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A essência do cuidado na vulnerabilidade em saúde: uma construção heideggeriana

RESUMO

Objetivo:

Refletir sobre a essência do cuidado na vulnerabilidade em saúde sob a perspectiva fenomenológica de Martin Heidegger.

Método:

Estudo teórico-reflexivo, ancorado em três partes essenciais: 1) O cuidado em Heidegger; 2) A essência do cuidado na vulnerabilidade em saúde; e 3) As ações do cuidar em enfermagem na vulnerabilidade em saúde.

Resultados:

A vulnerabilidade deve ser reconhecida como traço indelével da condição humana e tem seus constituintes na pessoa humana, co-presenças e cuidado. O cuidar é um processo interativo que se desvela na relação com o outro. Respeitar a integridade do Ser em vulnerabilidade deve ser prioridade no cuidar em enfermagem, por meio de comportamentos que privilegiem o Ser.

Conclusão:

Compreender ontologicamente o cuidado e a sua relação com a vulnerabilidade sob o olhar fenomenológico de Heidegger permitiu desvelar as facetas do cuidado na vulnerabilidade em saúde, agregando ao corpo de conhecimento da Enfermagem uma perspectiva compreensiva e reflexiva.

Descritores:
Vulnerabilidade em Saúde; Filosofia em Enfermagem; Hermenêutica; Assistência Integral à Saúde; Cuidados de Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

Reflect on the essence of care in health vulnerability from the phenomenological perspective of Martin Heidegger.

Method:

Theoretical-reflexive study, anchored in three essential parts: 1) Care in Heidegger; 2) The essence of care in health vulnerability; And 3) Nursing care actions on health vulnerability.

Results:

Vulnerability must be recognized as an indelible trait of the human condition and has its constituents in the human being, co-presence and care. Caring is an interactive process that reveals itself in the relationship with the other. Respecting the integrity of the Being in vulnerability must be a priority in nursing care, through behaviors that privilege the Being.

Conclusion:

Understanding ontological care and its relation to vulnerability under Heidegger’s phenomenological view allowed us to uncover the facets of care in health vulnerability by adding to the nursing knowledge body a comprehensive and reflective perspective.

Descriptors:
Health Vulnerability; Philosophy, Nursing; Hermeneutics; Comprehensive Health Care; Nursing Care

RESUMEN

Objetivo:

Reflexionar sobre la esencia del cuidado en la vulnerabilidad de la salud bajo la perspectiva fenomenológica de Martin Heidegger.

Método:

Estudio teórico-reflexivo, basado en tres partes principales: 1) El cuidado de Heidegger; 2) La esencia del cuidado en la vulnerabilidad de la salud; e 3) Acciones del cuidar de la enfermería en la vulnerabilidad de la salud.

Resultados:

La vulnerabilidad debe ser reconocida como un trazo indeleble de la condición humana y tiene sus constituyentes en el propio ser humano, en las copresencias y en el cuidado. El cuidar es un proceso interactivo que se devela en la relación con el otro. Respetar la integridad del Ser en su vulnerabilidad debe tenerse como prioridad en el cuidar de la enfermería, mediante comportamientos que lo prioricen.

Conclusión:

Comprender ontológicamente el cuidado y su relación con la fragilidad bajo la mirada fenomenológica de Heidegger permitió develar las facetas del cuidado en la vulnerabilidad de la salud, dándo le una perspectiva comprensiva y reflexiva al cuerpo de conocimiento de la Enfermería.

Descriptores:
Vulnerabilidad en la Salud; Filosofía en Enfermería; Hermenéutica; Asistencia Integral de la Salud; Cuidados de Enfermería

INTRODUÇÃO

Uma das tarefas fundamentais da condição humana é o ato de cuidar, que se consolida por meio do elo entre o cuidador e o ser cuidado. Cuidar incorpora distintos significados, podendo transmitir compaixão, ação, diligência e zelo. Por vezes, implica colocar-se no lugar do outro, isto é, estar com o outro, no que concerne às questões especiais da vida do indivíduo e suas relações sociais(11 Rodríguez-Jiménez S, Cárdenas-Jiménez M, Pacheco-Arce AL, Ramírez-Pérez M. Uma mirada fenomenológica del cuidado de enfermeira. Enferm Univer. 2014;11(4):145-53.). Nessa perspectiva, o cuidado está imbricado nas relações da existência do ser humano.

