um adulto que vai tratar os outros da mesma forma como ela foi tratada. Se ela não aprender que aquilo é errado, ela vai achar que aquilo é comum de todo mundo, ser violento, gritar, agir daquela forma, é um comportamento normal. (suj_16)

Ela é uma criança que vai ser agressiva na escola, é uma criança que vai ter queixa da escola, que vai brigar com os amiguinhos na rua, que não vai aprender a expressar o que sente, que vai viver com traumas, quem sabe, pelo resto da vida. (suj_23)

DISCUSSÃO

A necessidade de se ter rede de atenção competente que acolha a demanda e que qualifique os profissionais para o atendimento, produzindo ações intersetoriais, tem sido mostrada em muitos estudos e documentos oficiais(1616 Graziano AP, Egry EY, Apostolico MR, Muraro HMS. Child sexual abuse: dimension of the problem in a Brazilian city. In: 2nd International Conference Child Abuse and Neglect, 2011 mai 11-14; Porto, Portugal. Porto (PT).). Como documento oficial mais emblemático é a Portaria 936, de 19 de maio de 2004, do Ministério da Saúde, que dispõe sobre a estruturação da Rede Nacional de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde e a Implantação e Implementação de Núcleos de Prevenção à Violência em Estados e Municípios(1717 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n. 936, de 19 de maio de 2004. Dispõe sobre a estruturação da Rede Nacional de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde e a Implantação e Implementação de Núcleos de Prevenção à Violência em Estados e Municípios. Brasília (DF): MS; 2004.).

No âmbito da saúde, o Ministério da Saúde ressalta a importância de redes regionalizadas de atenção à saúde, sendo definidas como

estruturas integradas de provisão de ações e serviços de saúde, institucionalizadas pela política pública em um determinado espaço regional a partir do trabalho coletivamente planejado e do aprofundamento das relações de interdependência entre os atores envolvidos(1818 Brasil. Ministério da Saúde. Redes regionalizadas de atenção à saúde: contexto, premissas, diretrizes gerais, agenda tripartite para discussão e proposta de metodologia para implementação. Versão para debate. Brasília (DF): MS ; 2008.).

Considerando que as redes regionalizadas tendem a oferecer melhores condições para implementação da integralidade da atenção, a possibilidade de interação entre políticas públicas, na perspectiva da intersetorialidade, indica que a organização em rede não deve ser restrita ao setor saúde, visto que também outros setores apresentam determinantes do processo saúde-doença(1919 Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. 4ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Abrasco; 2006. p. 39-64.).

No campo da saúde, tendo por base as propostas da Saúde Coletiva, pode-se expandir a atenção integral para as atuações em rede intersetorial, que devem ser pautadas em três princípios organizadores nucleares: o da articulação das ações profissionais, em que há atuações profissionais específicas que devem ser mantidas, mas de modo interconectado; o da interação dos profissionais, organizando-se o trabalho nos serviços de modo a que haja efetiva comunicação entre seus profissionais; e o da integração entre os serviços como instituições de diferentes setores(2020 Schraiber LB, D’Oliveira AFPL, Hanada H, Kiss L. Assistência a mulheres em situação de violência: da trama de serviços à rede intersetorial. Athenea Digital [Internet]. 2012[cited 2015 Sep 18];12(3):237-54. Available from: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=53724611015
http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=53...
). Nesse sentido, depreende-se do discurso dos profissionais que as ações intersetoriais necessitam ser compreendidas como as mais pertinentes para lidar com as questões da violência infantil, visto que as ações empreendidas estão circunscritas aos setores específicos, sem agregação em âmbito local e regional.

Dentre as inúmeras dificuldades no enfrentamento da violência encontra-se o do próprio reconhecimento de que existe a violência, ou outras vezes ela é visibilizada, mas a vítima é culpabilizada por ter “provocado” violência. Estudos mostram que há uma naturalização da violência em geral e em específico da infantil, dadas formas de interpretação da infância que predominaram por muito tempo na história das civilizações. Ainda, pouco se debate acerca da influência das categorias gênero e geração na desnaturalização do fenômeno da violência infantil, como já existem alguns estudos que mostram a relevância dessas categorias(2121 Egry EY, Fonseca RMGS, Oliveira MAC. Ciência, Saúde Coletiva e Enfermagem: destacando as categorias gênero e geração na episteme da práxis. Rev Bras Enferm [Internet]. 2013[cited 2015 Sep 18];66(spe):119-33. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v66nspe/v66nspea16.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reben/v66nspe/v...
).

Verificou-se que a identificação da situação como negligência não ocorre de forma objetiva, visto que se confunde o não provimento das necessidades básicas da criança com as privações e carências decorrentes das situações de pobreza. É nesse sentido que se insere a falta de preparo dos profissionais para lidar com a questão, expondo a necessidade de adquirir um referencial teórico-analítico que seja capaz de permitir a compreensão do fenômeno da violência infantil, na especificidade dos contextos em que ocorrem, assim como os fatores de vulnerabilidade e de proteção comuns às diferentes culturas e sociedade(2222 Silva MAI, Ferriani MGC. Violência doméstica: do visível ao invisível. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2007[cited 2015 Sep 18];15(2) Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v15n2/pt_v15n2a13.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rlae/v15n2/pt_v...
).

