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Capacidade preditiva de escores de gravidade e desfechos para mortalidade em receptores de transplante renal com COVID-2019 admitidos em unidade de terapia intensiva: resultados de um estudo de coorte brasileiro de um único centro

RESUMO

Introdução:

a capacidade preditiva dos escores de gravidade para mortalidade em pacientes admitidos em unidades de terapia intensiva não é bem conhecida entre pacientes transplantados renais (TR), especialmente aqueles diagnosticados com doença coronavírus 2019 (COVID-19). Este estudo avaliou a capacidade preditiva dos escores de gravidade para mortalidade em receptores de TR.

Métodos:

Foram inscritos 51 receptores de TR diagnosticados com COVID-19. O desempenho das ferramentas SOFA, SAPS 3, APACHE IV em predizer mortalidade após COVID-19 foi comparado pela área sob a curva ROC (AUC-ROC) e realizou-se análise de regressão univariada de Cox.

Resultados:

A incidência cumulativa de óbito em 90 dias foi 63,4%. Somente APACHE IV diferiu entre sobreviventes e não-sobreviventes: 91,2±18,3 vs. 106,5±26,3; P = 0,03. A AUC-ROC do APACHE IV para predizer óbito foi 0,706 (P = 0,04) e 0,656 (P = 0,06) aos 7 e 90 dias, respectivamente. Receber rim de doador falecido (HR = 3,16; P = 0,03), níveis de troponina na admissão (HR para cada ng/mL = 1,001; P = 0,03), escore APACHE IV (HR para cada 1 ponto = 1,02; P = 0,01), necessidade de ventilação mecânica (VM) (HR = 3,04; P = 0,002), uso de vasopressor no primeiro dia após admissão na UTI (HR = 3,85; P < 0,001) foram associados à mortalidade em 90 dias na análise univariada.

Conclusão:

Receptores de TR apresentaram alta mortalidade, associada ao tipo de doador, níveis de troponina, uso precoce de vasopressores e necessidade de VM. Os outros escores tradicionais de gravidade investigados não puderam predizer mortalidade.

Descritores:
Receptores de Transplante de Rim; COVID-19; Unidades de Terapia Intensiva; Estado Terminal; Escala de Gravidade do Ferimento

Abstract

Background:

the predictive ability of severity scores for mortality in patients admitted to intensive care units is not well-known among kidney transplanted (KT) patients, especially those diagnosed with coronavirus disease 2019 (COVID-19). The purpose of the present study was to evaluate the predictive ability of severity scores for mortality in KT recipients.

Methods:

51 KT recipients with COVID-19 diagnosis were enrolled. The performance of the SOFA, SAPS 3, and APACHE IV tools in predicting mortality after COVID-19 was compared by the area under the ROC curve (AUC-ROC) and univariate Cox regression analysis was performed.

Results:

The 90-day cumulative incidence of death was 63.4%. Only APACHE IV score differed between survivors and nonsurvivors: 91.2±18.3 vs. 106.5±26.3, P = 0.03. The AUC- ROC of APACHE IV for predicting death was 0.706 (P = 0.04) and 0.656 (P = 0.06) at 7 and 90 days, respectively. Receiving a kidney from a deceased donor (HR = 3.16; P = 0.03), troponin levels at admission (HR for each ng/mL = 1.001; P = 0.03), APACHE IV score (HR for each 1 point = 1.02; P = 0.01), mechanical ventilation (MV) requirement (HR = 3.04; P = 0.002) and vasopressor use on the first day after ICU admission (HR = 3.85; P < 0.001) were associated with the 90-day mortality in the univariate analysis.

Conclusion:

KT recipients had high mortality, which was associated with type of donor, troponin levels, early use of vasopressors, and MV requirement. The other traditional severity scores investigated could not predict mortality.

Keywords:
Kidney Transplant Recipients; COVID-19; Intensive Care Units; Critical Illness; Injury Severity Score

Introdução

No início de Janeiro de 2021, mais de 90 milhões de pessoas em todo o mundo haviam sido diagnosticadas com COVID-19, e quase 2 milhões tinham ido a óbito11 World Health Organization (WHO). Weekly epidemiological update - 19 January 2021 [Internet]. Geneva: WHO; 2021; [access in 2021 Feb 07]. Available from: https://www.who.int/publications/m/item/weekly-epidemiological-update---19-january-2021
https://www.who.int/publications/m/item/...
. Essa doença complexa causada pela nova síndrome respiratória aguda grave coronavírus 2 (SARS-CoV-2) é caracterizada por um amplo espectro de apresentações clínicas, variando de infecção assintomática à doença crítica22 Wu Z, McGoogan JM. Characteristics of and important lessons from the coronavirus disease 2019 (COVID-19) outbreak in China: summary of a report of 72314 cases from the Chinese center for disease control and prevention. JAMA. 2020 Apr;323(13):1239-42.. Estima-se que 50% de todos os pacientes infectados não apresentem sintomas ou apresentem uma infecção muito leve, que pode passar despercebida33 Kronbichler A, Kresse D, Yoon S, Lee KH, Effenberger M, Shin JI. Asymptomatic patients as a source of COVID-19 infections: a systematic review and meta-analysis. Int J Infect Dis. 2020 Sep;98:180-6.. Por outro lado, em alguns cenários, os pacientes podem evoluir rapidamente para uma síndrome uma síndrome respiratória aguda grave, com a maioria exigindo ventilação mecânica (VM), além de desenvolver lesão renal aguda (LRA), trombose e eventos cardiovasculares, resultando em uma permanência prolongada em unidades de terapia intensiva (UTIs) e um maior risco de mortalidade44 Guan W, Ni Z, Hu Y, Liang W, Ou C, He J, et al. Clinical characteristics of coronavirus disease 2019 in China. N Engl J Med. 2020 Apr;382(18):1708-20.. Uma pior condição clínica em pacientes com a doença do coronavírus (COVID-19) tem sido correlacionada com várias condições subjacentes, tais como idade avançada, presença de comorbidades e condição geral de imunodepressão55 Zhou F, Yu T, Du R, Fan G, Liu Y, Liu Z, et al. Clinical course and risk factors for mortality of adult inpatients with COVID-19 in Wuhan, China: a retrospective cohort study. Lancet. 2020 Mar;395(10229):1054-62.,66 Richardson S, Hirsch JS, Narasimhan M, Crawford JM, McGinn T, Davidson KW, et al. Presenting characteristics, comorbidities, and outcomes among 5700 patients hospitalized with COVID-19 in the New York City Area. JAMA. 2020 May;323(20):2052-9..