O cuidado, no pensar fenomenológico, nomeia um modo de ser que se encontra atuante em todo e qualquer comportamento, seja o comportamento diligente ou negligente, temeroso ou seguro, atento ou desatento, que se cumprirá sempre como uma realização do cuidado(22 Perdomo R, Andrea C. Fenomenología hermenéutica y sus implicaciones en enfermeira. Index Enferm, 2016;25(1/2):82-5.). Assim, para a compreensão da essência do cuidado, devemos olhar de forma diferenciada a pre-sença e co-presenças relacionadas à sua existência.

Martin Heidegger, filósofo alemão do século XX, se destaca por suas reflexões sobre o Ser, a pre-sença, a cura e as nuances do cuidado. O Ser é a maneira como algo se torna percebido, manifesto, compreendido e, finalmente, conhecido para o ser humano, em sua existência. A cura, por sua vez, ocupa o espaço de um duplo sentido, significando “cuidado” e “dedicação”(33 Heidegger M. Ser e tempo (Parte I). 5ª ed. São Paulo: Editora Vozes, 2005.). O filósofo exprime o cuidado como ato que ocupa um sentido ontológico, próprio da natureza humana.

O cuidado pauta-se na essência do Ser, dando significado à existência e manifestando-se em modos distintos. Atrelado ao cuidado, emerge o princípio da vulnerabilidade, definido como a possibilidade de ser ferido, sofrer qualquer dano ou condição de interesse para a saúde(44 Waldow VR. Cuidado humano: la vulnerabilidad del ser enfermo y su dimensión de trascendencia. Index Enferm [Internet]. 2014[cited 2016 Jun 25];23(4):234-8. Available from: http://scielo.isciii.es/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1132-12962014003300009
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). Na literatura científica, o termo vulnerabilidade é utilizado recorrentemente como sinônimo de risco, susceptibilidade e fragilidade, sendo percebido e discutido como uma condição negativa. Essa concepção limita seu entendimento e dificulta sua operacionalização no contexto dos serviços de saúde com vistas à promoção do bem-estar individual e coletivo.

A vulnerabilidade é um dos modos no qual a presença pode ou não se apresentar. A pre-sença vulnerável é uma manifestação do Ser, que assim se apresenta por si mesma e nas relações de cuidado estabelecidas com as demais co-presenças na existência.

Diferentemente de uma compreensão superficial, o cuidado e a vulnerabilidade não estão presentes apenas no campo da saúde, mas no próprio Ser e nas relações, se materializando na educação, política, economia. Destarte, uma visão holística, multi, inter e transdisciplinar do cuidar faz-se necessária.

Sob o olhar fenomenológico, a enfermagem manifesta-se fundamentalmente por meio do cuidado e, nesse sentido, é privilegiada, pois sua proximidade com a pre-sença lhe possibilita chegar ao Ser, com construção de vínculos(22 Perdomo R, Andrea C. Fenomenología hermenéutica y sus implicaciones en enfermeira. Index Enferm, 2016;25(1/2):82-5.). Cuidar em enfermagem consiste em envidar esforços transpessoais de um ser humano para outro, no intuito de proteger, promover e preservar a humanidade. É, ainda, ajudar outra pessoa a obter conhecimento, controle e autocuidado(55 Sebold LF Kempfer SS, Girondi JBR, Prado ML. Perception of nursing faculty on the care: Heidegger constructions. Rev Esc Enferm USP. [Internet]. 2016[cited 2016 Jun 25];50(n.esp):38-45. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v50nspe/0080-6234-reeusp-50-esp-0039.pdf
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). As ações da enfermagem assumem, portanto, destaque na relação de cuidar.

