Acessibilidade / Reportar erro

Correlação entre Proteína C-Reativa em Veia Periférica e Seio Coronário na Angina Estável e Instável

Resumos

Fundamento:

A proteína C-reativa de alta sensibilidade (PCR-as) é comumente utilizada na prática clínica para avaliar o risco cardiovascular. Entretanto, a correlação entre os níveis séricos de PCR-as (valores absolutos) periférico versus central ainda não foi feita.

Objetivo:

Avaliar a correlação entre os níveis séricos de PCR-as (mg/L) em veia periférica do antebraço esquerdo (VPAE) versus seio coronário (SC), em pacientes portadores de doença arterial coronária (DAC) com diagnóstico de angina estável (AE) ou angina instável (AI).

Métodos:

Estudo observacional, descritivo, transversal, realizado no Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e no Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo, onde foram avaliados os pacientes encaminhados ao hospital com DAC para angiografia coronária.

Resultados:

Quarenta pacientes com DAC (20 AE e 20 AI) foram incluídos no estudo. Amostras de sangue na VPAE e SC foram coletadas simultaneamente antes da angiografia coronária. A análise de correlação entre os níveis séricos de PCR-as em VPAE versus SC mostrou forte correlação linear tanto para AE (r = 0,993, p < 0,001) como para AI (r = 0,976, p < 0,001) e em toda a amostra (r = 0,985, p < 0,001).

Conclusão:

Nossos dados sugeriram forte correlação linear entre os níveis de PCR-as em VPAE versus SC na AE e AI.

Proteína C-Reativa; Doença da Artéria Coronariana; Angina Estável; Angina Instável; Seio Coronário


Background:

High sensitivity C-reactive protein (hs-CRP) is commonly used in clinical practice to assess cardiovascular risk. However, a correlation has not yet been established between the absolute levels of peripheral and central hs-CRP.

Objective:

To assess the correlation between serum hs-CRP levels (mg/L) in a peripheral vein in the left forearm (LFPV) with those in the coronary sinus (CS) of patients with coronary artery disease (CAD) and a diagnosis of stable angina (SA) or unstable angina (UA).

Methods:

This observational, descriptive, and cross-sectional study was conducted at the Instituto do Coração, Hospital das Clinicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, and at the Hospital Beneficência Portuguesa de Sao Paulo, where CAD patients referred to the hospital for coronary angiography were evaluated.

Results:

Forty patients with CAD (20 with SA and 20 with UA) were included in the study. Blood samples from LFPV and CS were collected before coronary angiography. Furthermore, analysis of the correlation between serum levels of hs-CRP in LFPV versus CS showed a strong linear correlation for both SA (r = 0.993, p < 0.001) and UA (r = 0.976, p < 0.001) and for the entire sample (r = 0.985, p < 0.001).

Conclusion:

Our data suggest a strong linear correlation between hs-CRP levels in LFPV versus CS in patients with SA and UA.

C-Reactive Protein; Coronary Artery Disease; Angina, Stable; Angina, Unstable; Coronary Sinus


Introdução

A busca por marcadores biológicos para avaliar o risco de doença cardiovascular é um dos grandes desafios da medicina nas últimas décadas, mais especificamente na cardiologia. Entre esses marcadores estão glicose, creatinina, renina, colesterol de lipoproteína de baixa densidade, leucócitos, e inflamatórios como lipoproteína‑fosfolipase A2, interleucina 6, fator de necrose tumoral alfa, molécula de adesão intercelular, molécula de adesão celular vascular, proteína 1 quimioatrativa de monócitos e selectina E, entre outros.

Mais recentemente, introduziu-se a proteína C-reativa de alta sensibilidade (PCR-as) como marcador inflamatório1Ridker PM, Rifai N, Rose L, Buring JE, Cook NR. Comparison of C-reactive protein and low-density lipoprotein cholesterol levels in the prediction of first cardiovascular events. N Engl J Med. 2002;347(20):1557-65.,2Ridker PM. Clinical application of C-reactive protein for cardiovascular disease detection and prevention. Circulation. 2003;107(3):363-9., admitindo-se que poderia representar agressão endotelial3Fujita Y, Kakino A, Nishimichi N, Yamaguchi S, Sato Y, Machida S, et al. Oxidized LDL receptor LOX-1 binds to C-reactive protein and mediates its vascular effects. Clin Chem. 2009;55(2):285-94.

Venugopal SK, Devaraj S, Yuhanna I, Shaul P, Jialal I. Demonstration that C-reactive protein decreases eNOS expression and bioactivity in human aortic endothelial cells. Circulation. 2002;106(12):1439-41.
-5Pasceri V, Willerson JT, Yeh ET. Direct proinflammatory effect of C-reactive protein on human endothelial cells. Circulation. 2000;102(18):2165-8. e instabilização de placas ateroscleróticas606 Fay WP. Linking inflammation and thrombosis: role of C-reactive protein. World J Cardiol. 2010;2(11):365-9.