A negligência é uma violência de difícil definição, visto que abrange aspectos culturais, sociais e econômicos de cada família ou grupo social, sendo a sua detecção facilitada quando do maior contato com a família, de forma que melhor se compreenda a dinâmica familiar. As equipes de atenção básica representam importante recurso para a detecção dessas situações, desde que bem capacitadas, sendo a visita domiciliária uma modalidade de assistência bastante eficaz, mas que depende de profissionais que desenvolvam especificamente essa atividade(2323 Apostólico MR, Nóbrega CR, Guedes RN, Fonseca RMGS, Egry EY. Características da violência contra a criança em uma capital brasileira. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2012[cited 2015 Sep 18];20(2);8 telas. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v20n2/pt_08
http://www.scielo.br/pdf/rlae/v20n2/pt_0...
).

Em se tratando das causas da violência intrafamiliar, os papéis familiares, como a paternidade e maternidade na adolescência, sobrecarga de papéis da mãe ou de um dos filhos, as patologias, como uso de álcool e drogas, depressão, as práticas educativas, como a divergência entre os pais sobre educação dos filhos e a falta de colocação de limites nas crianças, e os comportamentos agressivos, como a violência conjugal, entre pais e filhos, e conflitos com a lei podem estar relacionados à violência intrafamiliar, assim como demonstram as fragilidades das interações familiares(2424 De Antoni C, Barone LR, Koller SH. Indicadores de risco e de proteção em famílias fisicamente abusivas. Psic Teor Pesq [Internet]. 2007[cited 2015 Sep 18];23(2):125-32. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ptp/v23n2/a02v23n2.pdf
http://www.scielo.br/pdf/ptp/v23n2/a02v2...
).

Ao analisarmos o discurso dos profissionais entrevistados, percebe-se a vinculação das causas e repercussões da violência a desvios individuais e sociais, de certa forma reduzindo a compreensão do fenômeno às precárias condições de existência material das famílias, estabelecendo uma relação causal entre pobreza e violência, o que reforça a culpabilização da família pelo fracasso de seus membros.

Estudo realizado em município da Região Metropolitana de São Paulo mostrou outras fragilidades no reconhecimento e enfrentamento da violência infantil e contra o adolescente na Atenção Básica: como justificativa para o não enfrentamento estaria o medo do contexto de narcotráfico no território, gerando medo e insegurança; sentem-se ameaçados e não reportam os casos de violência; considera o âmbito familiar como privado e portanto não passível de intervenção(2525 Andrade EM, Nakamura E, Paula CS, Nascimento R, Bordin IA. A visão dos profissionais de saúde em relação à violência doméstica contra crianças e adolescentes: um estudo qualitativo. Saude Soc [Internet]. 201 [cited 2015 Sep 18];20(1):147-55. Available from: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v20n1/17.pdf
http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v20n1/17...
). Entretanto, existem estudos que mostram que as relações violentas entre adultos e crianças, na maior parte pais e filhos, se dão em ambientes de relações familiares muito violentas.

Em termos de consequências da violência infantil no curso da vida do adulto, estudos mostram a persistência do chamado “legado” da violência. Martsolf e Draucker(2626 Martsolf DS, Draucker CB. The legacy of childhood sexual abuse and Family adversity. J Nurs Scholarsh [Internet]. 2008 [cited 2015 Sep 18];40(4):333-40 Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3152829/pdf/nihms-314139.pdf
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) conduziram um estudo sobre a influência das adversidades na infância no curso da vida dos sobreviventes de abuso sexual infantil e constataram que todos trazem algum legado. Esse legado é passado para a nova família tanto em termos de rejeição dos padrões de violência quanto à perpetração. As autoras ressaltam a importância da atuação das enfermeiras, pois detectaram que os adultos permaneciam com dificuldades de confiar em outros. Estudo(2727 Barker G, Aguayo F, Correa P. Compreendendo a violência dos homens contra as mulheres: alguns resultados da pesquisa IMAGES no Brasil, Chile e México. Promundo [Internet]. 2012[cited 2015 Sep 18]; Available from: http://www.promundo.org.br/relatorios/.
http://www.promundo.org.br/relatorios...
) realizado tendo por cenário o Brasil, México e Chile mostrou que “os homens que foram testemunhas da violência contra suas mães - por parte de seus parceiros homens - durante a infância exerceram mais violência física contra parceiras íntimas em algum momento da vida do que aqueles que não foram expostos à violência”.

