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Infarto Agudo do Miocárdio e Disfunção Importante de Prótese Aórtica após Procedimento de Bentall

Infarto do Miocárdio; Deiscência do Óstio de Coronária; Procedimento de Bentall; Disfunção de Prótese Valvar Aórtica

Introdução

A deiscência anastomótica da artéria coronária é uma complicação rara que pode ocorrer após procedimentos aórticos. Neste relato de caso, um paciente de 59 anos foi submetido à uma substituição da aorta ascendente e da valva aórtica após diagnóstico de aneurisma da aorta ascendente e insuficiência aórtica secundária de grau importante. Oito anos após o procedimento, o paciente apresentou infarto agudo do miocárdio devido à deiscência das artérias coronárias diagnosticada pelo ecocardiograma transesofágico (ETE) e angiografia coronária. Esta complicação ocorre raramente após o procedimento de Bentall, geralmente no período pós-operatório precoce e associada à etiologia infecciosa. Neste paciente, a deiscência coronária resultou no infarto do miocárdio tardiamente após o procedimento cirúrgico e foi inicialmente diagnosticada após avaliação por ETE.

Relato do Caso

Um paciente do sexo masculino de 59 anos de idade apresentou dor torácica e dispnéia rapidamente progressiva há três dias da internação. Ele já havia sido submetido a um procedimento de Bentall clássico devido ao diagnóstico de aneurisma da aorta ascendente e insuficiência aórtica de grau importante.

O paciente vinha em uso regular de betabloqueadores, inibidores da ECA (enzima de conversão da angiotensina), estatinas e terapia anticoagulante oral.

Ao exame físico, a pressão arterial era de 130 × 40 mmHg, e a frequência cardíaca era de 74 bpm. Na ausculta cardíaca, observou-se um clique mecânico com sopro sistólico ejetivo e sopro diastólico de alta frequência na borda esternal esquerda irradiando em direção ao ápice. O eletrocardiograma evidenciou bloqueio do ramo esquerdo. A radiografia de tórax mostrou congestão pulmonar discreta, alargamento do mediastino, e prótese mecânica em posição aórtica. Os marcadores de necrose miocárdica estavam aumentados e a angiotomografia computadorizada de aorta torácica foi inconclusiva.

O Ecocardiograma transtorácico evidenciou disfunção sistólica moderada do ventrículo esquerdo devido à acinesia da parede anterior e região apical (FEVE estimada em 0,40; Valor normal ≥ 0,55), além de disfunção importante da prótese mecânica aórtica (insuficiência aórtica grave). O ETE evidenciou soluções de continuidade com fluxo turbulento entre o enxerto de Dacron na aorta ascendente e a aorta nativa aneurismática (Figura 1), além de confirmar a presença de insuficiência central e periprotética aórtica de grau importante.

Figura 1
Imagens de ETT que demonstram insuficiência importante da prótese valvar em posição aórtica pelo Doppler Contínuo (A) e Pulsátil (B) no corte apical cinco câmaras. Imagens de Modo M colorido da via de saída do ventrículo esquerdo (VSVE) (C) e Estudo Doppler colorido (D) evidenciando disfunção importante da prótese mecânica em posição aórtica. Imagens de ETE evidenciam soluções de continuidade entre a prótese de Dacron e aorta nativa (E e F, setas) na imagem do eixo curto (transversal). Imagem ao ETE, em 145º, para avaliação do fluxo em VSVE ao mapeamento do fluxo em cores (G e H). ETE: transesofágico. ETT: transtorácico; (AE: átrio esquerdo, VE: ventrículo esquerdo, VD: ventrículo direito, AD: átrio direito, AO: Aorta, IAo: insuficiência aórtica)

A terapia anticoagulante oral foi interrompida e o paciente recebeu dose plena de heparina de baixo peso molecular (enoxaparina). Após a normalização do INR, foi realizada uma angiocoronariografia que não indicou lesões significativas nas artérias coronárias. No décimo segundo dia após o infarto agudo do miocárdio, o paciente foi submetido a um procedimento de Cabrol (Figura 2A), e a inspeção intra-operatória indicou a desconexão dos óstios esquerdo e direito das artérias coronárias a partir do enxerto, além de insuficiência periprotética de grau importante.

Figura 2
A) Aspecto pós-operatório após o procedimento Cabrol. B) Secção histológia de um fragmento da aorta removido durante a cirurgia, que mostra fibrose na adventícia (setas) e infiltrado inflamatório mononuclear muito discreto (hematoxilina e eosina)

O paciente recebeu alta hospitalar no décimo quarto dia pós-operatório sem intercorrências.

Discussão

A deiscência anastomótica dos óstios coronários é uma complicação rara que pode ocorrer após procedimentos aórticos1Haddy SM. Aortic pseudoaneurysm after Bentall procedure. J Cardiothorac Vasc Anesth. 1999;13(2):203-6.

Shinohara K, Ishikura F, Tanaka N, Asaoka N, Nakasone I, Masuda Y, et al. Diagnosis of coronary artery dehiscence and pseudoaneurysm after modified Bentall operation by Doppler color flow imaging: a case report. J Cardiol. 1994; 24(6):475-9.