Paffen E, DeMaat MP. C-reactive protein in atherosclerosis: a causal factor? Cardiovasc Res. 2006;71(1):30-9.
-8Inoue T, Kato T, Uchida T, Sakuma M, Nakajima A, Shibazaki M, et al. Local release of C-reactive protein from vulnerable plaque or coronary arterial wall injured by stenting. J Am Coll Cardiol. 2005;46(2):239-45..

Vários estudos utilizando PCR-as sugerem que ela seria um marcador biológico muito útil para a identificação de casos de maior risco9Ridker PM, Cushman M, Stampfer MJ, Tracy RP, Hennekens CH. Inflammation, aspirin, and the risk of cardiovascular disease in apparently healthy men. N Engl J Med. 1997;336(14):973-9.

10 Ridker PM, Hennekens CH, Buring JE, Rifai N. C-reactive protein and other markers of inflammation in the prediction of cardiovascular disease in women. N Engl J Med. 2000;342(12):836-43.

11 Pearson c, Mensah GA, Alexander RW, Anderson JL, Cannon RO, Criqui M, et al. Markers of inflammation and cardiovascular disease: Application to clinical and public health practice. A statement for healthcare professionals from the Centers for Disease Control and Prevention and the American Heart Association. Circulation. 2003;107(3):499-511.

12 Kaptoge S, Di Angelantonio E, Pennells L, Wood AM, White IR, Gao P, et al. C-reactive protein, fibrinogen, and cardiovascular diseases prediction. N Engl J Med. 2012;367(14):1310-20.

13 Danesh J, Wheeler JG, Hirschfield GM, Eda S, Eiriksdottir G, Rumley A, et al. C-reactive protein and other circulating markers of inflammation in the prediction of coronary heart disease. N Engl J Med. 2004;350(14):1387-97.
-1414 Lloyd-Jones DM, Liu K, Tian L, Greenland P. Narrative review: Assessment of C-reactive protein in risk prediction for cardiovascular disease. Ann Intern Med. 2006;145(1):35-42..

O entendimento atual é que a síntese de PCR é principalmente hepática3Fujita Y, Kakino A, Nishimichi N, Yamaguchi S, Sato Y, Machida S, et al. Oxidized LDL receptor LOX-1 binds to C-reactive protein and mediates its vascular effects. Clin Chem. 2009;55(2):285-94.,1515 Pepys MB, Hirschfield GM. C-reactive protein: a critical update. J Clin Invest. 2003;111(12):1805-12.. Existem alguns relatos de síntese extra-hepática da PCR em tecidos inflamados7Paffen E, DeMaat MP. C-reactive protein in atherosclerosis: a causal factor? Cardiovasc Res. 2006;71(1):30-9.,8Inoue T, Kato T, Uchida T, Sakuma M, Nakajima A, Shibazaki M, et al. Local release of C-reactive protein from vulnerable plaque or coronary arterial wall injured by stenting. J Am Coll Cardiol. 2005;46(2):239-45.,1616 Wilson AM, Swan JD, Ding H, Zhang Y, Whitbourn RJ, Gurry J, et al. Widespread vascular production of C-reactive protein (CRP) and a relationship between serum CRP, plaque CRP and intimal hypertrophy. Atherosclerosis. 2007;191(1):175-81.,1717 Calabró P, Willerson JT, Yeh ET. Inflammatory cytokines stimulated C-reactive protein production by human coronary artery smooth muscle cells. Circulation. 2003;108(16):1930-2.. Se a fonte de PCR em pessoas com aterosclerose coronária é, de fato, as artérias coronárias inflamadas, uma hipótese seria que a concentração de PCR no SC seria maior do que na circulação sistêmica.

Assim, o objetivo do presente estudo foi correlacionar os níveis séricos de PCR-as (valores absolutos) na veia periférica do antebraço esquerdo (VPAE) com os valores encontrados no seio coronário (SC), em pacientes portadores de doença arterial coronária (DAC) com diagnóstico de angina estável (AE) ou angina instável (AI).

Métodos

Aprovação do protocolo e considerações éticas

Este estudo foi aprovado pelos Comitês Científicos e de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa (CAPPesq) do InCor-HC-FMUSP e Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo. Todos os pacientes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O estudo foi realizado conforme a Declaração de Helsinque.