É perceptível no presente estudo e em outros realizados com profissionais da área de saúde, tanto nacionais quanto estrangeiras, que há por parte dos trabalhadores de saúde lacunas importantes nos saberes relacionados ao tema(55 Nascimento EFGA, Ribeiro AP, Souza ER. Perceptions and practices of Angolan health care professionals concerning intimate partner violence against women. Cad Saúde Pública [Internet]. 2014 [cited 2015 Sep 18];30(6) 1229-38. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csp/v30n6/0102-311X-csp-30-6-1229.pdf
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-66 Salcedo-Barrientos DM, Miura PO, Dias MV, Egry EY. How do primary health care professionals deal with pregnant women who are victims of domestic violence? Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2014[cited 2015 Sep 18];22(3). Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v22n3/0104-1169-rlae-22-03-00448.pdf
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,88 Apostólico MR, Hino P, Egry EY. Possibilities for addressing child abuse in systematized nursing consultations. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2013[cited 2015 Sep 18];47(2):318-24. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v47n2/en_07.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v47n2/en...
,2222 Silva MAI, Ferriani MGC. Violência doméstica: do visível ao invisível. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2007[cited 2015 Sep 18];15(2) Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v15n2/pt_v15n2a13.pdf
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,2525 Andrade EM, Nakamura E, Paula CS, Nascimento R, Bordin IA. A visão dos profissionais de saúde em relação à violência doméstica contra crianças e adolescentes: um estudo qualitativo. Saude Soc [Internet]. 201 [cited 2015 Sep 18];20(1):147-55. Available from: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v20n1/17.pdf
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) da legislação vigente; das políticas nacionais e internacionais; da historicidade do desenvolvimento infantil; das mudanças em relação à infância como categoria geracional; das questões que envolvem a episteme de gênero; das consequências da negligência institucional em relação ao enfrentamento da violência e das possibilidades institucionais e multidisciplinares de enfrentamento do fenômeno.

Limitações do Estudo

O presente estudo teve como limitação metodológica a não devolução imediata dos dados coletados aos entrevistados. Tratando-se, entretanto, da Tipesc como metodologia processual(1111 Egry EY. Saúde coletiva: construindo um novo método em enfermagem. São Paulo (SP): Ícone; 1996.), essa devolutiva será proporcionada aos pesquisados e também aos trabalhadores de saúde do município.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou política pública

O estudo pretende contribuir para maior visibilidade do fenômeno da violência contra a criança no âmbito da saúde e da enfermagem, apontando para a necessária capacitação dos diversos profissionais que atuam na Atenção Básica, de modo que aprendam a lidar com as situações de violência infantil e assim a prestar adequado atendimento no cotidiano de suas práticas assistenciais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados apresentados refletem as principais características das formas de enfrentamento da violência infantil no âmbito das práticas assistenciais dos profissionais das equipes da estratégia Saúde da Família e Atenção Básica em nível local, regional e central, sendo para tanto focalizados os elementos dificultadores para uma atuação em rede, a partir da perspectiva intersetorial. Os discursos apontam a necessidade de treinamento e capacitação dos profissionais das diversas áreas que atuam com situações de violência (saúde, justiça, segurança, serviço social), no sentido de melhor articular o trabalho em rede, para fortalecer os direitos de cidadania e assegurar o acesso pleno e a qualidade do serviço prestado às crianças em situação de violência.

A formação qualificada dos profissionais que se deparam com as situações de violência infantil nas diversas áreas contém potencialidades, no que se refere aos processos de trabalho, cuidados e medidas específicas que realizam, para despertar e estimular intervenções apropriadas ao momento do ciclo de violência, podendo inclusive levar à sua interrupção. No campo da saúde, seja na esfera federal, estadual, seja na municipal, a rede de saúde carece de serviços assistenciais em quantidade e organização, recursos financeiros e pessoas capacitadas para lidar com as situações de violência.

No âmbito de estados e municípios, existe grande dificuldade para assegurar a implantação por meio da mobilização de recursos de poder de forma que possam combater as resistências políticas, institucionais e burocráticas. Dessa forma, indaga-se acerca dos direitos se estão sendo protegidos quando se percebe a insuficiência de investimento do poder público em recursos humanos, financeiros e logísticos que garanta os direitos da criança e do adolescente. Ainda, rede (in)existente de enfrentamento às violências, de atendimento e de garantia de direitos apresenta a ausência de um fluxo definido e eficaz para as situações de violência. Em que pesem as evidentes mudanças nos campos jurídicos e políticos, não se encontram refletidas na mudança do padrão cultural, cujos valores patriarcais naturalizam desigualdades de poder no âmbito familiar, rotulando a violência contra a criança como um problema de menor importância, restrita ao doméstico e privado.

Por fim, o que se busca é a confluência de vários aspectos com o objetivo de potencializar esforços que possam introduzir as mudanças almejadas, necessárias e efetivas nos modelos assistenciais e nos processos de trabalho em saúde, que tenham como foco as necessidades das crianças submetidas às situações de violência, buscando a construção e efetivação da integralidade, assim como construir as condições necessárias à proteção, principalmente daqueles que convivem em situações de extrema vulnerabilidade à violência.

  • FOMENTO
    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - Fapesp e Fundação Maria Cecília Souto Vidigal.

AGRADECIMENTO

À Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo e à Universidade Adventista de São Paulo - Unasp pelo apoio no desenvolvimento das atividades de pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2017

Histórico

  • Recebido
    22 Jan 2016
  • Aceito
    01 Set 2016
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