Particularmente preocupante é a imunodepressão causada pela inevitável exposição de longo prazo a drogas imunossupressoras em receptores de transplante de órgãos sólidos77 Akalin E, Azzi Y, Bartash R, Seethamraju H, Parides M, Hemmige V, et al. Covid-19 and kidney transplantation. N Engl J Med. 2020 Jun;382(25):2475-7.. Entre eles, os receptores de transplante renal (TR) são mais suscetíveis a formas graves de condições de imunodepressão em comparação a outros receptores de transplante de órgãos sólidos, considerando a sobrecarga de imunodepressão a que estão expostos. Eles também são mais propensos à presença de múltiplas comorbidades, como diabetes, hipertensão, obesidade e algum grau de comprometimento da função renal77 Akalin E, Azzi Y, Bartash R, Seethamraju H, Parides M, Hemmige V, et al. Covid-19 and kidney transplantation. N Engl J Med. 2020 Jun;382(25):2475-7.,88 Azzi Y, Parides M, Alani O, Loarte-Campos P, Bartash R, Forest S, et al. COVID-19 infection in kidney transplant recipients at the epicenter of pandemics. Kidney Int. 2020 Dec;98(6):1559-67..

Entre os muitos desafios devidos à COVID-19 nos últimos meses, um tem estimulado debates entre os profissionais de UTI, a saber, o de encontrar os melhores escores para prever desfechos desfavoráveis. As escalas tradicionais de gravidade utilizadas em pacientes internados em UTI, como a Avaliação Sequencial de Falência de Órgãos (SOFA, do inglês Sequential Organ Failure Assessment)99 Vincent JL, Moreno R, Takala J, Willatts S, Mendonça A, Bruining H, et al. The SOFA (sepsis-related organ failure assessment) score to describe organ dysfunction/failure. Intensive Care Med. 1996 Jul;22(7):707-10., o Escore Fisiológico Agudo Simplificado (SAPS, do inglês Simplified Acute Physiology Score)1010 Moreno RP, Metnitz PGH, Almeida E, Jordan B, Bauer P, Campos RA, et al. SAPS 3--From evaluation of the patient to evaluation of the intensive care unit. Part 2: Development of a prognostic model for hospital mortality at ICU admission. Intensive Care Med. 2005 Oct;31(10):1345-55., e a Avaliação da Fisiologia Aguda e Saúde Crônica (APACHE, do inglês Acute Physiology and Chronic Health Evaluation)1111 Knaus WA, Wagner DP, Draper EA, Zimmerman JE, Bergner M, Bastos PG, et al. The APACHE III prognostic system: risk prediction of hospital mortality for critically III hospitalized adults. Chest. 1991 Dec;100(6):1619-36., foram atualizadas e calibradas nas últimas décadas1212 Salluh JIF, Soares M. ICU severity of illness scores: APACHE, SAPS and MPM. Curr Opin Crit Care. 2014 Oct;20(5):557-65.. Entretanto, não está claro se elas são precisas quanto à predição de desfechos e tempo de internação em pacientes com COVID-19. A utilização desses escores pode ser um desafio adicional para populações específicas, como os receptores de TR1313 Carvalho MA, Freitas FGR, Junior HTS, Bafi AT, Machado FR, Pestana JOM. Mortality predictors in renal transplant recipients with severe sepsis and septic shock. PLoS One. 2014 Apr;9(11):e111610..

Portanto, o presente estudo piloto teve como objetivo descrever as principais características e a taxa de mortalidade entre os primeiros receptores de TR diagnosticados com COVID-19 e tratados em uma UTI especializada no atendimento de pacientes transplantados. Além disso, foi analisado o desempenho de três sistemas de escore de gravidade (SOFA, SAPS e APACHE), para prever a mortalidade em 90 dias.

Métodos

Desenho e população do estudo

Este foi um estudo piloto de coorte, retrospectivo e de um único centro que envolveu uma série de receptores de TR diagnosticados com COVID-19 e admitidos na UTI de um hospital especializado em transplantados renais: Hospital do Rim, Brasil. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa local (número de aprovação: CAAE 35321020.9.0000.8098). Os pacientes ou seus familiares assinaram um termo de consentimento para inclusão.

Foram inscritos no presente estudo os receptores de TR com mais de 18 anos de idade diagnosticados com COVID-19 entre Março e Agosto de 2020 no Hospital do Rim e admitidos na UTI. Nesse período, 57 receptores de TR foram elegíveis, mas um foi excluído pois seu teste diagnóstico não foi conclusivo, e cinco tiveram uma possível fonte de infecção após a admissão na UTI. A data final de acompanhamento foi 1º de Dezembro de 2020.