Caracterização do estudo

Estudo observacional, descritivo, transversal, realizado no Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC‑FMUSP) e no Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo, onde foram avaliados os pacientes encaminhados ao hospital com DAC para angiografia coronária. Destes, 40 pacientes que preencheram os critérios de seleção foram incluídos no estudo e classificados em AE (n = 20) e AI (n = 20).

Seleção dos participantes do estudo

Os critérios de inclusão foram: AE1818 Fihn SD, Gardin JM, Abrams J, Berra K, Blankenship JC, Dallas AP, et al. 2012 ACCF/AHA/ACP/AATS/PCNA/SCAI/STS guideline for the diagnosis and management of patients with stable ischemic heart disease: a report of the American College of Cardiology Foundation/American Heart Association task force on practice guidelines, and the American College of Physicians, American Association for Thoracic Surgery, Preventive Cardiovascular Nurses Association, Society for Cardiovascular Angiography and Interventions, and Society of Thoracic Surgeons. Circulation. 2012;126(25):e354-471.; AI1919 Nicolau JC, Timerman A, Piegas LS, Marin-Neto JA, Rassi Jr A. Guidelines for unstable angina and non-ST segment elevation myocardial infarction of the Brazilian Society of Cardiology (II Edition, 2007). Arq Bras Cardiol. 2007;89(4):e89-131.; estenose ≥ 70% do diâmetro da luz vascular em uma das principais artérias coronárias; função sistólica do ventrículo esquerdo normal em repouso (FEVE ≥55% calculada pelo método de Simpson modificado), ao ecocardiograma (ECO); idade entre 40-75 anos; ritmo sinusal ao eletrocardiograma (ECG) e troponina I normal (com detecção de alta sensibilidade).

Para descartar condições que pudessem estar associados a níveis elevados de PCR, excluíram-se todos os pacientes que foram submetidos a ablação, estudo eletrofisiológico ou intervenção coronária percutânea < 3 meses; alcoolismo ou etilista pesado ou abstinência < 3 meses; anemia; acidente vascular cerebral < 3 meses; bradicardia ou taquicardia, cardiopatia congênita; câncer < 5 anos; cirurgia cardíaca ou geral < 3 meses; doença arterial obstrutiva periférica ou doença carotídea; diabetes mellitus; dissecção da aorta; doença inflamatória crônica, doença inflamatória infecciosa ou não infecciosa aguda ou trauma < 3 meses; insuficiência renal crônica (creatinina ≥ 1,5 mg/dL); hipertensão arterial sistêmica (HAS) não controlada; hipo/hipertireoidismo; infarto agudo do miocárdio <3 meses; insuficiência hepática; miocardiopatia; obesidade; pneumopatia; tabagismo ativo ou abstinência < 3 meses; transplante de órgão prévio; uso de glicocorticoides, imunossupressores ou agentes anti-inflamatórios não esteroides < 3 meses; valvopatia ou insuficiência cardíaca congestiva.

Avaliação laboratorial e coleta da amostra de sangue

A avaliação inicial constou de exames laboratoriais de rotina: alanina aminotransferase (ALT), creatinina, glicose, hemograma, hormônio tiroestimulante (TSH), troponina I, seguindo a metodologia de rotina dos centros envolvidos, e angiografia coronária quantitativa, ECO e ECG.

Coletaram-se amostras de sangue na sala de hemodinâmica, com paciente em decúbito dorsal horizontal, repouso de, no mínimo, 60 minutos e jejum prévio de 12 horas, tendo-se administrado a última dose de estatina (rosuvastatina 10 mg), nitrato ou ácido acetilsalicílico (AAS), no mínimo, 11 horas e 20 minutos antes da coleta da amostra de sangue, realizada entre 7h20 e 10h10 do dia seguinte.

Todas as amostras de sangue foram adquiridas antes da administração de contraste, nitrato ou heparina, simultaneamente a partir de uma VPAE (amostra periférica) por meio de punção venosa direta e do SC (amostra central) por cateterismo direto; o material coletado foi acondicionado em tubos de 5 mL de Vacuette® com gel separador (Greiner Bio-One, Americana, São Paulo, Brasil).

Angiografia coronária quantitativa

As vias de acesso empregadas para angiografia coronária foram artéria femoral direita ou artéria radial direita. A posição do cateter mantida em SC foi confirmada por meio de injeção de contraste, imediatamente após a coleta das amostras de sangue (Figura 1).

Figura 1
Cateter no seio coronário em projeção anteroposterior (A) e oblíqua anterior esquerda (C). Angiografia do seio coronário em projeção anteroposterior (B) e oblíqua anterior esquerda (D).

A seguir, realizou-se angiografia coronária nas projeções padronizadas e determinou-se, por meio de análise, o grau de gravidade da estenose. Não houve complicações durante as angiografias coronárias ou relativas às coletas das amostras de sangue em VPAE ou SC.

