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A complexidade do trabalho do enfermeiro na Atenção Primária à Saúde

RESUMO

Objetivo:

promover reflexão sobre o trabalho do enfermeiro na Atenção Primária à Saúde (APS) e sobre os aspectos necessários para a (re)construção dessa prática profissional, consolidando esse espaço de atuação no cuidado das pessoas, famílias e comunidades.

Método:

as questões apontadas para a reflexão foram construídas no processo de organização de um livro, baseadas na literatura e na experiência de trabalho na APS das autoras.

Resultados:

apresentam-se conflitos, dilemas e aspectos relevantes da prática do enfermeiro na APS, contribuindo com o pensamento crítico sobre o contexto de trabalho e a necessidade de articulação da categoria na construção do seu espaço profissional.

Considerações finais:

a atuação do enfermeiro na APS é um campo amplo e em processo de qualificação, seja na prática clínica, educativa ou gerencial e os enfermeiros precisam se apropriar desses conteúdos no seu cotidiano, buscando a articulação com suas entidades de classe para o desenvolvimento dessa especialidade.

Descritores:
Enfermagem em Saúde Comunitária; Enfermagem de Atenção Primária; Enfermeiras de Saúde da Família; Prática Avançada de Enfermagem; Acesso aos Serviços de Saúde

ABSTRACT

Objective:

to promote thinking on the work of nurses in Primary Health Care (PHC) and the necessary aspects for the (re)construction of this professional practice, reinforcing its role in the care of individuals, families and communities.

Method:

to apply the questions raised in the process of organizing a book, the literature and the PHS work experience of the authors.

Results:

Conflicts, dilemmas and relevant aspects of the practice of nurses in PHC are presented, contributing to critical thinking about the context of work and the need to articulate the category in the construction of its workspace.

Final considerations:

the practice of nurses in PHC is broad and a process of qualification field, whether performing in clinical, educational or managerial activities, and nurses need to be familiar with these contents in their daily work, seeking to articulate their class entities for the development of this specialty.

Descriptors:
Community Health Nursing; Primary Care Nursing; Family Health Nurses; Advanced Nursing Practice; Access to Health Services

RESUMEN

Objetivo:

promover reflexión sobre el trabajo del enfermero en la Atención Primaria a la Salud (APS) y sobre los aspectos necesarios para la (re)construcción de esa práctica profesional, consolidando ese espacio de actuación en el cuidado de las personas, familias y comunidades.

Método:

las cuestiones apuntadas para la reflexión fueron construidas en el proceso de organización de un libro, basadas en la literatura y la experiencia de trabajo en la APS de las autoras.

Resultados:

se presentan conflictos, dilemas y aspectos relevantes de la práctica del enfermero en la APS, contribuyendo con el pensamiento crítico sobre el contexto de trabajo y la necesidad de articulación de la categoría en la construcción de su espacio profesional.

Consideraciones finales:

la actuación del enfermero en la APS es un campo amplio y en proceso de calificación, ya sea en la práctica clínica, educativa o gerencial y los enfermeros necesitan apropiarse de esos contenidos en su cotidiano, buscando la articulación con sus entidades de clase para el desarrollo de esa especialidad.

Descriptores:
Enfermería en Salud Comunitaria; Enfermería de Atención Primaria; Enfermeras de Salud de la Familia; Práctica Avanzada de Enfermería; Acceso a los Servicios de Salud

INTRODUÇÃO

A enfermagem é uma prática profissional socialmente relevante, historicamente determinada e faz parte de um processo coletivo de trabalho com a finalidade de produzir ações de saúde por meio de um saber específico, articulado com os demais membros da equipe no contexto político social do setor saúde.

A Atenção Primária à Saúde (APS) é o primeiro nível de atenção e caracteriza-se por um conjunto de ações no âmbito individual e coletivo, que abrangem a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção da saúde(11 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2488_21_10_2011.html
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). Destaca-se que o Ministério da Saúde (MS) na Portaria que aprova a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB)(11 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2488_21_10_2011.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
) considera equivalentes os termos ”Atenção Básica (AB)”, “Estratégia de Saúde da Família (ESF)” e “Atenção Primária à Saúde (APS)”, utilizados no Brasil. Neste artigo optou-se por utilizar a terminologia APS.

A atuação do enfermeiro na APS no Brasil vem se constituindo como um instrumento de mudanças nas práticas de atenção à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), respondendo a proposta do novo modelo assistencial que não está centrado na clínica e na cura, mas sobretudo, na integralidade do cuidado, na intervenção frente aos fatores de risco, na prevenção de doenças e na promoção da saúde e da qualidade de vida.

De acordo com Matumoto(22 Matumoto S, Fortuna CM, Kawata LS, Mishima SM, Pereira MJB. Nurses’ clinical practice in primary care: a process under construction. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 01]; 19(1):123-30. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692011000100017
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), compreende-se a prática do enfermeiro na APS brasileira como prática social, isto é, aquela realizada a partir das necessidades sociais de saúde que se dão em um momento histórico; se constitui e se transforma na dinâmica das relações com outras práticas sociais que compõem o cenário do SUS.

