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Infarto do Miocárdio Anterior Extenso... e Algo Mais?

Palavras-chave
Infarto do Miocárdio/fisiopatologia; Onda P; Diagnóstico por Imagem; Arritmias Cardíacas; Fatores de Risco; Intervenção Coronária Percutânea; Stents Farmacológicos

Relato de caso

Paciente do sexo feminino, caucasiana, 64 anos, com história de angina há uma semana. A paciente foi internada 2 horas após início de dor retroesternal opressiva em repouso.

Fatores de risco: hipertensão, fumante, dislipidemia e diabetes.

A Figura 1 apresenta resultados de eletrocardiografia/vetorcardiograma (ECG/VCG) na admissão.

Figura 1
Correlação dos achados eletrocardiográficos e do vetorcardiograma. A) diagnóstico pela ECG: aumento do AE (índice de Morris positivo), depressão do segmento PR nas derivações I, II, III e aVF,QRS com baixa voltagem nas derivações periféricas (a amplitude de todos os complexos QRS nessas derivações foi < 5 mm). O padrão QS de V1 a V5, e baixa voltagem R na derivação V6. Elevação do segmento ST convexa para cima. B) Diagnóstico vetorcardiográfico: combinação do infarto anterior anteroseptal e anterolateral: alça do QRS direcionada para trás e levemente para a esquerda próximo à derivação ortogonal Z. Alça T direcionada para a frente com amplo ângulo QRS/T (≈+170°). Conclusão: infarto agudo do miocárdio anterior extenso. Possível associação com infarto atrial.

Ecocardiograma: câmara ventricular e câmara atrial de tamanhos normais. Átrio esquerdo (AE): 30 mm; redução leve a moderada na fração de ejeção ventricular = 41% por acinesia anterior.

Indicou-se intervenção coronária percutânea, com implante de dois stents farmacológicos.

Introdução

O infarto atrial (IA) é uma condição raramente diagnosticada em vida dados os achados eletrocardiográficos caracteristicamente sutis e inespecíficos. O IA ocorre em 0,7-52% dos infartos do miocárdio com elevação do segmento ST. Sua incidência em autópsia tem sido amplamente variável (0,7-42%), sendo observada uma incidência de 17% em uma ampla série de 182 pacientes.11 Lazar EJ, Goldberger J, Peled H, Sherman M, Frishman WH. Atrial infarction: diagnosis and management. Am Heart J. 1988;116(4):1058-63. Embora o dano isquêmico ao miocárdio atrial esteja geralmente associado a infarto dos ventrículos, o IA também pode ocorrer de maneira isolada.22 Cunningham KS, Chan KL, Veinot JP. Pathology of isolated atrial infarction: case report and review of the literature. Cardiovasc Pathol. 2008;17(3):183-5.

Padrões da ECG do IA

Os padrões do IA na ECG são geralmente sutis devido à espessura mais fina das paredes dos átrios, incapazes de gerar voltagem suficiente para ser detectada na ECG. Essa voltagem atrial é geralmente ofuscada pela despolarização dos ventrículos maiores. Apesar de vários padrões eletrocardiográficos do IA terem sido descritos, nenhum foi validado por estudos prospectivos. A primeira descrição do “infarctus auriculares” foi feita 93 anos atrás por Cler.33 Cler ALR. Infarctus auricularis: Tachyarrhythmie terminale. Bull Med Soc Hop Paris. 1925;41:1603-7. Vinte e dois anos depois, Langendorf relatou um caso de IA identificado na autópsia que, em retrospecto, poderia ter sido reconhecido em vida a partir das alterações na ECG.44 Langendorf R. Elektrokardiogram bei vorhof-infarkt. Acta Med Stand. 1939;100:136-49. Hellerstein relatou o primeiro caso com o diagnóstico ante mortem de IA confirmado por necropsia.55 Hellerstein HK. Atrial infarction with diagnostic electrocardiographic findings. Am Heart J. 1948;36(3):422-30.