Dosagem da proteína C-reativa

As amostras de soro foram analisadas no mesmo dia por meio de metodologia de alta sensibilidade, e a PCR foi quantificada em equipamento automatizado BN II Systems®, utilizando-se o Kit Cardio Phase hs-CRP® (Siemens Healthcare Diagnostics Products, Marburg, Alemanha).

O valor de referência foi inferior a 1,0 mg/L para avaliação de risco de doença vascular. O limite de detecção do método foi de 0,15 mg/L. O coeficiente de variação foi de 7,6% para uma concentração de 0,4 mg/L.

Análise estatística

O cálculo amostral foi realizado com base no valor do coeficiente de correlação de Pearson (r). Nossa hipótese era de que haveria uma correlação entre os níveis de PCR-as na VPAE versus SC acima de 0,70. Com base na estimativa de correlação de 0,70, poder de 80% e nível de significância do teste de 5%, obteve-se o tamanho da amostra para cada grupo (20 AE e 20 AI).

Para as variáveis quantitativas, a análise foi feita por meio do cálculo de médias ± desvios-padrão. Em relação às variáveis qualitativas, calcularam-se frequências absolutas e relativas (%).

Com o objetivo de avaliar se os níveis de PCR-as obedeciam à distribuição normal, utilizou-se o teste de Shapiro-Wilk. A PCR foi analisada por meio de transformação dos dados para uma escala logarítmica (transformação logarítmica) para obtermos normalidade dos dados.

Para o estudo de dois fatores influenciando as médias dos valores estudados, optou-se pela análise de variância a dois fatores (ANOVA). Médias foram comparadas por meio do teste t de Student e proporções por meio do teste qui-quadrado ou teste exato de Fisher.

Para a correlação entre os níveis de PCR-as em VPAE versus SC utilizou-se o coeficiente de correlação de Pearson. Quanto à obtenção de um modelo preditor, foi utilizado o modelo de regressão linear simples.

Os valores obtidos nos testes foram considerados significativos quando p < 0,05. Todos os cálculos foram realizados com o software Statistical Package for The Social Sciences (SPSS Inc.®, Chicago, IL, Estados Unidos) versão 17.0.

Resultados

Durante o período de novembro de 2011 a setembro de 2012, 40 pacientes portadores de DAC aterosclerótica com diagnóstico de angina pectoris foram avaliados, classificados em AE (n = 20) e AI (n = 20), e compuseram a amostra do presente estudo.

A análise dos pacientes com AE e AI não revelou diferença significativa quanto às suas características basais (Tabela 1).

Tabela 1
Características basais dos participantes do estudo

De acordo com os critérios de avaliação de laboratório, também não houve diferença significativa entre os pacientes com AE e AI quando os valores de ALT, creatinina, glicose, hemograma completo, TSH e troponina I foram comparados.

À medida que os pacientes tinham DAC sintomática, os medicamentos (AAS, bloqueadores do canal de cálcio, betabloqueadores, bloqueadores dos receptores da angiotensina, clopidogrel, diuréticos, estatina, inibidores da enzima conversora de angiotensina e nitratos) foram mantidos para todos os indivíduos do estudo. Na análise das medicações utilizadas nos dois tipos de angina, não foram observadas diferenças significativas, com exceção de nitratos. O uso de nitratos foi justificado pela maior intensidade e frequência de angina pectoris nos pacientes com AI 16 (80%), quando comparados com AE 5 (25%), com significância estatística (p < 0,001) – Tabela 2.

Tabela 2
Fármacos utilizados pelos pacientes no momento da inclusão no estudo

ANOVA foi utilizada para testar essa diferença e avaliar possível interferência nos níveis de PCR-as em cada tipo de angina. Constatou-se que não houve efeito de interação entre os dois tipos de angina e o uso de nitratos nos níveis de PCR-as em VPAE (p = 0,559) e SC (p = 0,532), e não existiu diferença significativa entre os grupos de uso ou não de nitratos em ambas as medidas, VPAE (p = 0,762) e SC (p = 0,856) – Tabela 3.

Tabela 3
Níveis de PCR-as (mg/L) na VPAE e SC em pacientes com e sem uso de nitrato na angina estável e instável

Considerando que não houve diferença significativa entre AE e AI (características basais, medicações e critérios de avaliação de laboratório), os pacientes também foram analisados como um todo.