Este artigo tem por objetivo promover a reflexão sobre as práticas do enfermeiro na APS, como elas vêm ocorrendo e o que se considera necessário para a (re)construção de práticas profissionais capazes de consolidar esse espaço de atuação de forma cada vez mais efetiva no cuidado das pessoas, famílias e comunidades.

As questões apontadas para a reflexão são fruto de projeto realizado nos anos de 2015/2016, por um grupo de enfermeiros, que organizou o livro “Atuação do Enfermeiro na APS” visando a construção de um referencial teórico e prático para os enfermeiros que atuam nessa área, com base no estudo da literatura de enfermagem e na experiência de mais de 20 anos de trabalho na APS das autoras e colaboradoras.

Pretende-se apresentar algumas questões identificadas como relevantes na prática do enfermeiro na APS, para promover a reflexão junto aos colegas e entidades de classe da enfermagem sobre este campo de atuação, são elas:

  1. Quais são as funções do enfermeiro na APS no Brasil?

  2. Como tem se dado a prática dos enfermeiros na APS?

  3. Que tipo de profissional é o enfermeiro que atua na APS?

  4. Como apoiar e qualificar a prática dos enfermeiros na APS?

QUAIS SÃO AS FUNÇÕES DO ENFERMEIRO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE NO BRASIL?

Além das atribuições comuns para todos os profissionais da equipe da APS, as atribuições específicas do enfermeiro definidas na PNAB(11 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2488_21_10_2011.html
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) abrangem ações dirigidas aos indivíduos, famílias e comunidade, com a finalidade de garantir a assistência integral na promoção e proteção da saúde, prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação e manutenção da saúde, nos diferentes espaços sociais e em todas as fases do ciclo vital, são elas: a) realizar atenção à saúde aos indivíduos e famílias cadastradas nas equipes e, quando indicado ou necessário, no domicílio e/ou nos demais espaços comunitários (escolas, associações, etc), em todas as fases do desenvolvimento humano, como: infância, adolescência, idade adulta e terceira idade; b) realizar procedimentos; c) realizar atividades em grupo; d) realizar consultas de enfermagem, solicitar exames complementares, prescrever medicações, observadas as disposições legais da profissão e conforme os protocolos ou outras normativas técnicas estabelecidas pelo Ministério da Saúde, os gestores estaduais, os municipais ou os do Distrito Federal e encaminhar, quando necessário, os usuários a outros serviços; e) realizar atividades programadas e de atenção à demanda espontânea; f) planejar, gerenciar e avaliar as ações desenvolvidas pelos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) em conjunto com os outros membros da equipe; g) contribuir, participar, e realizar atividades de educação permanente da equipe de enfermagem e outros membros da equipe; e h) participar do gerenciamento dos insumos necessários para o adequado funcionamento da Unidade Básica de Saúde (UBS)(11 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2488_21_10_2011.html
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).

Para executar essa diversidade de ações (comuns e específicas) que lhe competem, o enfermeiro necessita desenvolver várias competências, as quais nem sempre os cursos de graduação e as especializações da área conseguem suprir, sendo fundamental que os serviços desenvolvam Programas de Educação Permanente. Dentre a gama de atividades desenvolvidas na APS por este profissional, a consulta de enfermagem é considerada uma das mais relevantes, mas estudos(22 Matumoto S, Fortuna CM, Kawata LS, Mishima SM, Pereira MJB. Nurses’ clinical practice in primary care: a process under construction. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 01]; 19(1):123-30. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692011000100017
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3 Bonfim D, Gaidzinski RR, Santos FM, Gonçales CS, Fugulin FMT. The identification of nursing interventions in primary health care: a parameter for personnel staffing. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2012 [cited 2017 Jun 01]; 46(6):1462-70. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342012000600025
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4 Assis WD, Collet N, Reichert APS, Sá LD. Work process of the nurse who works in child care in family health units. Rev Bras Enferm [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 01]; 64(1):38-46. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71672011000100006
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-55 Nauderer TM, Lima MADS. Nurses’ practices at health basic units in a city in the south of Brazil. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2008 [cited 2017 Jun 01]; 16(5):889-94. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692008000500015
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) apontam que o enfermeiro nem sempre tem conseguido realizá-la de forma integral.

De acordo com Matumoto(22 Matumoto S, Fortuna CM, Kawata LS, Mishima SM, Pereira MJB. Nurses’ clinical practice in primary care: a process under construction. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 01]; 19(1):123-30. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692011000100017
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) e Nauderer(55 Nauderer TM, Lima MADS. Nurses’ practices at health basic units in a city in the south of Brazil. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2008 [cited 2017 Jun 01]; 16(5):889-94. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692008000500015
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), o trabalho do enfermeiro na APS está pautado em duas dimensões: a) produção do cuidado e gestão do processo terapêutico; b) atividades de gerenciamento do serviço de saúde e da equipe de enfermagem.