Na perspectiva de contribuir para a construção ontológica do cuidado na vulnerabilidade em saúde, propôs-se este estudo teórico-reflexivo, que se ancorou em três partes essenciais, inter-relacionando-as ao final do artigo: 1) O cuidado em Heidegger; 2) A essência do cuidado na vulnerabilidade em saúde; e 3) Asações do cuidar em enfermagemna vulnerabilidade em saúde.

Elegeu-se a obra Ser e Tempo (2005), de Martin Heidegger, como eixo teórico por trazer em seus pressupostos a questão do Ser. Nela, o autor escolhe o homem como o caminho para conhecer o Ser. Essa compreensão, associada ao entendimento de que a vulnerabilidade se relaciona diretamente com a pessoa humana e sua existência, justifica a escolha da fenomenologia heideggeriana para fundamentação teórica deste estudo.

Assim, objetivou-se refletir sobre a essência do cuidado na vulnerabilidade em saúde sob a perspectiva fenomenológica de Martin Heidegger.

O CUIDADO EM HEIDEGGER

A pessoa humana é relativa à apreensão do ser humano como Ser-aí (pre-sença ou Dasein), expresso a partir da compreensão da existência do homem como Ser-no-mundo. Salienta-se que a presença não é sinônimo de homem ou de ser humano, mas é conservada uma relação estrutural. A pre-sença é a pura expressão do Ser(33 Heidegger M. Ser e tempo (Parte I). 5ª ed. São Paulo: Editora Vozes, 2005.). Assim, o Será constrói na pre-sença a sua existência, no mundo no qual se insere.

A co-presença justifica-se na imprescindível correlação da pessoa humana com os outros (Ser-com ou Mitsein), pois nunca se dá um ser ou modo de ser isolado. Assim, a pre-sença é sempre co-presença, o mundo é sempre mundo compartilhado e o viver é sempre convivência(33 Heidegger M. Ser e tempo (Parte I). 5ª ed. São Paulo: Editora Vozes, 2005.). Nessa perspectiva, depreende-se que o Ser-aí se afirma como o Ser-com na relação que se estabelece entre a pre-sença e co-presença, sendo dessa relação que surge o cuidado.

A existência é utilizada para designar toda a riqueza das relações recíprocas entre pre-sença e co-presenças. É o próprio Ser com o qual a pre-sença pode se comportar e com o qual ela sempre se comporá de alguma maneira: é a pura expressão do Ser. Assim, a pre-sença sempre se compreende a si mesma a partir da sua existência, de uma possibilidade de ser ou não ela mesma(33 Heidegger M. Ser e tempo (Parte I). 5ª ed. São Paulo: Editora Vozes, 2005.).

O Ser-aí, como Ser-no-mundo, encontra a possibilidade de viver de maneira inautêntica ou autêntica. A existência inautêntica caracteriza-se como um modo impróprio do Ser, ou seja, é uma esfera da existência que segue sem direção própria(33 Heidegger M. Ser e tempo (Parte I). 5ª ed. São Paulo: Editora Vozes, 2005.). A inautenticidade é o Ser existente que ainda não chamou para si a responsabilidade de assumir por si mesmo a sua presença no mundo(66 Oliveira MFV, Carraro TE. Care in Heidegger: an ontological possibility for nursing. Rev Bras Enferm [Internet]. 2011[cited 2016 Jun 30];64(2):376-80. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v64n2/a25v64n2.pdf
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).

O existir autêntico é um modo próprio do Ser, pois refere-se à possibilidade do Ser-aí reconhecer-se como Ser, libertando-se do anonimato e impessoalidade. Nessa possibilidade, a angústia é aquela que pode reconduzir a pre-sença ao encontro de sua totalidade como Ser ôntico-ontológico. A angústia do que trata Heidegger não é algo paralisante, mas uma abertura para a própria existência. Trata-se de um recurso possível para transcender sobre o mundo e si mesmo, fazendo-se sair da indiferença da vida cotidiana. A angústia é entendida, portanto, como o movimento para a ruptura do que está posto.