A análise de correlação entre os níveis séricos de PCR-as em VPAE versus SC mostrou forte correlação linear tanto para AE (r = 0,993, p < 0,001; Figura 2A) como para AI (r = 0,976, p < 0,001; Figura 2B) e em toda a amostra (r = 0,985, p < 0,001; Figura 2C)

Figura 2
Correlação linear entre os logaritmos da PCR-as em VPAE versus SC na angina estável (A), na angina instável (B) e em toda a amostra (C).

Discussão

O reconhecimento de que a aterosclerose é uma doença inflamatória crônica, com patogênese complexa e autoimune2020 Hansson GK, Libby P. The immune response in atherosclerosis: a double‑edged sword. Nat Rev Immunol. 2006;6(7):508-19.,2121 Rocha VZ, Libby P. Obesity, inflammation and atherosclerosis. Nat Rev Cardiol. 2009;6(6):399-409., mobiliza pesquisadores em busca de um marcador ou preditor de risco de doença cardiovascular ideal. A PCR-as é utilizada na prática clínica e em vários estudos2Ridker PM. Clinical application of C-reactive protein for cardiovascular disease detection and prevention. Circulation. 2003;107(3):363-9.,9Ridker PM, Cushman M, Stampfer MJ, Tracy RP, Hennekens CH. Inflammation, aspirin, and the risk of cardiovascular disease in apparently healthy men. N Engl J Med. 1997;336(14):973-9.

10 Ridker PM, Hennekens CH, Buring JE, Rifai N. C-reactive protein and other markers of inflammation in the prediction of cardiovascular disease in women. N Engl J Med. 2000;342(12):836-43.
-1111 Pearson c, Mensah GA, Alexander RW, Anderson JL, Cannon RO, Criqui M, et al. Markers of inflammation and cardiovascular disease: Application to clinical and public health practice. A statement for healthcare professionals from the Centers for Disease Control and Prevention and the American Heart Association. Circulation. 2003;107(3):499-511. com esse propósito. Entretanto, seu significado prognóstico, bem como o seu papel como marcador ou preditor de risco coronário, é discutível. Sposito e cols.2222 Sposito AC, Alvarenga BF, Alexandre AS, Araujo AL, Santos SN, Andrade JM, et al. Most of the patients presenting myocardial infarction would not be eligible for intensive lipid-lowering based on clinical algorithms or plasma C-reactive protein. Atherosclerosis. 2011;214(1):148-50. não encontraram boa sensibilidade da PCR sérica para detecção de inflamação nos pacientes com infarto agudo do miocárdio com elevação do segmento ST, chegando a ter um valor de <1,0 mg/L em 70% desses pacientes.

A PCR, apesar de ser um marcador inflamatório estabelecido desde 19302323 Tillett WS, Francis TJ. Serological reactions in pneumonia with a non-protein somatic fraction of Pneumococcus. J Exp Med. 1930;52(4):561-71., parece ser também inespecífica, embora o fato de ser inespecífica não diminua sua importância1515 Pepys MB, Hirschfield GM. C-reactive protein: a critical update. J Clin Invest. 2003;111(12):1805-12.. Porém, os níveis de PCR devem ser sempre utilizados e interpretados com base nos dados clínicos dos pacientes, tal qual a temperatura, um parâmetro igualmente inespecífico, mas de grande utilidade clínica1515 Pepys MB, Hirschfield GM. C-reactive protein: a critical update. J Clin Invest. 2003;111(12):1805-12..

Existem fatores que poderiam estar associados ao processo inflamatório, e este pode ser medido de várias formas. Uma delas é a mudança de temperatura na placa aterosclerótica ou árvore coronária/miocárdio2424 Toutouzas K, Drakopoulou M, Markou V, Karabelas I, Vaina S, Vavuranakis M, et al. Correlation of systemic inflammation with local inflammatory activity in non-culprit lesions: beneficial effect of statins. Int J Cardiol. 2007;119(3):368-73.

25 Toutouzas K, Drakopoulou M, Mitropoulos J, Tsiamis E, Vaina S, Vavuranakis M, et al. Elevated plaque temperature in non-culprit atheromatous lesions of patients with acute coronary syndromes. J Am Coll Cardiol. 2006;47(2):301-6.
-2626 Toutouzas K, Drakopoulou M, Markou V, Stougianos P, Tsiames E, Tousoulis D et al. Increased coronary sinus blood temperature: correlation with systemic inflammation. Eur J Clin Invest. 2006;36(4):218-23., que poderia interferir nos níveis de PCR-as. Nós não aferimos a temperatura, mas esperava-se que a inflamação trouxesse repercussão nos níveis de PCR-as no SC2626 Toutouzas K, Drakopoulou M, Markou V, Stougianos P, Tsiames E, Tousoulis D et al. Increased coronary sinus blood temperature: correlation with systemic inflammation. Eur J Clin Invest. 2006;36(4):218-23., uma constatação observada em nosso estudo.