Diagnóstico da COVID-19 e tratamento de suporte

Todos os pacientes incluídos receberam um diagnóstico de COVID-19 por meio de um teste de reação em cadeia da polimerase. A abordagem local para o manejo clínico da infecção por SARS-CoV-2 incluiu a suspensão de medicamentos imunossupressores, exceto esteroides (prednisona), que foram substituídos por 0,5 mg/kg/dia de metilprednisolona, bem como 6,0 mg de dexametasona após os resultados do estudo RECOVERY1414 The RECOVERY Collaborative Group. Dexamethasone in hospitalized patients with Covid-19 — preliminary report. N Engl J Med. 2020 Jul;384:693-704. DOI: https://doi.org/10.1056/NEJMoa2021436
https://doi.org/10.1056/NEJMoa2021436...
. O uso de antibióticos foi determinado pela decisão dos médicos. Nenhum paciente foi incluído em ensaio clínico estudo clínico de intervenção em COVID-19 para COVID-19.

Fonte de dados, variáveis e desfechos

Os dados foram extraídos de fontes de dados secundários e terciários em Dezembro de 2020 e Janeiro de 2021. Os registros médicos eletrônicos foram a fonte de dados secundária, e a fonte terciária foi uma estrutura de dados construída com informações de todos os pacientes transplantados acompanhados no programa local e que foram diagnosticados com COVID-19.

Classificamos as variáveis em dois grupos principais: dados demográficos e características basais no momento da admissão na UTI. No primeiro grupo, consideramos as seguintes variáveis: idade, sexo, etnia, etiologia da doença renal crônica (DRC), tempo desde o transplante até a admissão na UTI e período do transplante (antes de 2018 ou posterior), tipo de doador (falecido ou vivo), esquema de imunossupressão e episódio recente de rejeição aguda (definido como a apresentação de um episódio até três meses antes do diagnóstico da COVID-19), taxa de filtração glomerular estimada basal (TFGe) calculada de acordo com a equação CKD-EPI1515 Levey AS, Stevens LA, Schmid CH, Zhang Y, Castro AF, Feldman HI, et al. A new equation to estimate glomerular filtration rate. Ann Intern Med. 2009 May;150(9):604-12., o índice de comorbidade de Charlson1616 Charlson ME, Pompei P, Ales KL, MacKenzie CR. A new method of classifying prognostic comorbidity in longitudinal studies: development and validation. J Chronic Dis. 1987 Jan;40(5):373-83. no momento do diagnóstico da COVID-19, e o motivo da admissão no hospital.

No segundo grupo, consideramos as seguintes variáveis no momento em que os pacientes foram admitidos em UTI até as primeiras 24 h: motivo da admissão; prescrição de antibióticos; Pontuação da Escala de Coma de Glasgow; Escores de gravidade em UTI, tais como SOFA, SAPS 3, e APACHE IV99 Vincent JL, Moreno R, Takala J, Willatts S, Mendonça A, Bruining H, et al. The SOFA (sepsis-related organ failure assessment) score to describe organ dysfunction/failure. Intensive Care Med. 1996 Jul;22(7):707-10.,1010 Moreno RP, Metnitz PGH, Almeida E, Jordan B, Bauer P, Campos RA, et al. SAPS 3--From evaluation of the patient to evaluation of the intensive care unit. Part 2: Development of a prognostic model for hospital mortality at ICU admission. Intensive Care Med. 2005 Oct;31(10):1345-55.,1717 Zimmerman JE, Kramer AA, McNair DS, Malila FM. Acute physiology and chronic health evaluation (APACHE) IV: hospital mortality assessment for today’s critically ill patients. Crit Care Med. 2006 May;34(5):1297-1310.; e alguns parâmetros laboratoriais, como gasometria arterial, níveis de hemoglobina, leucócitos e linfócitos, plaquetas, ferritina, troponina e D-dímero; e a TFGe de acordo com a equação CKD-EPI. O escore SOFA foi considerado em um período adicional, o SOFA de 24 horas foi avaliado no dia seguinte após a admissão. Além disso, o delta SOFA de 24 horas foi avaliado pelo SOFA de 24 horas - SOFA no momento da admissão. O suporte clínico analisado no primeiro dia após a admissão na UTI foi a necessidade do uso de vasopressores, de VM e de terapia renal substitutiva (TRS). Para a LRA, utilizamos a definição e classificação do KDIGO1818 Khwaja A. KDIGO clinical practice guidelines for acute kidney injury. Nephron Clin Pract. 2012;120(4):c179-84..

O desfecho primário foi óbito, calculado como a incidência acumulada de óbitos em 90 dias após a admissão na UTI. Em seguida, analisamos a taxa de mortalidade de acordo com a necessidade de VM e TRS. Por fim, comparamos a incidência acumulada de óbitos acordo com o escore de gravidade em UTI que apresentou o melhor desempenho na predição da probabilidade de óbito.

Análise Estatística

As variáveis contínuas foram resumidas como média e desvio padrão se apresentassem uma distribuição normal; caso contrário, foram apresentadas como mediana e intervalo interquartil (primeiro e terceiro IIQ). A normalidade dos dados foi avaliada com o teste de Shapiro-Wilk. Em testes de hipótese bicaudal, todas as variáveis foram comparadas por análise direta, considerando os pacientes que foram a óbito versus aqueles que sobreviveram após a admissão na UTI. As variáveis contínuas foram comparadas usando o teste t de Student ou o teste U de Mann-Whitney, em conformidade com a distribuição de normalidade, enquanto as variáveis categóricas foram comparadas usando o teste X2 ou o teste exato de Fisher, dependendo da frequência estimada em uma tabela bidirecional.