Entende-se por cuidado, na perspectiva heideggeriana, como a totalidade da estrutura ontológica do Ser-aí(66 Oliveira MFV, Carraro TE. Care in Heidegger: an ontological possibility for nursing. Rev Bras Enferm [Internet]. 2011[cited 2016 Jun 30];64(2):376-80. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v64n2/a25v64n2.pdf
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). O cuidado se encontra na raiz primeira do ser humano, antes de qualquer ação, sendo que toda ação vem acompanhada e imbuída do cuidado(77 Duarte MR, Rocha SS. The contributions of heideggarian philosphy in research about care in nursing. Cogitare enferm [Internet]. 2011[cited 2016 Aug 1];16(2):361-4. Available from: http://revistas.ufpr.br/cogitare/article/viewFile/18620/14221
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).

A pre-sença sempre se dá num exercício que indica e cumpre um centro irradiador de relações. Assim, o exercício da pre-sença promove relações com dois modos de ser da existência: ocupação (ocupar-se de ou com) e preocupação (solicitude, cuidar ativamente de alguém que precisa de ajuda). Ocupação e preocupação são, portanto, constitutivas da cura, de tal forma que compreender como cura ocupada-preocupada quer dizer que, nessa ocupação e preocupação como cura, o próprio Ser que cuida está em questão(33 Heidegger M. Ser e tempo (Parte I). 5ª ed. São Paulo: Editora Vozes, 2005.). O cuidado fundamenta-se no Ser-aí, dando significado à existência, pois é uma forma de estar no mundo, na relação consigo mesmo e com os outros.

A essência do cuidado em Heidegger se expressa na existência autêntica. É ativo, assumindo sua responsabilidade, e se manifesta no seu cotidiano por meio da possibilidade de abertura ao mundo. A pre-sença vulnerável está incutida na pessoa humana, como parte da sua existência. A condição de vulnerabilidade convoca o cuidado autêntico, no qual o Ser tem a possibilidade de reconhecer sua angústia e transcender, para ir além de sua própria existência.

A ESSÊNCIA DO CUIDADO NA VULNERABILIDADE EM SAÚDE

No percurso histórico epistemológico do campo da epidemiologia, a linguagem de risco alcançou sua formalização discursiva, sendo apreendida como a expressão matemática, em que evidencia-se a racionalidade aplicada aos quantitativos representacionais de risco e vulnerabilidades epidemiológicas.

O conceito de risco indica probabilidades, enquanto a vulnerabilidade perpassa ao se constituir como indicador da iniquidade e da desigualdade social. Dessa maneira, a vulnerabilidade antecede o risco e, ao buscar o entendimento das mediações presentes no processo saúde-doença, promove possibilidades distintas para o seu enfrentamento e atinentes ao cotidiano das pessoas(44 Waldow VR. Cuidado humano: la vulnerabilidad del ser enfermo y su dimensión de trascendencia. Index Enferm [Internet]. 2014[cited 2016 Jun 25];23(4):234-8. Available from: http://scielo.isciii.es/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1132-12962014003300009
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).

A vulnerabilidade envolve três eixos interdependentes: componente individual ou a compreensão do comportamento pessoal, componente social ou do contexto social e componente programático ou institucional(88 Ayres JRCM, Calazans GJ, Filho HCS, França-Júnior I. Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde. In: Campos GWS, Bonfim JRA, Minayo MCS, Akerman M, Júnior MD, Carvalho YM. Tratado de Saúde Coletiva. 2ª ed. Editora: HUCITEC, 2012.). A inter-relação entre as dimensões descritas aponta para a necessidade de ampliar a compreensão e interpretação dos constituintes no intuito de aclarar o entendimento da vulnerabilidade.