De acordo com Buffon e cols.2727 Buffon A, Biasucci LM, Liuzzo G, D'Onofrio G, Crea F, Maseri A. Widespread coronary inflammation in unstable angina. N Engl J Med. 2002;347(1):5-12., há inflamação coronária generalizada envolvendo o endotélio de diferentes artérias coronárias, independentemente da localização da placa. Por outro lado, é muito importante lembrar que um terço do fluxo do SC se dá a partir da veia posterior, drenando o sangue da artéria coronária direita (ACD)2828 Ganz W, Tamura K, Marcus HS, Donoso R, Yoshida S, Swan HJ. Measurement of coronary sinus blood flow by continuous thermodilution in man. Circulation. 1971;44(2):181-95.. Em nosso estudo tivemos apenas cinco pacientes (três com AE e dois com AI) com estenose isolada em ACD. Assim, a influência do fluxo de ACD no SC foi muito fraca.

Este estudo, ao que se sabe, é o primeiro da literatura que analisou a correlação entre os níveis de PCR-as (valores absolutos) em VPAE versus SC nos pacientes portadores de DAC sintomática com AE e AI.

Para responder à pergunta principal do objetivo do presente estudo, realizou-se análise de correlação entre os níveis de PCR-as em VPAE versus SC na AE e na AI, e determinou-se o coeficiente de correlação de Pearson. Os dados dessa análise mostraram forte correlação linear, quase correlação perfeita entre esses níveis, claramente evidenciada pela linha de regressão linear, onde o coeficiente de correlação foi significativo e próximo da unidade (Figuras 2A e 2B).

Com base na análise de toda a amostra (40 pacientes com DAC e angina pectoris), os nossos dados sugeriram que manteve-se a forte correlação evidenciada separadamente nos pacientes com AE e AI (Figura 2C). Esse fato chamou a nossa atenção porque, se o aumento da temperatura local está associado ao processo inflamatório, e esse processo está relacionado com o aumento da PCR-as, por que no sangue periférico (VPAE) os valores de PCR-as se mantiveram no mesmo nível que no SC? A meia-vida da PCR no plasma é de 19 horas7Paffen E, DeMaat MP. C-reactive protein in atherosclerosis: a causal factor? Cardiovasc Res. 2006;71(1):30-9.. Tendo-se em conta que o fluxo coronário é da ordem de 5% do débito cardíaco, mesmo em repouso o incremento adicional da PCR extra‑hepática à circulação coronária durante os poucos minutos de trânsito coronário deve ser insignificante.

Wang e cols.2929 Wang Y, Li L, Tan HW, Yu GS, Ma ZY, Zhao YX, et al. Transcoronary concentration gradient of sCD40L and hs-CRP in patients with coronary heart disease. Clin Cardiol. 2007;30(2):86-91. "compararam os gradientes dos níveis de PCR-as entre SC−raiz da aorta e veia periférica−raiz da aorta", em pacientes com DAC aguda e crônica (AE e AI). Nessa comparação relatam que não há diferença em tais gradientes de PCR-as entre as circulações coronária e sistêmica. Mas as limitações reconhecidas em seu estudo podem ter prejudicado as análises sobre AI, porque eles não excluíram infarto agudo do miocárdio sem elevação do segmento ST por meio da dosagem de troponina, o que pode ser um fator de aumento nos níveis de PCR-as3030 Cusack MR, Marber MS, Lambiase PD, Bucknall CA, Redwood SR. Systemic inflammation in unstable angina is the result of myocardial necrosis. J Am Coll Cardiol. 2002;39(12):1917-23..

Com os dados do nosso estudo, ao contrário de outros autores2929 Wang Y, Li L, Tan HW, Yu GS, Ma ZY, Zhao YX, et al. Transcoronary concentration gradient of sCD40L and hs-CRP in patients with coronary heart disease. Clin Cardiol. 2007;30(2):86-91.,3131 Jaumdally R, Varma C, Macfadyen RJ, Lip GY. Coronary sinus blood sampling: an insight into local cardiac pathophysiology and treatment? Eur Heart J. 2007;28(8):929-40., constatou-se que os níveis de PCR-as na VPAE refletiram os níveis no SC, portanto na circulação coronária.

Esse fato poderia ter implicações futuras em clínica e pesquisa, de modo a evitar técnicas invasivas para coleta de amostras de sangue no SC, até o momento considerado o lugar ideal para estudos de marcadores inflamatórios e circulação coronária3131 Jaumdally R, Varma C, Macfadyen RJ, Lip GY. Coronary sinus blood sampling: an insight into local cardiac pathophysiology and treatment? Eur Heart J. 2007;28(8):929-40., porque o presente estudo sugeriu que os níveis de PCR-as encontrados na VPAE e no SC foram semelhantes e apresentaram forte correlação linear.