As práticas dos enfermeiros na APS vêm se desenvolvendo em função das exigências legais do exercício da profissão, especialmente a consulta de enfermagem. Em estudo realizado por Matumoto(22 Matumoto S, Fortuna CM, Kawata LS, Mishima SM, Pereira MJB. Nurses’ clinical practice in primary care: a process under construction. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 01]; 19(1):123-30. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692011000100017
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), os enfermeiros consideraram como atividade clínica direta as atividades de: a) acolhimento, b) consulta de enfermagem (relacionada à coleta do exame de Papanicolau, pré-natal e puerpério, planejamento familiar, atendimento de puericultura, hipertensos e diabéticos, saúde mental), c) visita domiciliar/atendimento domiciliar, d) trabalho em grupo. Como atividades clínicas indiretas, citam: a) supervisão e orientação aos auxiliares de enfermagem; b) supervisão e orientação dos ACS; e c) ações de apoio ao atendimento do médico(22 Matumoto S, Fortuna CM, Kawata LS, Mishima SM, Pereira MJB. Nurses’ clinical practice in primary care: a process under construction. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 01]; 19(1):123-30. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692011000100017
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).

O trabalho de enfermagem na APS tem uma na dupla dimensão, assistencial e gerencial, voltado para o indivíduo (produção do cuidado de enfermagem e gestão de projetos terapêuticos) e para o coletivo (monitoramento da situação de saúde da população, gerenciamento da equipe de enfermagem e do serviço de saúde para a produção do cuidado) e sua função essencial é prestar assistência às pessoas, famílias e comunidades, desenvolvendo atividades para promoção, manutenção e recuperação da saúde, assim, contribuindo com a implementação e consolidação do SUS(33 Bonfim D, Gaidzinski RR, Santos FM, Gonçales CS, Fugulin FMT. The identification of nursing interventions in primary health care: a parameter for personnel staffing. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2012 [cited 2017 Jun 01]; 46(6):1462-70. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342012000600025
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,55 Nauderer TM, Lima MADS. Nurses’ practices at health basic units in a city in the south of Brazil. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2008 [cited 2017 Jun 01]; 16(5):889-94. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692008000500015
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).

Bomfim(33 Bonfim D, Gaidzinski RR, Santos FM, Gonçales CS, Fugulin FMT. The identification of nursing interventions in primary health care: a parameter for personnel staffing. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2012 [cited 2017 Jun 01]; 46(6):1462-70. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342012000600025
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) realizou estudo no qual mapeou as intervenções do enfermeiro na APS, segundo a Nursing interventions classification (NIC), em 152 atividades, distribuídas em 7 domínios, 16 classes e 59 intervenções. A única atividade que não obteve correspondência com as intervenções propostas pela NIC foi o acolhimento. As atividades identificadas no estudo corroboram com a descrição de um cotidiano diversificado de práticas do enfermeiro na APS, sendo contempladas em todos os domínios propostos pela NIC(33 Bonfim D, Gaidzinski RR, Santos FM, Gonçales CS, Fugulin FMT. The identification of nursing interventions in primary health care: a parameter for personnel staffing. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2012 [cited 2017 Jun 01]; 46(6):1462-70. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342012000600025
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). O projeto Classificação Internacional da Prática de Enfermagem na Saúde Coletiva (CIPESC), no Brasil, listou 105 atividades de enfermagem realizadas na APS, as quais também foram mapeadas, por Chianca(66 Chianca TCM, Souza CC, Werli A, Hamze FL, Ercole FF. The nursing interventions used at clinical practice in Brasil. Rev Eletr Enf [Internet]. 2009 [cited 2017 Jun 01]; 11(3):477-83. Available from: http://www.fen.ufg.br/revista/v11/n3/v11n3a03.htm
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), de acordo com a NIC. Os dois estudos encontraram uma porcentagem relevante das atividades no domínio Sistema de Saúde e Comunidade (54% e 62%). É possível observar que nos dois estudos há concentração das atividades de gerenciamento do serviço de saúde e da equipe de enfermagem em detrimento da produção do cuidado e gestão do processo terapêutico. O enfermeiro está realizando atividades nos domínios que são predominantemente aqueles que dão suporte ao uso eficaz do sistema de atendimento à saúde(33 Bonfim D, Gaidzinski RR, Santos FM, Gonçales CS, Fugulin FMT. The identification of nursing interventions in primary health care: a parameter for personnel staffing. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2012 [cited 2017 Jun 01]; 46(6):1462-70. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342012000600025
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,66 Chianca TCM, Souza CC, Werli A, Hamze FL, Ercole FF. The nursing interventions used at clinical practice in Brasil. Rev Eletr Enf [Internet]. 2009 [cited 2017 Jun 01]; 11(3):477-83. Available from: http://www.fen.ufg.br/revista/v11/n3/v11n3a03.htm
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).

COMO TEM SE DADO A PRÁTICA DOS ENFERMEIROS NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE?