No sentido de avançar para além da tradicional abordagem das estratégias de redução de risco, a vulnerabilidade surge como conceito de redirecionamento dessas ações para dimensões mais contextuais e sociais, cenários nos quais se materializa(88 Ayres JRCM, Calazans GJ, Filho HCS, França-Júnior I. Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde. In: Campos GWS, Bonfim JRA, Minayo MCS, Akerman M, Júnior MD, Carvalho YM. Tratado de Saúde Coletiva. 2ª ed. Editora: HUCITEC, 2012.). De modo geral, a vulnerabilidade é descrita como situações de ameaça à autonomia humana, bem como o processo de estar em risco para o desenvolvimento de doenças, agravos ou danos, resultante de um conjunto de aspectos individuais, coletivos e contextuais. Contudo, infere-se que essa concepção de vulnerabilidade se mostra limitada, pois restringe-se a consequências negativas, evidenciando o homem como ser passivo.

Compreender a vulnerabilidade como condição intrínseca à existência humana concede a ampliação desse conceito. A vulnerabilidade deve ser reconhecida como traço indelével da condição humana, na sua irredutível finitude e fragilidade, como exposição permanente a ser ferida(11 Rodríguez-Jiménez S, Cárdenas-Jiménez M, Pacheco-Arce AL, Ramírez-Pérez M. Uma mirada fenomenológica del cuidado de enfermeira. Enferm Univer. 2014;11(4):145-53.). Refletir sobre dimensões individuais, sociais e programáticas(88 Ayres JRCM, Calazans GJ, Filho HCS, França-Júnior I. Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde. In: Campos GWS, Bonfim JRA, Minayo MCS, Akerman M, Júnior MD, Carvalho YM. Tratado de Saúde Coletiva. 2ª ed. Editora: HUCITEC, 2012.) que envolvem o indivíduo e coletividade, também contribuindo no aumento dos níveis de vulnerabilidade, é compreender a essência do cuidado na pre-sença vulnerável.

A dissecação dessas dimensões possibilitou o encontro dos seus correspondentes ontológicos na fenomenologia heideggeriana: pessoa humana, co-presenças e cuidado. Observa-se que a compreensão fenomenológica dos elementos assegura seu caráter relacional e firma-os como constituintes essenciais da vulnerabilidade (Figura 1). Assim, quando algo interfere em alguns desses elementos, causando desequilíbrio, a vulnerabilidade emerge.

Figura 1
Componentes fenomenológicos essenciais da vulnerabilidade em saúde, Fortaleza, Ceará, Brasil, 2016

A essência do cuidado na vulnerabilidade em saúde remete aos modos de ocupação e preocupação que, por vezes, assumem formas deficientes, inadequadas, tais como as variações, distorções e exageros do modo da preocupação (substituição, antecipação e consideração), ou impessoais na ocupação (Figura 2).

Figura 2
Modos da cura e suas distorções, Fortaleza, Ceará, Brasil, 2016

A preocupação funda-se na constituição ontológica da pre-sença enquanto ser-com e seus modos positivos remetem a possibilidades extremas. A substituição consiste em retirar o “cuidado” do outro e tomar-lhe o lugar nas ocupações, substituindo-o. Nessa preocupação, o outro pode tornar-se dependente e dominado. Subsiste também a preocupação que antepõe o outro em sua possibilidade existenciária de ser. Essa preocupação, em sua essência, refere-se à cura propriamente dita, ajudando o outro a tornar-se transparente a si mesmo e livre para ela. A preocupação é guiada pela consideração, que exprime o empenho de correr atrás, aceitando as tensões, os limites e as características diferenciais das situações e modos de ser(33 Heidegger M. Ser e tempo (Parte I). 5ª ed. São Paulo: Editora Vozes, 2005.).