Outras causas potenciais para anormalidades morfológicas de onda P e deslocamentos do segmento PR além do IA foram descritas - estimulação simpática aumentada, pericardite, aumento atrial, e bloqueio interatrial.66 Tranchesi J, Adelardi V, de OJ. Atrial repolarization-its importance in clinical electrocardiography. Circulation. 1960 Oct;22:635-44. A atividade simpática aumentada produz um segmento PR descendente, depressão do ponto J e segmento ST ascendente, e desvios dos segmentos PR e ST concordantes. A pericardite pode causar alterações eletrocardiográficas se a inflamação envolver o pericárdio ou o pericárdio visceral, uma vez que o pericárdio parietal é eletricamente inerte.

Critérios eletrocardiográficos aceitos para IA são os propostos por Liu et al.:77 Liu CK, Greenspan G, Piccirillo RT. Atrial infarction of the heart. Circulation. 1961 Mar;23:331-8.

a) IA maior:

  • Elevação do segmento PR > 0,5 mm nas derivações V3 e V6 com depressão recíproca de pequena amplitude nas derivações V1 e V2;

  • Elevação do segmento PR > 0,5 mm na derivação I com depressões recíprocas nas derivações II-III;

  • Depressão do segmento PR > 1,5 mm nas derivações precordiais, com depressões de 1,2 mm em I, II e III, associada com arritmia atrial.

b) IA menor:

  • Onda P em forma de M, forma de W ou bífida (entalhada); depressão do segmento PR de pequena amplitude sem elevação desse segmento em outras derivações não pode ser considerada, por si só, evidência positiva de IA.

  • Pacientes com infarto agudo do miocárdio com qualquer forma de arritmias supraventriculares, tais como fibrilação atrial, flutter atrial, taquicardia atrial, marcapasso atrial migratório e bloqueios atrioventriculares.88 Lu ML, De Venecia T, Patnaik S, Figueredo VM. Atrial myocardial infarction: A tale of the forgotten chamber. Int J Cardiol. 2016 Jan 1;202:904-9.

Em relação à localização do IA, evidências na literatura são limitadas e conflitantes. A frequência de envolvimento do átrio direito (AD) é cinco vezes maior que a do AE.11 Lazar EJ, Goldberger J, Peled H, Sherman M, Frishman WH. Atrial infarction: diagnosis and management. Am Heart J. 1988;116(4):1058-63. As principais complicações do IA são: arritmias supraventriculares, ruptura atrial, choque cardiogênico e fenômenos tromboembólicos no cérebro ou pulmões. Atualmente, os critérios diagnósticos incluem onda P com formato característico, eventualmente síndrome de Bayés - bloqueio interatrial total na região de Bachman, associado com arritmias supraventriculares).99 Bernal E, Bayes-Genis A, Ariza-Sole A, Formiga F, Vidan MT, Escobar-Robledo LA, et al. Interatrial block, frailty and prognosis in elderly patients with myocardial infarction. J Electrocardiol. 2018;51(1):1-7. Teoricamente, deslocamentos do segmento PR deveriam se correlacionar com à localização do IA, do mesmo modo que deslocamentos do segmento ST no infarto ventricular. Assim, o envolvimento da parede laterobasal (anteriormente parede dorsal), que correspondente ao AE, resultará na elevação do segmento PR nas derivações II e III com recíproca depressão na derivação I.55 Hellerstein HK. Atrial infarction with diagnostic electrocardiographic findings. Am Heart J. 1948;36(3):422-30. Do mesmo modo, o envolvimento da parede anterior ou anterolateral, que corresponde ao AE, resultará na elevação do segmento PR na derivação I com depressão nas derivações II, III e derivações precordiais anteriores V2-V4.77 Liu CK, Greenspan G, Piccirillo RT. Atrial infarction of the heart. Circulation. 1961 Mar;23:331-8. Contudo, não existem critérios universalmente aceitos.