O cotidiano do enfermeiro da APS no SUS é marcado pelo conflito de responsabilizar-se pelo conjunto de atividades que compõem a dinâmica de funcionamento do serviço de saúde e o trabalho específico preconizado pelo novo modelo de atenção, dentro de um contexto onde predominam as estratégias de gestão e aspectos ideológicos que reforçam o modelo tradicional de funcionamento do sistema de saúde(77 Caçador BS, Brito MJM, Moreira DA, Rezende LC, Vilela GS. Being a nurse in the family health strategy programme: challenges and possibilities. Rev Min Enferm [Internet]. 2015 [cited 2017 Jun 01]; 19(3):612-26. Available from: http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1027
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). Nesse contexto, o enfermeiro tem suas atividades cada vez mais direcionadas para procedimentos vinculados à organização do serviço, à supervisão das atividades exercidas pelos ACS e aos cuidados desenvolvidos pelos membros da equipe de enfermagem(77 Caçador BS, Brito MJM, Moreira DA, Rezende LC, Vilela GS. Being a nurse in the family health strategy programme: challenges and possibilities. Rev Min Enferm [Internet]. 2015 [cited 2017 Jun 01]; 19(3):612-26. Available from: http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1027
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-88 Galavote HS, Zandonade E, Garcia ACP, Freitas PSS, Seidl H, Contarato PC, et al. The nurse’s work in primary health care. Esc Anna Nery Rev Enferm [Internet]. 2016 [cited 2017 Jun 01]; 20(1):90-8. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ean/v20n1/1414-8145-ean-20-01-0090.pdf
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).

Uma das características marcantes do cotidiano, destacadas em alguns estudos(44 Assis WD, Collet N, Reichert APS, Sá LD. Work process of the nurse who works in child care in family health units. Rev Bras Enferm [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 01]; 64(1):38-46. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71672011000100006
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,77 Caçador BS, Brito MJM, Moreira DA, Rezende LC, Vilela GS. Being a nurse in the family health strategy programme: challenges and possibilities. Rev Min Enferm [Internet]. 2015 [cited 2017 Jun 01]; 19(3):612-26. Available from: http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1027
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8 Galavote HS, Zandonade E, Garcia ACP, Freitas PSS, Seidl H, Contarato PC, et al. The nurse’s work in primary health care. Esc Anna Nery Rev Enferm [Internet]. 2016 [cited 2017 Jun 01]; 20(1):90-8. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ean/v20n1/1414-8145-ean-20-01-0090.pdf
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-99 Baratieri T, Marcon SS. Longitudinality of care in nurses’ practice: identifying the difficulties and perspectives of change. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2012 [cited 2017 Jun 01]; 21(3):549-57. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v21n3/v21n3a09
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), é a sobrecarga de trabalho pelo acúmulo de diversas funções e o afastamento do enfermeiro da assistência direta (especialmente a consulta de enfermagem), as quais decorrem da necessidade de oferecer respostas às demandas relacionadas ao funcionamento dos serviços de saúde e à população e, ainda, às metas estabelecidas, pactuações e indicadores do serviço de saúde(77 Caçador BS, Brito MJM, Moreira DA, Rezende LC, Vilela GS. Being a nurse in the family health strategy programme: challenges and possibilities. Rev Min Enferm [Internet]. 2015 [cited 2017 Jun 01]; 19(3):612-26. Available from: http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1027
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). A priorização de demandas que requerem respostas mais urgentes no cotidiano ligadas a questões gerenciais deixa o enfermeiro distante da assistência direta, da realidade e das necessidades em saúde da população(77 Caçador BS, Brito MJM, Moreira DA, Rezende LC, Vilela GS. Being a nurse in the family health strategy programme: challenges and possibilities. Rev Min Enferm [Internet]. 2015 [cited 2017 Jun 01]; 19(3):612-26. Available from: http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1027
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). A cobrança que se impõe aos enfermeiros não é proporcional às condições que lhes são dadas para responder com qualidade às prerrogativas da saúde da família e ao atendimento da demanda espontânea(77 Caçador BS, Brito MJM, Moreira DA, Rezende LC, Vilela GS. Being a nurse in the family health strategy programme: challenges and possibilities. Rev Min Enferm [Internet]. 2015 [cited 2017 Jun 01]; 19(3):612-26. Available from: http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1027
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,99 Baratieri T, Marcon SS. Longitudinality of care in nurses’ practice: identifying the difficulties and perspectives of change. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2012 [cited 2017 Jun 01]; 21(3):549-57. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v21n3/v21n3a09
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). Sendo assim, observa-se a vivência de situações conflituosas nas tomadas de decisões, pois reconhecem que alguma atividade terá que ser negligenciada, em geral suas atribuições específicas, para que outra seja realizada, ocasionando sentimentos de frustração e dúvida quanto ao seu desempenho na APS(44 Assis WD, Collet N, Reichert APS, Sá LD. Work process of the nurse who works in child care in family health units. Rev Bras Enferm [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 01]; 64(1):38-46. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71672011000100006
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,77 Caçador BS, Brito MJM, Moreira DA, Rezende LC, Vilela GS. Being a nurse in the family health strategy programme: challenges and possibilities. Rev Min Enferm [Internet]. 2015 [cited 2017 Jun 01]; 19(3):612-26. Available from: http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1027
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,99 Baratieri T, Marcon SS. Longitudinality of care in nurses’ practice: identifying the difficulties and perspectives of change. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2012 [cited 2017 Jun 01]; 21(3):549-57. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v21n3/v21n3a09
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).