A ocupação determina o ser da pre-sença em geral(33 Heidegger M. Ser e tempo (Parte I). 5ª ed. São Paulo: Editora Vozes, 2005.). Nessa forma de cura, existe a responsabilidade, mas inexiste a percepção do outro como extensão da própria pre-sença, ou seja, a ocupação dá-se pela obrigação, sendo o cuidado presente na técnica. O modo impróprio da ocupação ocorre quando impera a impessoalidade. Para Heidegger(33 Heidegger M. Ser e tempo (Parte I). 5ª ed. São Paulo: Editora Vozes, 2005.), a impessoalidade é um existencial, pertencente à constituição positiva da pre-sença. A impessoalidade retira a responsabilidade de cada pre-sença e prescreve o modo de ser da cotidianidade. Dessa forma, atém-se à medianidade do que é conveniente. Entende-se, portanto, que a natureza do impessoal reside na medianidade.

AS AÇÕES DO CUIDAR EM ENFERMAGEM NA VULNERABILIDADE EM SAÚDE

O trabalho na saúde é centrado no trabalho vivo em ato, isto é, o trabalho humano no exato momento em que é executado e que determina a produção do cuidado. Destaca-se, nesse sentido, a existência de três valises que envolvem o arsenal tecnológico do trabalho na saúde: os instrumentos (tecnologias duras), o saber técnico estruturado (tecnologias leve-duras) e as relações entre sujeitos que se materializam em ato (tecnologias leves). É essencial que o enfermeiro compreenda e conheçaas tecnologias utilizadas no processo de trabalho em saúde, visto que o trabalho de enfermagem contribui para a promoção, proteção, manutenção e recuperação da saúde ou até para uma morte digna. Assim, as tecnologias libertam o homem de determinadas funções que podem subjugá-lo(99 Dantas CN, Santos VEP, Tourinho FSV. Nursing consultation as a technology for care in light of the thoughts of Bacon and Galimberti. Texto Contexto Enferm. [Internet] 2016[cited 2016 Dezem 05];25(1):e2800014. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v25n1/en_0104-0707-tce-25-01-2800014.pdf
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). Cabe compreender que o cuidado ocupa todos os espaços, estando fortemente implicado ao sentido do Ser, no co-existir(33 Heidegger M. Ser e tempo (Parte I). 5ª ed. São Paulo: Editora Vozes, 2005.).

Na enfermagem, o cuidado deve ser concebido como forma de viver, de ser, de se expressar. É uma postura ética frente ao mundo, um compromisso com dignidade humana e sua espiritualidade. Desse modo, envolve todos os comportamentos e atitudes desenvolvidas com competência para favorecer as potencialidades dos sujeitos cuidados e manter ou melhorar a condição humana no processo de viver ou morrer(55 Sebold LF Kempfer SS, Girondi JBR, Prado ML. Perception of nursing faculty on the care: Heidegger constructions. Rev Esc Enferm USP. [Internet]. 2016[cited 2016 Jun 25];50(n.esp):38-45. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v50nspe/0080-6234-reeusp-50-esp-0039.pdf
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). Apreende-se que o Ser do cuidado nas ações do cuidar em enfermagem é a pessoa humana, qualificada em quatro dimensões: saúde física, saúde psíquica, saúde social e saúde espiritual(11 Rodríguez-Jiménez S, Cárdenas-Jiménez M, Pacheco-Arce AL, Ramírez-Pérez M. Uma mirada fenomenológica del cuidado de enfermeira. Enferm Univer. 2014;11(4):145-53.-22 Perdomo R, Andrea C. Fenomenología hermenéutica y sus implicaciones en enfermeira. Index Enferm, 2016;25(1/2):82-5.) (Figura 3).