A incidência acumulada de óbitos foi estimada usando o método de Kaplan-Meier, e a comparação foi realizada usando o teste de log-rank. As taxas de mortalidade de acordo com os desfechos intermediários, como VM e TRS, foram comparadas usando o teste X2. Para avaliar o escore basal de gravidade em UTI que apresentou o melhor desempenho na predição da probabilidade de mortalidade, calculamos a área sob a curva (AUC, por sua sigla em inglês) nas curvas características de operação do receptor (ROC) com base na mortalidade em 7, 28 e 90 dias após a admissão em UTI. A análise univariada para risco de óbito hospitalar foi realizada por regressão de Cox para variáveis que apresentaram um valor de P < 0,10 (definido arbitrariamente) em uma comparação direta, excluindo a colinearidade e o escore que atingiu o melhor desempenho, e as probabilidades são apresentadas como razão de risco (HR). A abordagem de imputação múltipla foi utilizada para valores lineares ausentes. As análises estatísticas foram realizadas utilizando o SPSS versão 26 (IBM Corp., Armonk, NY, EUA), e a significância estatística foi definida como P < 0,05, com um intervalo de confiança de 95% (IC95%).

Resultados

Os dados demográficos são apresentados na Tabela 1. Os pacientes tinham 51,0 ± 11,8 anos de idade na admissão à UTI, 51% eram homens e 51% eram brancos. Os pacientes atingiram 3,0 pontos no índice de comorbidade de Charlson, e a principal causa de DRC foi hipertensão (37,3%), seguida de diabetes (27,5%). O transplante renal havia sido realizado 47,9 meses antes do diagnóstico da COVID-19, mas 41,2% tinham sido transplantados em 2018 ou antes. A maioria dos pacientes havia recebido enxerto de um doador falecido (76,5%), e o esquema de imunossupressão mais frequente recebido pelos pacientes era a combinação de tacrolimus e micofenolato (56,9%) seguido por tacrolimus e azatioprina (19,7%). Outros regimes são detalhados na Tabela 1. Poucos pacientes (5,9%) apresentaram uma rejeição aguda nos 3 meses anteriores, e sua função de enxerto basal foi de 32,9 mL/min/1,73 m2. A fonte de infecção foi a transmissão comunitária em 45 pacientes (92,1%), nos quais os motivos de internação em 63,4% deles (n = 19) foram sintomas respiratórios, seguidos por febre (12,2%, n = 5), sintomas gastrointestinais ou cardiovasculares (8,7% cada, n = 4), e outros sintomas (24,4%). O tempo entre a admissão hospitalar e a admissão em UTI foi de 2,0 (0,0; 17,0) dias, e um terço dos pacientes foram admitidos diretamente na UTI.

Tabela 1
Dados demográficos

A Tabela 2 detalha as características basais no momento da admissão em UTI. A principal razão pela qual os pacientes foram admitidos ou transferidos para a UTI foi insuficiência respiratória (72,5%), seguida de comprometimento neurológico (11,8%). Destaca-se que 90,2% estavam recebendo antibióticos antes da admissão na UTI. Alguns parâmetros laboratoriais estão resumidos na Tabela 2. A TFGe foi de 24,5 mL/min/1,73 m2, o que representou uma redução de 6,5 (+0,2;-21,1) em relação ao valor basal. Apenas um paciente não teve LRA, enquanto 5,9, 33,3 e 60,8% apresentaram pontuação KDIGO 1, 2, e 3, respectivamente. Os escores basais de gravidade em UTI foram: 54,0 no SAPS 3, 5,0 no SOFA, e 99,0 no APACHE IV (Tabela 3). Depois das primeiras 24 h após a admissão na UTI, 43,1% dos pacientes necessitaram de suporte hemodinâmico com vasopressores, 39,2% demandaram VM, e 43,2% necessitaram de TRS.

Tabela 2
Característica basal no momento da admissão em UTI
Tabela 3
Índices de escore basal na UTI e suporte clínico no primeiro dia na UTI

Após a admissão em UTI, a incidência acumulada de óbito em 90 dias foi de 63,4% (Figura 1A), e a taxa cumulativa apresentou uma linha de tendência linear de incremento do 7º dia (19,6%) até o 28º dia (52,9%) após a admissão na UTI, como mostrado na Figura 1B: Y = 10,93 * X + 12; R2 = 0,94. Na Figura 1A, é mostrada uma diminuição no número de novos óbitos após 28 dias, com uma incidência incremental de 9,3% do 28º ao 90º dia. A principal causa de óbito foi choque séptico devido a infecção secundária (17; 53,1%), seguida por insuficiência respiratória (8; 25,0%), eventos cardiovasculares (4; 12,5%), e outras causas (2; 9,4%).

Figura 1
Incidência acumulada de óbito em receptores de transplante renal em estado crítico diagnosticados com COVID-19. 1A: Incidência acumulada de óbito de 90 dias; 1B: Taxa cumulativa de fatalidades do 7º ao 28º dia após a admissão na UTI.

A análise direta mostrou que os receptores que haviam recebido enxerto de um doador falecido (87,5% vs. 57,9%, P = 0,02) foram a óbito mais frequentemente do que aqueles que receberam enxerto de um doador vivo. A admissão na UTI por insuficiência respiratória (83,3 vs. 70,6%) e comprometimento neurológico (16,7% vs. 5,9%) foram mais frequentes em pacientes que foram a óbito (P = 0,04). Os resultados de todas as variáveis estudadas na análise direta são detalhados nas Tabelas 1 to 2.