Os enfermeiros na APS vêm conquistando espaço social e reconhecimento junto aos integrantes da equipe de saúde e dos usuários que vivenciam com ele o atendimento clínico e identificam nele a referência para o seu cuidado, o que traz muita satisfação e dá sentido ao trabalho(22 Matumoto S, Fortuna CM, Kawata LS, Mishima SM, Pereira MJB. Nurses’ clinical practice in primary care: a process under construction. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 01]; 19(1):123-30. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692011000100017
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). Os enfermeiros reconhecem, em seu fazer, potencialidades, como: exercer a prática clínica por meio da consulta de enfermagem, criar vínculos com a população e estabelecer com a equipe relações interpessoais que propiciem um ambiente de trabalho produtivo, saudável e satisfatório(77 Caçador BS, Brito MJM, Moreira DA, Rezende LC, Vilela GS. Being a nurse in the family health strategy programme: challenges and possibilities. Rev Min Enferm [Internet]. 2015 [cited 2017 Jun 01]; 19(3):612-26. Available from: http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1027
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). Quatro aspectos foram destacados por enfermeiros da ESF como importantes para a realização de suas atribuições, são eles: a) valorização e reconhecimento; b) educação permanente; c) vínculo estabelecido com a comunidade; e d) trabalho conjunto com os ACS(77 Caçador BS, Brito MJM, Moreira DA, Rezende LC, Vilela GS. Being a nurse in the family health strategy programme: challenges and possibilities. Rev Min Enferm [Internet]. 2015 [cited 2017 Jun 01]; 19(3):612-26. Available from: http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1027
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).

O Conselho Internacional de Enfermeiras (CIE) afirma que, os enfermeiros vêm desenvolvendo seu papel de forma inovadora no mundo e propõe que sejam realizados estudos sobre o rol de atividades internacionalmente denominado como “Práticas Avançadas de Enfermagem”(1010 Ball J, Barker G, Buchan J. Implementing Nurse Prescribing: an updated review of current practice internationally. International Council of Nurses, Genéve, 2009. 94 p). A prescrição de medicamentos pode ser vista como uma dessas inovações da profissão e vem sendo implementada desde o início da década de 1990 em vários países e contextos, especialmente aqueles com um sistema de saúde e de enfermagem em APS bem estabelecidos, com práticas e funções avançadas bem definidas para os enfermeiros. Entre esses países, foram identificados: a Suécia, Austrália, Canadá, Estados Unidos, Reino Unido e Nova Zelândia, como os primeiros a implantarem essa experiência, seguidos da África do Sul, Botsuana, Irlanda e Quênia(1010 Ball J, Barker G, Buchan J. Implementing Nurse Prescribing: an updated review of current practice internationally. International Council of Nurses, Genéve, 2009. 94 p).

No Brasil, a Lei do Exercício Profissional da Enfermagem (nº 7.498./86) e o seu decreto de regulamentação (nº 94.406/87), garantem aos enfermeiros na consulta de enfermagem o direito de realizar a prescrição de medicamentos aprovados por protocolos institucionais. Também, a Portaria nº 2.488/11 (PNAB) estabelece que “cabe ao enfermeiro realizar consultas de enfermagem, solicitar exames complementares e prescrever medicações, observadas as disposições legais da profissão e conforme os protocolos, ou outras normativas técnicas estabelecidas pelo Ministério da Saúde”(11 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2488_21_10_2011.html
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).

Quanto às dificuldades e limites das práticas do enfermeiro na APS no Brasil destacam-se, as seguintes questões apontadas na literatura(22 Matumoto S, Fortuna CM, Kawata LS, Mishima SM, Pereira MJB. Nurses’ clinical practice in primary care: a process under construction. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 01]; 19(1):123-30. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692011000100017
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3 Bonfim D, Gaidzinski RR, Santos FM, Gonçales CS, Fugulin FMT. The identification of nursing interventions in primary health care: a parameter for personnel staffing. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2012 [cited 2017 Jun 01]; 46(6):1462-70. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342012000600025
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4 Assis WD, Collet N, Reichert APS, Sá LD. Work process of the nurse who works in child care in family health units. Rev Bras Enferm [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 01]; 64(1):38-46. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71672011000100006
http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71672011...
-55 Nauderer TM, Lima MADS. Nurses’ practices at health basic units in a city in the south of Brazil. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2008 [cited 2017 Jun 01]; 16(5):889-94. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692008000500015
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692008...
,77 Caçador BS, Brito MJM, Moreira DA, Rezende LC, Vilela GS. Being a nurse in the family health strategy programme: challenges and possibilities. Rev Min Enferm [Internet]. 2015 [cited 2017 Jun 01]; 19(3):612-26. Available from: http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1027
http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1...
,99 Baratieri T, Marcon SS. Longitudinality of care in nurses’ practice: identifying the difficulties and perspectives of change. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2012 [cited 2017 Jun 01]; 21(3):549-57. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v21n3/v21n3a09
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):