Figura 3
Dimensões da saúde da pessoa humana, Fortaleza, Ceará, Brasil, 2016

A saúde física é entendida como o desenvolvimento normal do indivíduo, com equilíbrio entre os componentes orgânicos. A saúde psíquica implica na orientação no tempo e no espaço, ausência de alienação, capacidade de equilibrar-se em diversas situações de vida, autorrealização, abertura para o outro e para si mesmo, liberdade de pensamento, de expressão e criação. A saúde social é o ajustamento do indivíduo no grupo social, envolvendo habitação adequada, equilíbrio dos fatores econômicos, lazer, educação, relacionamento. A espiritual se revela na maneira de encarar a vida. A crença em um Ser absoluto ou transcendente é fundamental para a superação de obstáculos(11 Rodríguez-Jiménez S, Cárdenas-Jiménez M, Pacheco-Arce AL, Ramírez-Pérez M. Uma mirada fenomenológica del cuidado de enfermeira. Enferm Univer. 2014;11(4):145-53.-22 Perdomo R, Andrea C. Fenomenología hermenéutica y sus implicaciones en enfermeira. Index Enferm, 2016;25(1/2):82-5.). Essas quatro dimensões entrelaçam-se numa dinâmica intersubjetiva, que permeiam a pessoa humana, dotada de percepções, sentimentos, valores e saberes.

A enfermagem lida o tempo todo com a pessoa humana em sua condição existencial que pode, pela facticidade do mundo, estar em situação de doença. Em um autêntico dizer heideggeriano, a pessoa humana não é, nessa condição, um Ser doente, mas trata-se de um Ser que está vivenciando uma situação de “sendo doente”, o que o afeta nas várias esferas do seu existir(33 Heidegger M. Ser e tempo (Parte I). 5ª ed. São Paulo: Editora Vozes, 2005.).

Para atender às necessidades da pessoa humana, os valores da enfermagem devem estar pautados na solidariedade (é o que favorece a vida humana inserida na sociedade), no valor da verdade (corresponde ao anseio humano de conhecer o real), na moralidade (é o bem que se apresenta exigindo uma intenção de amor, realizando-se por meio de boas obras e projetando-se no mundo como um dever ser) e na utilidade (é o que favorece a vida). É relevante destacar que esses valores cooperam para o desenvolvimento e crescimento de todos os envolvidos no processo de cuidado(55 Sebold LF Kempfer SS, Girondi JBR, Prado ML. Perception of nursing faculty on the care: Heidegger constructions. Rev Esc Enferm USP. [Internet]. 2016[cited 2016 Jun 25];50(n.esp):38-45. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v50nspe/0080-6234-reeusp-50-esp-0039.pdf
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,77 Duarte MR, Rocha SS. The contributions of heideggarian philosphy in research about care in nursing. Cogitare enferm [Internet]. 2011[cited 2016 Aug 1];16(2):361-4. Available from: http://revistas.ufpr.br/cogitare/article/viewFile/18620/14221
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).

O cuidado está envolvo nas ações dos seres humanos integralmente e incorpora a existência humana como manifestação de compartilhamento, troca e reciprocidade(55 Sebold LF Kempfer SS, Girondi JBR, Prado ML. Perception of nursing faculty on the care: Heidegger constructions. Rev Esc Enferm USP. [Internet]. 2016[cited 2016 Jun 25];50(n.esp):38-45. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v50nspe/0080-6234-reeusp-50-esp-0039.pdf
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). Nesse sentido, o cuidado na saúde está imbricado na relação profissional-paciente, na qual o cuidar de si não deve ser esquecido ou subestimado, mas compreendido na singularidade do outro.

O cuidado de si só é percebido como essencial para o ser humano a partir do momento que as pessoas tomam consciência do seu direito de viver e do estilo de vida que têm(22 Perdomo R, Andrea C. Fenomenología hermenéutica y sus implicaciones en enfermeira. Index Enferm, 2016;25(1/2):82-5.). Ao cuidar de si, o Ser insere-se em um processo emancipatório e transformador, tornando-se ativo em sua trajetória existencial.