Discussão

Análise detalhada da ECG revelou deslocamento do segmento PR em várias derivações. A fim de esclarecer tal dúvida, nós isolamos a alça P por VCG e aumentamos seu tamanho em 32 vezes. Encontramos que a alça P, pelo VCG, preencheu os critérios de aumento biatrial (formato de um Erlenmeyer) (Figura 2) com fendas na porção central da alça, confirmando a suspeita do IA associado. A aparente contradição de uma anormalidade atrial no VCG em conjunto com átrios aparentemente normais na ECG poderia ser explicada pelo fato de que o ecocardiograma não é o melhor método para avaliar o tamanho do AE e do ventrículo, particularmente na ausência de aumento concomitante do ventrículo direito. Assim, um aumento no AE poderia passar despercebido. Por outro lado, a dilatação no AE é de certa forma esperada em situações de infarto anterior extenso, com aumento na pressão diastólica final. No entanto, em fases iniciais após infarto do miocárdio, o tamanho do átrio ainda pode ser normal, embora o VCG mostre uma alça P anormal; a Figura 2 mostra uma comparação dessa alça P com uma alça P normal em três planos neste caso de IA com aumento biatrial.

Figura 2
Comparação entre alças P normais e o presente caso. Plano frontal: no presente caso, a voltagem máxima do vetor foi > 0,2 mV; morfologia ampla e uma fenda na parte medial (setas). Plano sagital direito: as força máximas anteriores foram ≥0,06 mV e as posteriores foram > 0,04 mV: aumento biatrial. Plano horizontal: o vetor máximo da alça P normal encontra-se localizado entre +50° e -45°; voltagem máxima no vetor foi < 0,1 mV, forças máximas anteriores < 0,06 mV e forças máximas posteriores < 0,04 mV. No presente caso, as forças anteriores e posteriores excedem esses valores. Conclusão: aumento biatrial e suspeita de infarto atrial pela presença de alça P bífida no plano frontal e no plano sagital direito. AD: átrio direito; AE: átrio esquerdo.

O papel da perfusão coronária atrial não é completamente compreendido. Uma das principais limitações para seu entendimento é o fato de que a origem da irrigação coronariana no AE é desconhecida.1010 Saremi F, Abolhoda A, Ashikyan O, Milliken JC, Narula J, Gurudevan SV, et al. Arterial supply to sinuatrial and atrioventricular nodes: imaging with multidetector CT. Radiology. 2008;246(1):99-107; discussion 8-9.

Três ramos da artéria coronária que fornecem sangue para os átrios são conhecidos:

  1. A artéria atrial anterior direita ou artéria do nó sinoatrial, e outros pequenos ramos que se original da artéria coronária direita, tal como a artéria atrial intermediária direita.

  2. O ramutis ostii cavae superiores ou artéria atrial anterior esquerda que se origina na artéria coronária esquerda principal, na porção proximal da artéria circunflexa, artéria marginal obtusa, ou artérias coronárias diagonais.1111 Ariyarajah V, Fernandes J, Apiyasawat S, Spodick DH. Angiographic localization of potential culprit coronary arteries in patients with interatrial block following a positive exercise tolerance test. Am J Cardiol. 2007;99(1):58-61. No presente caso, a obstrução da artéria coronária ocorreu na porção proximal da artéria descendente anterior esquerda e, consequentemente, nas artérias diagonais que irrigam o AE, causando IA na estrutura.

3. Os ramos da artéria circunflexa que irrigam o AE.1212 Yamazaki M, Morgenstern S, Klos M, Campbell K, Buerkel D, Kalifa J. Left atrial coronary perfusion territories in isolated sheep hearts: implications for atrial fibrillation maintenance. Heart Rhythm. 2010;7(10):1501-8.

Conclusão

Apesar de o IA ter sido descrito pela primeira vez há 89 anos, sua identificação continua elusiva. A suspeita de IA deveria existir em todos os pacientes que apresentem dor torácica típica, níveis elevados de biomarcadores cardíacos, e alterações na ECG consistentes com IA: desvios do segmento PR (elevação ou depressão), presença de onda P com formato anormal (em forma de M, W, forma irregular ou bífida) e/ou presença de taquiarritmias supraventriculares. A análise da alça P pelo VCG parece ser uma ferramenta diagnóstica valiosa.

  • Fontes de financiamento
    O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
  • Vinculação acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    Jun 2019

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2018
  • Revisado
    20 Set 2018
  • Aceito
    02 Out 2018
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