  • Falta de recursos humanos de diferentes áreas, de materiais e de equipamentos gerando sobrecarga aos trabalhadores e repercussão no conjunto do processo de trabalho e na satisfação do usuário com o serviço oferecido;

  • Falta de recursos humanos para as ações de apoio na unidade de saúde como recepção, retirada de prontuários, apoio à gerência local, entre outros, prejudicando a organização e funcionamento ágil do serviço;

  • Número insuficiente de profissionais de enfermagem na unidade de saúde levam os enfermeiros a cobrir o trabalho básico de enfermagem que dá suporte a todos os outros trabalhos da equipe em detrimento da execução de suas atribuições específicas como a consulta de enfermagem que é considerada uma ação central na APS;

  • Sobrecarga de trabalho com atividades administrativas, gerenciais e de apoio ao funcionamento do serviço de saúde, a organização da demanda espontânea e a infraestrutura limitando a prática clínica do enfermeiro na APS;

  • Falta de reconhecimento do trabalho clínico, no âmbito da organização e gestão dos serviços;

  • Falta de compreensão e paciência dos usuários (comunidade) com o trabalhador da saúde quando ele não pode resolver, no nível da APS, os problemas identificados sendo necessários encaminhamentos para uma rede frágil e desarticulada;

  • Extensa área territorial da unidade de saúde dificultando tanto o acesso do usuário ao serviço quanto do trabalhador na realização das visitas domiciliares;

  • Vínculo empregatício precário que leva à rotatividade dos profissionais, o que gera sobrecarga de trabalho para os que permanecem com fragilização dos processos de trabalho, comprometimento do vínculo com a população atendida e a qualidade da assistência, bem como gasto de tempo e energia com o treinamento dos novos profissionais;

  • Disparidades nas condições estruturais em diferentes unidades de saúde para a prática clínica, falta de um consultório adequadamente equipado e de uso exclusivo do enfermeiro;

  • Falta de qualificação para a consulta de enfermagem nas diversas áreas do escopo da APS para a garantia da qualidade na assistência prestada;

  • Inexistência de apoio técnico e supervisão para a prática clínica da enfermagem; e

  • Protocolos do Ministério da Saúde, embora adotados oficialmente pelas Secretarias Municipais de Saúde, nem sempre atendem as necessidades dos profissionais de enfermagem por não descreverem claramente as atribuições do enfermeiro na política a ser implementada.

QUE TIPO DE PROFISSIONAL É O ENFERMEIRO DA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE?

Em todas as funções de trabalho predominam dois tipos de perfis profissionais: o generalista e o especialista. O generalista é uma pessoa capaz de interagir com várias áreas do conhecimento porque desenvolve uma visão integral dos fenômenos, valorizando todas as dimensões do conhecimento. Possui aptidão para relacionar diversos elementos que envolvam pessoas, recursos disponíveis, contexto social e competência técnica. Ele possui uma visão ampla de tudo que acontece a sua volta, mas a extensão do seu campo de atuação impõe limites à profundidade do conhecimento especifico. Por outro lado, o especialista é aquele que se dedica ao estudo profundo de uma área sendo considerado perito nela.

A APS é um campo muito amplo e o enfermeiro precisa dominar diversas habilidades para realizar seu trabalho com efetividade, tais como: gerenciamento do seu processo de trabalho, raciocínio clínico e abstrato, planejamento, comunicação, administração do tempo, conhecimento técnico científico da área (saúde da criança, saúde da mulher, doenças infecto contagiosas, gestação, imunização, saúde mental, cuidado com lesões de pele, hipertensão, diabetes, entre muitas outras). Tendo em vista a amplitude e dimensão dessa área de atuação questiona-se: em quantas áreas o enfermeiro seria capaz de conhecer o tema com a profundidade necessária para um especialista em APS realizar um trabalho efetivo e de qualidade para as pessoas, famílias e comunidade?

Quando pensamos num especialista, precisamos pensar em todas as habilidades que estão relacionadas com aquela especialidade. Nesse sentido, será que nossos Programas de Residência e Cursos de Especialização estão conseguindo formar especialistas em saúde da família?

Relacionando a gama de atividades que competem ao enfermeiro que atua na APS, passamos a refletir sobre o perfil e a necessidade de que esse profissional, considerado generalista, seja capaz de ser ao mesmo tempo um especialista em interagir com as várias áreas para a tomada de decisão. O enfermeiro da APS seria um “Generalista” altamente qualificado e com uma visão prática na escolha e aplicação de determinada conduta ou tecnologia?

Podemos considerá-lo um profissional polivalente, capaz de atuar em várias áreas, um especialista na intervenção dos problemas/necessidades em saúde mais frequentes em serviços de APS. Mas, qual é o preço de ser tão polivalente para a sua satisfação profissional e para a qualidade do cuidado que presta às pessoas, famílias e comunidade?

Seria possível uma especialidade que combinasse os dois tipos de perfis profissionais para um melhor desempenho junto às equipes de saúde, considerando que a prática clínica se renova a cada dia e exige atualizações permanentes?