O cuidado autêntico torna-se essencial, na prática de Enfermagem, para que sejam percebidos como seres que cuidam de outros seres, com preocupação autêntica, de forma profissional, terapêutica, científica e humana, no intuito de alcançar saúde e bem-estar de quem cuidam. Dessa forma, proporcionam liberdade e condições para vivenciar as próprias possibilidades de Ser(77 Duarte MR, Rocha SS. The contributions of heideggarian philosphy in research about care in nursing. Cogitare enferm [Internet]. 2011[cited 2016 Aug 1];16(2):361-4. Available from: http://revistas.ufpr.br/cogitare/article/viewFile/18620/14221
http://revistas.ufpr.br/cogitare/article...
).

No intuito de assegurar o cuidado autêntico, as teorias de enfermagem firmam-se como estratégia de identificação do objeto de trabalho, projetando ações de forma sistemática. As teorias possibilitama criação de um espaço de conhecimentos próprios e representam uma tentativa de ampliação ou renovação de conhecimento, como um saber específico para a enfermagem(1010 Silva LB, Kleyde VS, Duarte ED, Soares SM. Epistemological settings of care in health and nursing according to Halldorsdottir's theory. Rev Cuid [Internet]. 2016[cited 2016 Dezem 05];7(2):1358-65. Available from: http://www.revistacuidarte.org/index.php/cuidarte/article/view/333/735
http://www.revistacuidarte.org/index.php...
). Na tessitura da rede de conhecimentos em torno do cuidado e da vulnerabilidade em saúde, as teorias de enfermagem podem corroborar para a construção de um modelo de saúde condizente com o cuidado autêntico, por nortear as ações e a reflexão crítica do enfermeiro.

Limitações do estudo

Uma limitação a ser considerada na elaboração deste estudo reflexivo foi a confusão terminológica existente entre vulnerabilidade e risco, frequentemente utilizada na literatura científica nacional e internacional. A relação estreita entre ambos os conceitos reduz a compreensão da vulnerabilidade, o que vai de encontro à evolução do Ser.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou política pública

No escopo do cuidado na vulnerabilidade em saúde, este estudo contribui para a apreensão do cuidar como processo interativo que se desvela na relação com o outro. Respeitar a integridade do Ser em vulnerabilidade, independente do que resulte sua condição, deve ser prioridade no cuidar em enfermagem, tendo em vista comportamentos que privilegiem o Ser.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cuidado revela-se nas relações da existência das pessoas que cuidam e que são cuidadas, envolvendo consideração e respeito no modo de ser, de proceder como essência e existência humana. O olhar fenomenológico de Martin Heidegger permitiu desvelar as facetas do Ser do cuidado na vulnerabilidade em saúde, agregando ao corpo de conhecimento da área da Enfermagem uma perspectiva compreensiva.

Constatou-se a íntima relação entre pessoa humana e vulnerabilidade, possibilitando a apreensão do Ser vulnerável como o Ser do cuidado, que requer cuidado autêntico para transpor barreiras e revelar-se em sua existência. Para tal, o cuidar em enfermagem deve estar imbuído de ações expressivas, competentes, seguras, voltadas para a promoção da saúde e bem-estar, assim como para o favorecimento das potencialidades do Ser cuidado.

A condição de vulnerabilidade em saúde não deve assumir maior importância do que o cuidado em si. O cuidado autêntico possibilita que a pre-sença assuma suas possibilidades e escolhas, afastando ou assumindo os riscos. A nós, enfermeiros, é oportuno respeitar tais escolhas, educando e estimulando o cuidar educativo do Ser-aí no desvelar de sua existência.

REFERENCES

  • 1
    Rodríguez-Jiménez S, Cárdenas-Jiménez M, Pacheco-Arce AL, Ramírez-Pérez M. Uma mirada fenomenológica del cuidado de enfermeira. Enferm Univer. 2014;11(4):145-53.
  • 2
    Perdomo R, Andrea C. Fenomenología hermenéutica y sus implicaciones en enfermeira. Index Enferm, 2016;25(1/2):82-5.
  • 3
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2017

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2016
  • Aceito
    02 Fev 2017
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