Barbetseas J, Crawford ES, Safi HJ, Coselli JS, Quinones MA, Zoghbi WA. Doppler echocardiographic evaluation of pseudoaneurysms complicating composite grafts of the ascending aorta. Circulation. 1992; 85(1):212-22.

Cujec B, Bharadwaj B, Chait P, Hayton R.Dehiscence of the proximal anastomosis of aortocoronary bypass graft. Am Heart J. 1990; 120(5): 1217-20.

Rice MJ, McDonald RW, Reller MD. Diagnosis of coronary artery dehiscence and pseudoaneurysm formation in postoperative Marfan patient by color flow Doppler echocardiography. J Clin Ultrasound . 1989; 17(5):359-65.
- 6Monney P, Pellaton C, Qanadli SD, Jeanrenaud X. Aortic pseudo-aneurysm caused by complete dehiscence of the left coronary artery 7 years after a composite mechanical-valved conduit aortic root replacement (Bentall operation). Eur Heart J. 2012; 33(1):60.. A infecção de linhas de sutura no enxerto da veia aortocoronária é a causa mais comum desta complicação, e alguns casos podem estar relacionados à infecção superficial precoce de ferida operatória por Staphylococcus aureus. Neste caso, o paciente apresentou características clínicas tardias vários anos após o procedimento cirúrgico, e o exame anatomopatológico7Smith P, Qureshi S, Yacoub MH. Dehiscence of infected aortocoronary vein graft suture lines. Cause of late pseudoaneurysm of ascending aorta. Br Heart J.1983;50(2):193-5. , 8Douglas BP, Bulkley BH, Hutchins GM. Infected saphenous vein coronary artery bypass graft with mycotic aneurysm. Fatal dehiscence of the proximal anastomosis. Chest. 1979;75(1):76-7. não revelou nenhum sinal de infecção na aorta ou na prótese de Dacron (Figura 2B).

A deiscência anastomótica dos óstios coronários também pode ocorrer com mais frequência em pacientes com doenças do tecido conjuntivo ou outras aortopatias geneticamente definidas como a síndrome de Marfan. Nestes pacientes, a recorrência de manifestações cardiovasculares fatais é frequente. Outros fatores relacionados a deiscência do enxerto coronário estão relacionados aos aspectos clínicos durante o procedimento de Bentall, tais como aumento da hemorragia ou dificuldade de hemostasia, desta forma limitando o restabelecimento do fluxo coronário, que é um objetivo fundamental destes procedimentos utilizando enxertos valvares compostos tais como Bentall-De Bono.

Neste relato de caso, o paciente teve uma evolução normal após o procedimento de Bentall clássico. É possível que uma infecção precoce após o primeiro procedimento possa ter apresentado manifestações subclínicas associadas a discreto vazamento periprotético. Aspectos técnicos poderiam ainda ter contribuído para a formação de deiscência. Discretos vazamentos podem progredir ao longo dos anos e evoluir tardiamente após a cirurgia com a formação de pseudo-aneurismas e outras características clínicas variáveis, dependendo do local da deiscência da aorta e do envolvimento das estruturas vizinhas.

Neste paciente, a deiscência dos óstios coronários foi diagnosticada devido a um infarto agudo do miocárdio secundário ao fluxo coronário inadequado resultante da deiscência do enxerto, uma vez que que a possibilidade de doença arterial coronariana aterosclerótica foi excluída através da angiografia coronária.

A técnica clássica de Bentall empregada no primeiro procedimento tem a vantagem de cobrir o enxerto utilizando o tecido aórtico remanescente e a proteção imediata contra sangramento durante o período perioperatório, mas apresenta como desvantagem a possibilidade de formação de pseudo-aneurismas. Por esta razão, atualmente o procedimento de Bentall modificado é a operação mais utilizada para a reconstrução da raiz da aorta com tubo protético valvado. A angiotomografia de aorta pode ser útil no diagnóstico desta complicação9Ceviz M, Becit N, Gündogdu F, Unlü Y, Kantarci M. Pseudoaneurysm of the left coronary ostial anastomoses as a complication of the modified Bentall procedure diagnosed by echocardiography and multislice computed tomography. Heart Surg Forum. 2007;10(3):E191-2., mas, neste paciente, a angioTC foi inconclusiva. O ETE indicou soluções de continuidade no enxerto de Dacron posicionado na aorta ascendente, levantando a suspeita de deiscência dos óstios coronários, que foi confirmada através dos resultados intra-operatórios. O paciente foi submetido a um procedimento de Cabrol (Figura 2A) sem complicações.

Até o momento, há poucos casos relatados na literatura de deiscência completa das artérias coronárias após um procedimento de Bentall com apresentação clínica como infarto agudo do miocárdio. Além disso, neste caso, como particularidades, não houve evidências de infecção e o paciente apresentou boa evolução clínica após o tratamento cirúrgico apesar da alta gravidade do quadro.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2014
  • Revisado
    23 Jul 2014
  • Aceito
    28 Jul 2014
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