Comparamos os escores basais de gravidade em UTI e o suporte clínico no primeiro dia após a admissão entre os pacientes que foram a óbito e os que sobreviveram (Tabela 3). Não encontramos diferença entre os escores SOFA, SOFA de 24 horas e SAPS 3 e nem no delta SOFA de 24 horas; entretanto, o escore APACHE IV foi maior nos pacientes que foram a óbito: 106,5 ± 26,3 vs. 91,2±18,3, P = 0,03. Como esperado, a necessidade de vasopressores e VM no primeiro dia após a admissão em UTI foi mais frequente em pacientes que foram a óbito do que em sobreviventes: 62,5 vs. 10,5%, P < 0,001, e 56,3% vs. 10,5%, P = 0,001, respectivamente. A necessidade de TRS não foi diferente. Entre todos os pacientes que necessitaram de VM, a taxa de mortalidade foi de 90%, enquanto nos pacientes que não necessitaram, essa taxa foi de 45,2% (P = 0,001). Além disso, a taxa de mortalidade foi numericamente mais alta entre os pacientes que necessitaram de TRS (72,7% vs. 55,2%); no entanto, esta diferença não foi significativa (P = 0,20). Entre os sobreviventes, a TFGe 3 meses após a admissão na UTI foi de 27,5 (13,8; 49,1) mL/min/1,73 m2. Sete pacientes que necessitaram de TRS sobreviveram e quatro recuperaram parcialmente a função do enxerto, com a TFGe variando de 11,7 a 43,2 mL/min/1,73 m2.

Analisamos o desempenho dos escores de gravidade em UTI em predizer a probabilidade de óbito aos 7, 28 e 90 dias após a admissão na UTI. Estes resultados estão detalhados na Tabela 4. Entre eles, o sistema de pontuação com a melhor capacidade preditiva para mortalidade em cada período foi o APACHE IV. A AUC na curva ROC após 7 dias foi de 0,706 (IC95% = 0,539; 0,873, P = 0,04), enquanto foi de 0,656 (IC95% = 0,504; 0,808, P = 0,06) na previsão da mortalidade em 90 dias. A Figura 2 mostra a mortalidade cumulativa em 90 dias dicotomizada pelo valor mediano do APACHE IV. Os pacientes com um escore APACHE IV ≥ 99 apresentaram uma incidência cumulativa em 90 dias de 73,1% versus 53,2% daqueles que apresentaram um escore inferior (P = 0,04).

Tabela 4
Curva característica de operação do receptor para mortalidade em três períodos de acordo com os escores basais de gravidade em UTI

Figura 2
Incidência acumulada de óbito de noventa dias de acordo com o APACHE IV. O APACHE IV foi dicotomizado no valor mediano de 99.

Na análise univariada (Tabela 5), o risco de óbito foi maior em pacientes que haviam recebido enxerto de um doador falecido (HR = 3,16; IC95%= 1,10-9,05; P = 0,03), naqueles que apresentaram níveis mais altos de troponina na admissão (HR = 1,001; IC95% = 1,000-1,002; P = 0,03), maior escore APACHE IV (HR = 1,02; IC95% = 1,004-1,03; P = 0,01), e nos que necessitaram de VM (HR = 3,04; IC95% = 1,48-6,24; P = 0,002) e vasopressores (HR = 3,85; IC95% = 1,84-8,06; P < 0,001), no primeiro dia após a admissão na UTI.

Tabela 5
Análise univariada para risco de óbito hospitalar

Discussão

Foram analisados no presente estudo os desfechos de receptores de TR diagnosticados com COVID-19 e que necessitaram de internação em UTI para o manejo clínico de infecções nos primeiros seis meses da pandemia. Além disso, exploramos o desempenho de três escores tradicionais de gravidade na predição da probabilidade de óbito: SOFA, SAPS, e APACHE.

Estima-se que 30% de todos os receptores de TR diagnosticados com COVID-191919 Chavarot N, Gueguen J, Bonnet G, Jdidou M, Trimaille A, Burger C, et al. COVID-19 severity in kidney transplant recipients is similar to nontransplant patients with similar comorbidities. Am J Transplant. 2020 Nov;21(3):1285-94. DOI: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/ajt.16416
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necessitam de cuidados em UTI. Além disso, os dados atuais para esta população indicam taxas mais altas de desfechos intermediários do que para pacientes não transplantados, tais como VM e LRA que requerem TRS88 Azzi Y, Parides M, Alani O, Loarte-Campos P, Bartash R, Forest S, et al. COVID-19 infection in kidney transplant recipients at the epicenter of pandemics. Kidney Int. 2020 Dec;98(6):1559-67.,1919 Chavarot N, Gueguen J, Bonnet G, Jdidou M, Trimaille A, Burger C, et al. COVID-19 severity in kidney transplant recipients is similar to nontransplant patients with similar comorbidities. Am J Transplant. 2020 Nov;21(3):1285-94. DOI: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/ajt.16416
https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/...
,2020 Cravedi P, Mothi SS, Azzi Y, Haverly M, Farouk SS, Pérez‐Sáez MJ, et al. COVID-19 and kidney transplantation: results from the TANGO International Transplant Consortium. Am J Transplant. 2020 Nov;20(11):3140-8.. No presente estudo, 57% demandaram VM, 40% delas nas primeiras 24 h após a admissão na UTI. Surpreendentemente, não foi diferente do que ocorre com a população em geral. Em um estudo de coorte multicêntrico prospectivo que incluiu mais de 4.000 pacientes na Europa, o consórcio COVID-ICU Investigators observou que que 63% dos pacientes foram intubados durante as primeiras 24 h após a admissão em UTI2121 Schmidt M, Hajage D, Demoule A, Pham T, Combes A, Dres M, et al. Clinical characteristics and day-90 outcomes of 4244 critically ill adults with COVID-19: a prospective cohort study. Intensive Care Med. 2021 Jan;47(1):60-73.. Há algumas explicações possíveis para esta incidência precoce de intubação. Como esperado, a principal causa de admissão na UTI foi insuficiência respiratória devido à síndrome respiratória aguda grave, semelhante à de nossos pacientes. Nos primeiros meses da pandemia, os pacientes foram internados em um estado muito grave2121 Schmidt M, Hajage D, Demoule A, Pham T, Combes A, Dres M, et al. Clinical characteristics and day-90 outcomes of 4244 critically ill adults with COVID-19: a prospective cohort study. Intensive Care Med. 2021 Jan;47(1):60-73.. Além disso, houve uma recomendação clara para intubação precoce no início da pandemia, devido ao risco de exposição dos profissionais de saúde2222 World Health Organization (WHO). Clinical management of severe acute respiratory infection when novel coronavirus (2019-nCoV) infection is suspected: interim guidance, 28 January 2020 [Internet]. Geneva: WHO; 2020; [access in 2021 Feb 07]. Available from: https://apps.who.int/iris/handle/10665/330893
https://apps.who.int/iris/handle/10665/3...
, a qual foi modificada ao longo do tempo após estratégias não-invasivas terem se mostrado seguras e eficientes2323 Guan L, Zhou L, Le Grange JM, Zheng Z, Chen R. Non-invasive ventilation in the treatment of early hypoxemic respiratory failure caused by COVID-19: considering nasal CPAP as the first choice. Crit Care. 2020 Jun;24(1):333..