Um fato interessante é que, com os dados do presente estudo, é possível calcular por meio de três fórmulas o nível de PCR-as no SC a partir dos dados de uma VPAE, na AE, na AI e em toda a amostra, sem separação entre AE e AI.

Reconhecemos as limitações do nosso estudo e sua aplicabilidade clínica para grande universo de pacientes, devido ao grande número de critérios de exclusão, tendo os pacientes sido encaminhados por seus médicos para a angiografia coronária com 100% de suspeita de DAC ou DAC conhecida, com 100% dos pacientes tendo recebido pelo menos uma dose de estatina na véspera do exame. Esses fatos podem ter contribuído para subestimar os reais níveis de PCR-as, interferindo nas considerações a respeito dos valores absolutos de tais níveis, mas não na correlação entre esses níveis em VPAE versus SC, objetivo principal deste estudo.

Conclusão

Os nossos dados sugeriram que, nos pacientes portadores de DAC com diagnóstico de AE ou AI, os níveis séricos de PCR-as na VPAE versus SC apresentaram forte correlação linear.

  • Fontes de financiamento
    O presente estudo foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp, protocolo n.º 2010/09072-6). O autor recebeu uma bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (Capes).
  • Vinculação acadêmica
    Este estudo é parte da tese de Doutorado de Weverton Ferreira Leite pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Referencias