Em um cargo de coordenação de uma equipe para que decisões sejam tomadas de forma assertiva é necessária uma visão generalista. Por exemplo, o enfermeiro, ao coordenar e supervisionar o trabalho da equipe de enfermagem e dos ACS necessita do conhecimento de todas as ações que são realizadas pela Unidade de Saúde, mas para avaliar uma lesão de pele e definir o tipo de cobertura a ser aplicada é necessário o conhecimento especifico desta área.

A necessidade de transitar todo o tempo entre essas duas posições, para as quais nem sempre conta com conhecimentos e habilidades técnicas para lidar, causa aos enfermeiros tensões e ansiedade, pois precisam exercer de acordo com o novo modelo de atenção sua prática, por meio da clínica ampliada, a qual se estabelece, muitas vezes, em um espaço de disputas que incluem trabalhadores de saúde, usuários e gestores(22 Matumoto S, Fortuna CM, Kawata LS, Mishima SM, Pereira MJB. Nurses’ clinical practice in primary care: a process under construction. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 01]; 19(1):123-30. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692011000100017
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,88 Galavote HS, Zandonade E, Garcia ACP, Freitas PSS, Seidl H, Contarato PC, et al. The nurse’s work in primary health care. Esc Anna Nery Rev Enferm [Internet]. 2016 [cited 2017 Jun 01]; 20(1):90-8. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ean/v20n1/1414-8145-ean-20-01-0090.pdf
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). Também, as demandas inespecíficas que surgem no dia-a-dia acentuam ainda mais as tensões do enfermeiro no cotidiano quando necessita transitar em território desconhecido que espera por invenção de novos modos de enfrentar os problemas de saúde e que dependem do trabalho integrado com os demais membros da equipe(22 Matumoto S, Fortuna CM, Kawata LS, Mishima SM, Pereira MJB. Nurses’ clinical practice in primary care: a process under construction. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 01]; 19(1):123-30. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692011000100017
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,77 Caçador BS, Brito MJM, Moreira DA, Rezende LC, Vilela GS. Being a nurse in the family health strategy programme: challenges and possibilities. Rev Min Enferm [Internet]. 2015 [cited 2017 Jun 01]; 19(3):612-26. Available from: http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1027
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). Esse quadro de tensões, complexidade e “não saberes” é enfrentado de diferentes formas pelos enfermeiros. Alguns se mostram com disposição para construir esse novo fazer e outros não se dispõem claramente a fazê-lo(22 Matumoto S, Fortuna CM, Kawata LS, Mishima SM, Pereira MJB. Nurses’ clinical practice in primary care: a process under construction. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 01]; 19(1):123-30. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692011000100017
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).

COMO APOIAR E QUALIFICAR A PRÁTICA DOS ENFERMEIROS NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE?

A análise da prática cotidiana em nosso serviço, dos dados dos diversos estudos sobre a prática dos enfermeiros na APS e dos fatores que favorecem e que dificultam o trabalho permite deduzir que, em alguns aspectos, os enfermeiros percebem satisfação em seu trabalho e vislumbram um amplo campo de atuação a ser construído, mas não sabem ainda por quais caminhos mover-se, no sentido de (re)construir as práticas dentro do novo modelo assistencial preconizado pelo SUS, mas implementado ainda de forma frágil. Portanto, considera-se necessário:

  • Dar continuidade aos estudos que objetivam a identificação e validação das intervenções de enfermagem na APS o que se constituiria no primeiro passo para a construção de um instrumento para identificar o tempo despendido nessas intervenções, tornando possível conhecer a real carga de trabalho da enfermagem e, consequentemente, contribuir para um planejamento mais eficiente de recursos humanos nessa área;

  • Estudar as atribuições do enfermeiro na APS com o objetivo de especificá-las no que diz respeito às dimensões assistencial e gerencial, pois cada uma delas implica em assumir atribuições distintas;

  • Ampliar estudos que tenham como foco a identificação de estratégias individuais e coletivas contra as adversidades encontradas no processo de trabalho dos enfermeiros na APS;

  • Promover a construção de uma carreira profissional com as atuais atribuições divididas em especialidades de acordo com as duas grandes áreas de atuação da enfermagem na APS: a) produção do cuidado e gestão do processo terapêutico (esta poderia ainda ser subdividida em grandes áreas de atuação como, por exemplo, saúde materno-infantil; doenças crônicas; assistência domiciliar; vigilância em saúde e doenças infecto contagiosas, entre outros); e b) gerenciamento dos serviços de saúde;

  • Oferecer apoio técnico e de infraestrutura (gestão municipal e estadual) com incentivo à priorização da prática clínica para consolidar esse campo de atuação. É preciso que o próprio enfermeiro compreenda esse processo de construção social, pois depende dele a conquista desse espaço e a consolidação das suas práticas(22 Matumoto S, Fortuna CM, Kawata LS, Mishima SM, Pereira MJB. Nurses’ clinical practice in primary care: a process under construction. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 01]; 19(1):123-30. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692011000100017
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    ,77 Caçador BS, Brito MJM, Moreira DA, Rezende LC, Vilela GS. Being a nurse in the family health strategy programme: challenges and possibilities. Rev Min Enferm [Internet]. 2015 [cited 2017 Jun 01]; 19(3):612-26. Available from: http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1027
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    );