Outro estudo observou que a gravidade da doença nesses pacientes foi devido à alta taxa de necessidade precoce de vasopressores: 43% nas primeiras 24 h. Embora a ventilação precoce fosse a melhor estratégia de proteção2424 Meng L, Qiu H, Wan L, Ai Y, Xue Z, Guo Q, et al. Intubation and ventilation amid the COVID-19 outbreak Wuhan’s experience. Anesthesiology. 2020 Jun;132(6):1317-32., alguns pacientes necessitaram de sedação profunda para pressão controlada e posição prona precoce, o que está associado a um certo grau de instabilidade hemodinâmica2525 Morelli A, Sanfilippo F, Arnemann P, Hessler M, Kampmeier TG, D’Egidio A, et al. The effect of propofol and dexmedetomidine sedation on norepinephrine requirements in septic shock patients: a crossover trial. Crit Care Med. 2019 Feb;47(2):e89-e95.. Posteriormente, a equipe da UTI administrou fluidos cuidadosamente para evitar a sobrecarga de volume em pacientes com insuficiência respiratória grave, considerando a alta incidência de disfunção miocárdica associada à COVID-192626 Yang X, Yu Y, Xu J, Shu H, Xia J ’an, Liu H, et al. Clinical course and outcomes of critically ill patients with SARS-CoV-2 pneumonia in Wuhan, China: a single-centered, retrospective, observational study. Lancet Respir Med. 2020 May;8(5):475-81.,2727 Ruan Q, Yang K, Wang W, Jiang L, Song J. Clinical predictors of mortality due to COVID-19 based on an analysis of data of 150 patients from Wuhan, China. Intensive Care Med. 2020 May;46(5):846-8.. É importante ressaltar que 13% dos pacientes que necessitaram de vasopressores no primeiro dia tiveram choque séptico, a qual tem sido a principal causa de óbito. Em conjunto, estas características aumentaram o risco para 3,78 quando os pacientes necessitaram de tratamento vasopressor precoce. Em outro estudo que avaliou os receptores de TR com COVID-19, o choque séptico foi relatado como a principal causa de óbito; entretanto, é importante considerar que a sepse devido a uma infecção secundária ou infecções oportunistas leva a permanências mais longas na UTI88 Azzi Y, Parides M, Alani O, Loarte-Campos P, Bartash R, Forest S, et al. COVID-19 infection in kidney transplant recipients at the epicenter of pandemics. Kidney Int. 2020 Dec;98(6):1559-67.. Finalmente, a taxa de necessidade precoce de TRS foi muito elevada pois a função basal do enxerto foi muito baixa, diminuindo em mais de 20% antes da admissão na UTI e levando a uma incidência de LRA de 98%; a maioria dos casos foi classificada como KDIGO 3. É bem sabido que o risco de LRA está significativamente associado à idade, diabetes, doença cardiovascular prévia e necessidade de VM ou vasopressor66 Richardson S, Hirsch JS, Narasimhan M, Crawford JM, McGinn T, Davidson KW, et al. Presenting characteristics, comorbidities, and outcomes among 5700 patients hospitalized with COVID-19 in the New York City Area. JAMA. 2020 May;323(20):2052-9., que são altamente prevalentes em nossa população de estudo.

