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Síndrome de Heyde: relato de caso e revisão da literatura

RELATO DE CASO

Síndrome de Heyde: relato de caso e revisão da literatura

Fernando Côrtes Remisio Figuinha; Guilherme Sobreira Spina; Flávio Tarasoutchi

Instituto do Coração - HC-FMUSP, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Fernando Côrtes Remisio Figuinha Rua Teodoro Sampaio, 408 / 24 - Pinheiros 05406-000 - São Paulo, SP - Brasil Email: fefigas@yahoo.com.br, drfernandofiguinha@gmail.com

Palavras-chave: Estenose da valva aórtica, hemorragia gastrointestinal, angiodisplasia, síndrome de Heyde.

Descrevemos um caso de síndrome de Heyde e discutimos as bases fisiopatológicas e as possibilidades terapêuticas para essa síndrome.

Introdução

A associação entre estenose aórtica e sangramento gastrointestinal - síndrome de Heyde - vem sendo estudada nos últimos anos com grandes avanços no conhecimento de seu mecanismo fisiopatológico e de terapêutica. Neste relato, apresentamos um caso ilustrativo de síndrome de Heyde e revisamos a literatura existente até o momento.

Relato do Caso

Paciente A.M. , masculino, de 76 anos, procurou atendimento médico com queixa de dor torácica em aperto, sem irradiação, associado a náuseas e sudorese, de início geralmente aos pequenos esforços. Apresentava também dispneia aos mínimos esforços, com ortopneia, dispneia paroxística noturna e edema de membros inferiores. Negava febre. Referia episódios de sangramento digestivo baixo (SDB) em pequena quantidade, há seis meses. Negava outros sítios de sangramento.

Relatava antecedentes de hipertensão, diabete melito tipo 2, insuficiência renal crônica (IRC) não dialítica, e referia problema valvar e cansaço aos esforços.

Ao exame físico, encontrava-se descorado, eupneico. Pulso de 82 bpm, frequência respiratória de 20 ipm, pressão arterial 140 x 70 mmHg. Exame cardiovascular revelou sopro sistólico ejetivo em foco aórtico +++/6+, com irradiação para fúrcula. Exame pulmonar com estertores crepitantes em bases. Edema periférico presente ++/4+, e boa perfusão periférica.

Exames gerais mostraram hemoglobina de 6,8 g/dl, hematócrito 23%, creatinina 1,39 mg/dL. Restante dos exames mostrados na tabela 1. Inicialmente o quadro de anemia foi atribuído à IRC. Entretanto, houve melhora da função renal após infusão de volume, caracterizando a disfunção renal como aguda. Em razão do quadro de insuficiência cardíaca e anemia, optou-se por transfusão sanguínea.

Perfil de ferro mostrou anemia provavelmente ferropriva (tab. 1). Eletrocardiograma mostrado na figura 1.


A ecocardiografia transtorácica confirmou estenose aórtica importante, com área valvar de 0,5 cm2 e gradiente máximo de 85 mmHg e médio de 52 mmHg. Fração de ejeção 62%. Ventrículo esquerdo com diâmetro diastólico de 56 mm e sistólico de 37 mm.

Cineangiocoronariografia evidenciou lesão de 60% em 1/3 proximal da artéria descendente anterior; restante sem lesões críticas, apenas com irregularidades. Gradiente VE-Ao de 45 mmHg.

Para investigação do SDB foi realizada colonoscopia, que demonstrou angiodisplasia em cólon ascendente proximal. A presença de sangramento digestivo por angiodisplasia e estenose aórtica sugeriu o diagnóstico de síndrome de Heyde.

Paciente manteve níveis de hemoglobina estáveis após transfusão realizada na entrada. Após cateterismo e com melhora dos sintomas de insuficiência cardíaca, optou-se por alta hospitalar e reavaliação em ambulatório especializado para programação de cirurgia de troca valvar.

Dois meses após a alta, procurou novamente o pronto-socorro, tendo sido internado em UTI por quadro de insuficiência cardíaca descompensada. Foi indicada cirurgia para troca valvar aórtica, mas apresentou piora clínica em razão de quadro infeccioso pulmonar, evoluindo para o óbito por choque séptico.

Discussão

A síndrome de Heyde consiste na associação de sangramento gastrointestinal por angiodisplasia e estenose valvar aórtica (EAo). Foi originalmente descrita por Heyde em 19581, e em 1992 Olearchyk2 definiu a combinação de estenose aórtica e sangramento recorrente por angiodisplasia gastrointestinal como síndrome de Heyde.

Vincentelli e cols. 3 demonstraram que 21% dos pacientes com estenose aórtica grave apresentaram sangramento de pele ou mucosa nos seis meses antecedentes à cirurgia valvar.

Vários artigos foram publicados nos últimos anos discutindo a fisiopatologia, pouco conhecida até o final do século passado, e o tratamento dessa síndrome. Sua apresentação está relacionada com a síndrome de von Willebrand adquirida tipo 2A que ocorre nesses pacientes - uma síndrome hemorrágica que surge por perda de multímeros de alto peso molecular (MAPM) do fator de von Willebrand (fvW)3.

A explicação fisiopatológica é que, com a passagem do fvW pela valva estenótica, ocorre proteólise desses multímeros pela enzima ADAMTS13 (A Disintegrin And Metalloproteinase with Thrombospondin type 1 moitf, member 13) - uma proteinase que age preferencialmente sob situações de alta tensão de cisalhamento. Esses MAPM são moléculas muito importantes para uma adequada hemostasia mediada por plaquetas3, ligando-se à glicoproteína Ib plaquetária. O fvW é secretado por células endoteliais para o sangue, onde contribui para a formação de trombos plaquetários e age como mediador da adesão plaquetária no sítio de lesão vascular. A primeira descrição da perda de MAPM na síndrome de Heyde foi feita por Warkentin e cols. 4, em 1992.