  • Implantar Programas de Educação Permanente voltados para a consulta de enfermagem com apoio técnico e supervisão à prática clínica. Estes espaços devem promover a reflexão crítica sobre o próprio fazer, articulando a pratica com a reflexão e novos conhecimentos (o fazer e o pensar sobre o fazer) - construindo um movimento cíclico no universo do trabalho, possibilitando a superação de estados de alienação provocados pela imersão no estado de sobrecarga de trabalho(22 Matumoto S, Fortuna CM, Kawata LS, Mishima SM, Pereira MJB. Nurses’ clinical practice in primary care: a process under construction. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 01]; 19(1):123-30. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692011000100017
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    ,55 Nauderer TM, Lima MADS. Nurses’ practices at health basic units in a city in the south of Brazil. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2008 [cited 2017 Jun 01]; 16(5):889-94. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692008000500015
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    );

  • Implementar protocolos assistenciais específicos, claros, estruturados a partir das competências e atribuições do enfermeiro para propiciar conhecimento técnico-científico (saber-fazer) levando em consideração a realidade epidemiológica da região, as necessidades em saúde da população local, a autonomia profissional, a qualificação da assistência e o respaldo técnico e legal;

  • Promover capacitações para a utilização de tecnologias leves que possam dar apoio à complexidade das práticas da APS, entre elas: a clínica ampliada (escuta, acolhimento, vínculo, responsabilização), a gestão de casos, a abordagem centrada na pessoa, a Educação Permanente, os Protocolos Clínicos, a organização de Linhas de Cuidado, o trabalho em redes, bem como habilidades para lidar com os altos graus de incerteza intrínsecos a este trabalho(22 Matumoto S, Fortuna CM, Kawata LS, Mishima SM, Pereira MJB. Nurses’ clinical practice in primary care: a process under construction. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 01]; 19(1):123-30. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692011000100017
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    );

  • Promover um movimento junto com as entidades de classe para (re)pensar o processo de trabalho no intuito de fortalecer a prática clínica perante as pessoas, famílias e comunidade e buscar resolutividade diante das necessidades dos usuários do SUS.

Em relação à sobrecarga de trabalho do enfermeiro com atividades administrativas, gerenciais e de apoio ao funcionamento do serviço de saúde, a organização da demanda espontânea e a infraestrutura há a necessidade imediata de uma gestão de processos compartilhada entre toda a equipe para que o trabalho clínico desse profissional não seja aprisionado por atividades que, em sua essência, não contemplam o seu principal objeto de intervenção(22 Matumoto S, Fortuna CM, Kawata LS, Mishima SM, Pereira MJB. Nurses’ clinical practice in primary care: a process under construction. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 01]; 19(1):123-30. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692011000100017
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,55 Nauderer TM, Lima MADS. Nurses’ practices at health basic units in a city in the south of Brazil. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2008 [cited 2017 Jun 01]; 16(5):889-94. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692008000500015
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,99 Baratieri T, Marcon SS. Longitudinality of care in nurses’ practice: identifying the difficulties and perspectives of change. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2012 [cited 2017 Jun 01]; 21(3):549-57. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v21n3/v21n3a09
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) ou compor as equipe da APS com um número maior de enfermeiros para que eles possam realizar com efetividade nestes serviços o trabalho nessas duas dimensões (cuidado e gestão).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A revisão da literatura e a experiência prática das enfermeiras autoras dessa reflexão permitem considerar que a atuação do enfermeiro na APS é um campo muito amplo e em processo de qualificação, seja na prática clínica, na atuação educativa individual e coletiva ou na atuação gerencial.

O enfermeiro na APS tem a possibilidade de ampliar a sua autonomia por meio de uma prática clínica sustentada na perspectiva da integralidade e do cuidado às famílias e comunidades em todo o seu ciclo de vida. É necessária a organização dos enfermeiros que atuam na APS para estruturar e fortalecer uma proposta de carreira profissional, contribuindo para a consolidação de mudanças no modelo de assistência à saúde do SUS.

Espera-se que os tópicos levantados nesse artigo de reflexão possam contribuir para o debate da categoria e entidades de classe sobre a ampliação do escopo de trabalho do enfermeiro da APS na realidade brasileira. Consolidar o trabalho do enfermeiro da APS por meio de carreiras profissionais bem estabelecidas e com atribuições definidas pode ser um caminho para obter maior satisfação profissional e para superar os dilemas da prática cotidiana quanto a ser um enfermeiro “generalista X especialista” ou ser um profissional “assistencial X gerencial”. Dessa forma, os enfermeiros que optarem por atuar na dimensão da “produção do cuidado e gestão do processo terapêutico” poderão dedicar um tempo maior para essa atividade e realizar a atenção integral ao usuário de forma mais qualificada acompanhando-os em todo o ciclo vital com ações de prevenção, promoção, tratamento e reabilitação, fornecendo sentido à relação dos serviços de saúde com os indivíduos da comunidade, bem como contribuindo com a cobertura e o acesso universal à APS.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2017
  • Aceito
    18 Nov 2017
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