Aqui, observamos 62,7% de letalidade entre os pacientes internados em UTI e 90,0% entre os que necessitaram de VM. Decidimos estender o acompanhamento para 90 dias em vez de 28, porque evidências iniciais demonstraram um número significativo de pacientes na UTI após um curto período1414 The RECOVERY Collaborative Group. Dexamethasone in hospitalized patients with Covid-19 — preliminary report. N Engl J Med. 2020 Jul;384:693-704. DOI: https://doi.org/10.1056/NEJMoa2021436
https://doi.org/10.1056/NEJMoa2021436...
,2626 Yang X, Yu Y, Xu J, Shu H, Xia J ’an, Liu H, et al. Clinical course and outcomes of critically ill patients with SARS-CoV-2 pneumonia in Wuhan, China: a single-centered, retrospective, observational study. Lancet Respir Med. 2020 May;8(5):475-81.,2828 Arentz M, Yim E, Klaff L, Lokhandwala S, Riedo FX, Chong M, et al. Characteristics and outcomes of 21 critically ill patients with COVID-19 in Washington State. JAMA. 2020 Apr;323(16):1612-4.. A Figura 1B mostra a tendência linear de aumento da taxa de mortalidade do 7º ao 28º dia; no entanto, a mortalidade cumulativa adicional após 28 dias foi de quase 10% (Figura 1.A). Nos primeiros relatos da China, a taxa de mortalidade entre os pacientes críticos variou de 50 a 62%2626 Yang X, Yu Y, Xu J, Shu H, Xia J ’an, Liu H, et al. Clinical course and outcomes of critically ill patients with SARS-CoV-2 pneumonia in Wuhan, China: a single-centered, retrospective, observational study. Lancet Respir Med. 2020 May;8(5):475-81.,2828 Arentz M, Yim E, Klaff L, Lokhandwala S, Riedo FX, Chong M, et al. Characteristics and outcomes of 21 critically ill patients with COVID-19 in Washington State. JAMA. 2020 Apr;323(16):1612-4., a qual não foi superior àquela observada entre os primeiros 250.0000 brasileiros com COVID-19 que receberam manejo clínico hospitalar entre Fevereiro e Agosto de 20202929 Ranzani OT, Bastos LSL, Gelli JGM, Marchesi JF, Baião F, Hamacher S, et al. Characterisation of the first 250000 hospital admissions for COVID-19 in Brazil: a retrospective analysis of nationwide data. Lancet Respir Med [Internet]. 2021 Jan; [cited 2021 Feb 1]; 9(4):407-18. Available from: https://www.thelancet.com/journals/lanres/article/PIIS2213-2600(20)30560-9/abstract
https://www.thelancet.com/journals/lanre...
. É importante destacar que pacientes internados provenientes da população geral tinham em média 60 anos, como observado em nossos pacientes (58,6 anos de idade). Da mesma forma, a mortalidade hospitalar em pacientes brasileiros foi de 38%, chegando a 59% entre aqueles admitidos na UTI, e 80% quando a VM foi necessária.

Desde que os primeiros pacientes infectados pelo novo coronavírus foram identificados, foi relatada uma grande variedade de apresentações clínicas. No entanto, o potencial de progressão para síndrome respiratória aguda grave tem sido motivo de grande preocupação em todo o mundo22 Wu Z, McGoogan JM. Characteristics of and important lessons from the coronavirus disease 2019 (COVID-19) outbreak in China: summary of a report of 72314 cases from the Chinese center for disease control and prevention. JAMA. 2020 Apr;323(13):1239-42.,44 Guan W, Ni Z, Hu Y, Liang W, Ou C, He J, et al. Clinical characteristics of coronavirus disease 2019 in China. N Engl J Med. 2020 Apr;382(18):1708-20.,3030 Wang D, Hu B, Hu C, Zhu F, Liu X, Zhang J, et al. Clinical characteristics of 138 hospitalized patients with 2019 novel coronavirus-infected pneumonia in Wuhan, China. JAMA. 2020 Mar;323(11):1061-9.. De fato, muitos pacientes afetados não apresentam sintomas ou apresentam síndrome gripal discreta ou leve; portanto, um dos grandes desafios nos primeiros meses da pandemia foi encontrar os marcadores de prognóstico mais precisos, e as primeiras condições subjacentes relatadas foram idade mais avançada e presença de comorbidades, tais como hipertensão, diabetes, doenças cardiovasculares ou pulmonares crônicas, e algum grau de comprometimento da função renal55 Zhou F, Yu T, Du R, Fan G, Liu Y, Liu Z, et al. Clinical course and risk factors for mortality of adult inpatients with COVID-19 in Wuhan, China: a retrospective cohort study. Lancet. 2020 Mar;395(10229):1054-62.,66 Richardson S, Hirsch JS, Narasimhan M, Crawford JM, McGinn T, Davidson KW, et al. Presenting characteristics, comorbidities, and outcomes among 5700 patients hospitalized with COVID-19 in the New York City Area. JAMA. 2020 May;323(20):2052-9.. Neste cenário, os receptores de TR são considerados de maior suscetibilidade à infecção e piores desfechos devido ao uso crônico e inevitável de medicamentos imunossupressores e à presença de comorbidades88 Azzi Y, Parides M, Alani O, Loarte-Campos P, Bartash R, Forest S, et al. COVID-19 infection in kidney transplant recipients at the epicenter of pandemics. Kidney Int. 2020 Dec;98(6):1559-67.,1919 Chavarot N, Gueguen J, Bonnet G, Jdidou M, Trimaille A, Burger C, et al. COVID-19 severity in kidney transplant recipients is similar to nontransplant patients with similar comorbidities. Am J Transplant. 2020 Nov;21(3):1285-94. DOI: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/ajt.16416
https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/...
,2020 Cravedi P, Mothi SS, Azzi Y, Haverly M, Farouk SS, Pérez‐Sáez MJ, et al. COVID-19 and kidney transplantation: results from the TANGO International Transplant Consortium. Am J Transplant. 2020 Nov;20(11):3140-8..