A relação entre EAo e função plaquetária foi analisada recentemente3. Quase todos os pacientes com EAo grave tinham diminuição da porcentagem de MAPM e disfunção plaquetária. Já a partir do primeiro dia pós-operatório de troca valvar, todos os pacientes tinham seus níveis de MAPM e função plaquetária normalizados, o que comprova a relação entre a doença valvar e essa alteração hematológica.

Em relação à alta prevalência de angiodisplasia nesses pacientes, foi proposto que estenose aórtica hemodinamicamente relevante pode estar associada à diminuição da perfusão gastrointestinal e, consequentemente, levar à dilatação de vasos sanguíneos induzido por hipoxemia, acelerando o desenvolvimento de vasodilatação fixa, gênese da angiodisplasia.

Quanto ao tratamento, a dúvida que surge ao encontrar um paciente que tem uma estenose aórtica importante e sangramento gastrointestinal associado é qual conduta deve ser tomada: opera-se primeiro o coração, com troca valvar aórtica, ou o intestino, com ressecção do segmento que apresenta o sangramento?

Há o receio que após a cirurgia valvar possam ocorrer novos sangramentos. Por outro lado, a cirurgia intestinal com EAo está associada a alto risco de complicações cardiovasculares perioperatórias pela valvopatia5.

Cirurgia valvar pode, isoladamente, levar à regressão das alterações que ocorrem na síndrome de Heyde. Só ocorre recorrência do sangramento quando o mecanismo fisiopatológico é re-estabelecido, seja por re-estenose aórtica, seja por incompatibilidade paciente-prótese (definido por área efetiva valvar por superfície corpórea <0,85 cm2/m2 ao ecocardiograma)6 - nos quais ainda existem altos gradientes aórticos no pós-operatório mesmo com valvas normofuncionantes.

O tipo valvar de escolha é a prótese biológica, uma vez que não necessita de anticoagulação após cirurgia.

Quando não há condições para realização da cirurgia valvar, por alto risco cirúrgico, alguns autores7 sugerem a realização de colectomia após identificação do sítio de sangramento como uma opção terapêutica inicial, sabendo que poderia ocorrer recorrência do sangramento em outro sítio. Hoje há opção de realização da prótese percutânea8.

Alguns autores sugerem também como tratamento alternativo àqueles em que a cirurgia não obteve sucesso na resolução do sangramento o uso de octreotide 20 mg uma vez por mês7.

A suplementação de fator de von Willebrand parece ser efetiva para prevenir complicações hemorrágicas importantes no período perioperatório9, mas o tratamento a longo prazo da síndrome von Willebrand adquirida do tipo 2A por lesão valvar não responde bem à desmopressina e à transfusão repetida de fatores da coagulação, necessitando assim da correção cirúrgica da estenose aórtica para resolução definitiva dessa alteração hematológica.

Assim, o tratamento de escolha preconizado para a síndrome de Heyde é a cirurgia de troca valvar aórtica, devendo ser optada sempre que possível para aqueles que possuem história de sangramento e estenose aórtica grave.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 10/09/09; revisado recebido em 04/03/10; aceito em 24/03/10.

  • 1. Heyde EC. Gastrointestinal bleeding in aortic stenosis. N Engl J Med. 1958; 259: 196.
  • 2. Olearchyk AS. Heyde's syndrome. J Thorac Cardiovasc Surg. 1992; 103 (4): 823-4.
  • 3. Vincentelli A, Susen S, Le Tourneau T, Six I, Fabre O, Juthier F, et al. Acquired von Willebrand syndrome in aortic stenosis. N Engl J Med. 2003; 349 (4): 343-9.
  • 4. Warkentin TE, Moore JC, Morgan DG. Aortic stenosis and bleeding gastrointestinal angiodysplasia: is acquired von Willebrand syndrome the lynk? Lancet. 1992; 240 (8810): 35-7.
  • 5. Christ M, Sharkova Y, Geldner G, Maisch B. Preoperative and perioperative care for patients with suspected or established aortic stenosis facing noncardiac surgery. Chest. 2005; 128 (4): 2944-53.
  • 6. Goldsmith IR, Blann AD, Patel RL, Lip GY. Effect of aortic valve replacement on plasma soluble P-selectine, von Willebrand factor and fibrinogen. Am J Cardiol. 2001; 87 (1): 107-10.
  • 7. De Palma GD, Slavatori F, Masone S, Simeoli I, Rega M, Celiento M, et al. Acute gastrointestinal bleeding following aortic valve replacement in a patient with Heyde's syndrome. Case report. Minerva Gastroenterol Dietol. 2007; 53 (3): 291-3.
  • 8. Webb JG, Pasupati S, Humphries K, Thompson C, Altweg L, Moss R, et al. Percutaneous transarterial valve replacement in selected high-risk patients with aortic stenosis. Circulation. 2007; 116 (7): 755-63.
  • 9. Morishima A, Marui A, Shimamoto T, Sagi Y, Tambara K, Nishima T, et al. Successful aortic valve replacement for Heyde syndrome with confirmed hematologic recovery. Ann Thorac Surg. 2007; 83 (1): 287-8.
  • Correspondência:

    Fernando Côrtes Remisio Figuinha
    Rua Teodoro Sampaio, 408 / 24 - Pinheiros
    05406-000 - São Paulo, SP - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011
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