  • 1
    Ridker PM, Rifai N, Rose L, Buring JE, Cook NR. Comparison of C-reactive protein and low-density lipoprotein cholesterol levels in the prediction of first cardiovascular events. N Engl J Med. 2002;347(20):1557-65.
  • 2
    Ridker PM. Clinical application of C-reactive protein for cardiovascular disease detection and prevention. Circulation. 2003;107(3):363-9.
  • 3
    Fujita Y, Kakino A, Nishimichi N, Yamaguchi S, Sato Y, Machida S, et al. Oxidized LDL receptor LOX-1 binds to C-reactive protein and mediates its vascular effects. Clin Chem. 2009;55(2):285-94.
  • 4
    Venugopal SK, Devaraj S, Yuhanna I, Shaul P, Jialal I. Demonstration that C-reactive protein decreases eNOS expression and bioactivity in human aortic endothelial cells. Circulation. 2002;106(12):1439-41.
  • 5
    Pasceri V, Willerson JT, Yeh ET. Direct proinflammatory effect of C-reactive protein on human endothelial cells. Circulation. 2000;102(18):2165-8.
  • 06
    Fay WP. Linking inflammation and thrombosis: role of C-reactive protein. World J Cardiol. 2010;2(11):365-9.
  • 7
    Paffen E, DeMaat MP. C-reactive protein in atherosclerosis: a causal factor? Cardiovasc Res. 2006;71(1):30-9.
  • 8
    Inoue T, Kato T, Uchida T, Sakuma M, Nakajima A, Shibazaki M, et al. Local release of C-reactive protein from vulnerable plaque or coronary arterial wall injured by stenting. J Am Coll Cardiol. 2005;46(2):239-45.
  • 9
    Ridker PM, Cushman M, Stampfer MJ, Tracy RP, Hennekens CH. Inflammation, aspirin, and the risk of cardiovascular disease in apparently healthy men. N Engl J Med. 1997;336(14):973-9.
  • 10
    Ridker PM, Hennekens CH, Buring JE, Rifai N. C-reactive protein and other markers of inflammation in the prediction of cardiovascular disease in women. N Engl J Med. 2000;342(12):836-43.
  • 11
    Pearson c, Mensah GA, Alexander RW, Anderson JL, Cannon RO, Criqui M, et al. Markers of inflammation and cardiovascular disease: Application to clinical and public health practice. A statement for healthcare professionals from the Centers for Disease Control and Prevention and the American Heart Association. Circulation. 2003;107(3):499-511.
  • 12
    Kaptoge S, Di Angelantonio E, Pennells L, Wood AM, White IR, Gao P, et al. C-reactive protein, fibrinogen, and cardiovascular diseases prediction. N Engl J Med. 2012;367(14):1310-20.
  • 13
    Danesh J, Wheeler JG, Hirschfield GM, Eda S, Eiriksdottir G, Rumley A, et al. C-reactive protein and other circulating markers of inflammation in the prediction of coronary heart disease. N Engl J Med. 2004;350(14):1387-97.
  • 14
    Lloyd-Jones DM, Liu K, Tian L, Greenland P. Narrative review: Assessment of C-reactive protein in risk prediction for cardiovascular disease. Ann Intern Med. 2006;145(1):35-42.
  • 15
    Pepys MB, Hirschfield GM. C-reactive protein: a critical update. J Clin Invest. 2003;111(12):1805-12.
  • 16
    Wilson AM, Swan JD, Ding H, Zhang Y, Whitbourn RJ, Gurry J, et al. Widespread vascular production of C-reactive protein (CRP) and a relationship between serum CRP, plaque CRP and intimal hypertrophy. Atherosclerosis. 2007;191(1):175-81.
  • 17
    Calabró P, Willerson JT, Yeh ET. Inflammatory cytokines stimulated C-reactive protein production by human coronary artery smooth muscle cells. Circulation. 2003;108(16):1930-2.
  • 18
    Fihn SD, Gardin JM, Abrams J, Berra K, Blankenship JC, Dallas AP, et al. 2012 ACCF/AHA/ACP/AATS/PCNA/SCAI/STS guideline for the diagnosis and management of patients with stable ischemic heart disease: a report of the American College of Cardiology Foundation/American Heart Association task force on practice guidelines, and the American College of Physicians, American Association for Thoracic Surgery, Preventive Cardiovascular Nurses Association, Society for Cardiovascular Angiography and Interventions, and Society of Thoracic Surgeons. Circulation. 2012;126(25):e354-471.
  • 19
    Nicolau JC, Timerman A, Piegas LS, Marin-Neto JA, Rassi Jr A. Guidelines for unstable angina and non-ST segment elevation myocardial infarction of the Brazilian Society of Cardiology (II Edition, 2007). Arq Bras Cardiol. 2007;89(4):e89-131.
  • 20
    Hansson GK, Libby P. The immune response in atherosclerosis: a double‑edged sword. Nat Rev Immunol. 2006;6(7):508-19.
  • 21
    Rocha VZ, Libby P. Obesity, inflammation and atherosclerosis. Nat Rev Cardiol. 2009;6(6):399-409.
  • 22
    Sposito AC, Alvarenga BF, Alexandre AS, Araujo AL, Santos SN, Andrade JM, et al. Most of the patients presenting myocardial infarction would not be eligible for intensive lipid-lowering based on clinical algorithms or plasma C-reactive protein. Atherosclerosis. 2011;214(1):148-50.
  • 23
    Tillett WS, Francis TJ. Serological reactions in pneumonia with a non-protein somatic fraction of Pneumococcus. J Exp Med. 1930;52(4):561-71.
  • 24
    Toutouzas K, Drakopoulou M, Markou V, Karabelas I, Vaina S, Vavuranakis M, et al. Correlation of systemic inflammation with local inflammatory activity in non-culprit lesions: beneficial effect of statins. Int J Cardiol. 2007;119(3):368-73.
  • 25
    Toutouzas K, Drakopoulou M, Mitropoulos J, Tsiamis E, Vaina S, Vavuranakis M, et al. Elevated plaque temperature in non-culprit atheromatous lesions of patients with acute coronary syndromes. J Am Coll Cardiol. 2006;47(2):301-6.
  • 26
    Toutouzas K, Drakopoulou M, Markou V, Stougianos P, Tsiames E, Tousoulis D et al. Increased coronary sinus blood temperature: correlation with systemic inflammation. Eur J Clin Invest. 2006;36(4):218-23.
  • 27
    Buffon A, Biasucci LM, Liuzzo G, D'Onofrio G, Crea F, Maseri A. Widespread coronary inflammation in unstable angina. N Engl J Med. 2002;347(1):5-12.
  • 28
    Ganz W, Tamura K, Marcus HS, Donoso R, Yoshida S, Swan HJ. Measurement of coronary sinus blood flow by continuous thermodilution in man. Circulation. 1971;44(2):181-95.
  • 29
    Wang Y, Li L, Tan HW, Yu GS, Ma ZY, Zhao YX, et al. Transcoronary concentration gradient of sCD40L and hs-CRP in patients with coronary heart disease. Clin Cardiol. 2007;30(2):86-91.
  • 30
    Cusack MR, Marber MS, Lambiase PD, Bucknall CA, Redwood SR. Systemic inflammation in unstable angina is the result of myocardial necrosis. J Am Coll Cardiol. 2002;39(12):1917-23.
  • 31
    Jaumdally R, Varma C, Macfadyen RJ, Lip GY. Coronary sinus blood sampling: an insight into local cardiac pathophysiology and treatment? Eur Heart J. 2007;28(8):929-40.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2014
  • Data do Fascículo
    Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2014
  • Revisado
    19 Set 2014
  • Aceito
    30 Set 2014
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br