A maioria das variáveis que apresentam um risco definido entre os pacientes com COVID-19, incluindo os receptores de TR, têm os escores de gravidade mais úteis para predizer a mortalidade precoce ou intra-hospitalar e o tempo de internação em pacientes críticos, tais como SOFA, SAPS e APACHE. Embora esses escores tenham sido atualizados e calibrados nas últimas décadas, não ficou claro se eles eram suficientemente precisos em pacientes com COVID-19. Por exemplo, os primeiros estudos que incluíram pacientes com COVID-19 encontraram alguns marcadores não tradicionais como fatores prognósticos, tais como ferritina, D-dímero, lactato desidrogenase e linfopenia44 Guan W, Ni Z, Hu Y, Liang W, Ou C, He J, et al. Clinical characteristics of coronavirus disease 2019 in China. N Engl J Med. 2020 Apr;382(18):1708-20.,66 Richardson S, Hirsch JS, Narasimhan M, Crawford JM, McGinn T, Davidson KW, et al. Presenting characteristics, comorbidities, and outcomes among 5700 patients hospitalized with COVID-19 in the New York City Area. JAMA. 2020 May;323(20):2052-9.,3030 Wang D, Hu B, Hu C, Zhu F, Liu X, Zhang J, et al. Clinical characteristics of 138 hospitalized patients with 2019 novel coronavirus-infected pneumonia in Wuhan, China. JAMA. 2020 Mar;323(11):1061-9.. Além disso, quando pacientes críticos com COVID-19 admitidos na UTI foram comparados com o grupo histórico admitido na mesma unidade nos mesmos meses do ano anterior à pandemia, os escores SAPS 3 e SOFA foram mais baixos em pacientes com COVID-193131 Socolovithc RL, Fumis RRL, Tomazini BM, Pastore L, Galas FRBG, Azevedo LCP, et al. Epidemiology, outcomes, and the use of intensive care unit resources of critically ill patients diagnosed with COVID-19 in Sao Paulo, Brazil: a cohort study. PLoS One. 2020 Mar;15(12):e0243269.. Por outro lado, em um estudo realizado por investigadores europeus da COVID-ICU, o SOFA foi independentemente relacionado à mortalidade em 90 dias; embora a doença afete principalmente os pulmões, os componentes renais e cardiovasculares do SOFA foram os mais fortemente associados a desfechos desfavoráveis2121 Schmidt M, Hajage D, Demoule A, Pham T, Combes A, Dres M, et al. Clinical characteristics and day-90 outcomes of 4244 critically ill adults with COVID-19: a prospective cohort study. Intensive Care Med. 2021 Jan;47(1):60-73.. É interessante notar que, nesse estudo, a imunossupressão foi uma das variáveis independentemente associadas ao óbito. Além disso, em um estudo chinês que incluiu 140 pacientes críticos com COVID-19, três ou mais pontos no escore SOFA apresentaram 90% de sensibilidade e 97% de valor preditivo negativo para mortalidade3232 Liu S, Yao N, Qiu Y, He C. Predictive performance of SOFA and qSOFA for in-hospital mortality in severe novel coronavirus disease. Am J Emerg Med. 2020 Oct;38(10):2074-80.. Por fim, em outra coorte chinesa que incluiu 154 pacientes, o APACHE II foi associado independentemente à mortalidade hospitalar: cada ponto aumentou significativamente o risco em 7%3333 Zou X, Li S, Fang M, Hu M, Bian Y, Ling J, et al. Acute physiology and chronic health evaluation II score as a predictor of hospital mortality in patients of coronavirus disease 2019. Crit Care Med. 2020 Aug;48(8):e657-e665.. Estes achados iniciais sugerem que, embora a COVID-19 seja uma doença sistêmica incomparável causada por um vírus respiratório, alguns escores tradicionais devem ser utilizados para prever desfechos em pacientes críticos; no entanto, seria aconselhável uma calibração adicional.

Segundo nosso conhecimento, este é o primeiro estudo a explorar o desempenho dos índices de gravidade tradicionais na predição da mortalidade em receptores de TR gravemente enfermos diagnosticados com COVID-19. Anteriormente, nosso grupo havia avaliado o desempenho do SOFA na previsão da mortalidade hospitalar entre pacientes admitidos na mesma UTI devido ao choque séptico, onde cada ponto no delta SOFA de 24 h aumentou o risco de óbito em 70%1313 Carvalho MA, Freitas FGR, Junior HTS, Bafi AT, Machado FR, Pestana JOM. Mortality predictors in renal transplant recipients with severe sepsis and septic shock. PLoS One. 2014 Apr;9(11):e111610., mas até o momento nenhum escore foi calibrado para os receptores de TR. Aqui, o APACHE IV alcançou o melhor desfecho ao predizer a mortalidade em 7 e 28 dias, com uma tendência para a mortalidade em 90 dias. Além disso, os pacientes que apresentaram APACHE IV > 99 tiveram uma mortalidade cumulativa mais elevada e significativa.

Nosso estudo tem várias limitações, incluindo o pequeno número de pacientes, sua natureza retrospectiva e pivotal, e um grande número de valores ausentes de algumas variáveis importantes, como os níveis de troponina, D-dímero e ferritina, que apresentaram melhores desfechos na previsão de risco de óbito em pacientes com COVID-19 em estudos anteriores. Considerando essas limitações, não é possível concluir que esses sistemas de pontuação são inadequados para os receptores de TR. Além disso, devido ao pequeno número de pacientes e sobreviventes e à baixa taxa de eventos por variável, os potenciais preditores de óbito não puderam ser avaliados em modelagem multivariada, sendo os resultados limitados a uma análise univariada. No entanto, nossos resultados fornecem informações preliminares sobre um campo relevante no contexto da pandemia da COVID-19, e investigações futuras devem ser conduzidas para explorar algumas das questões destacadas no presente estudo. Este é o primeiro estudo brasileiro que examinou esta população específica admitida em UTI e seus principais desfechos. É importante ressaltar que o Brasil possui o maior programa público de transplantes e realiza o segundo maior número de transplantes renais no mundo, e a pandemia da COVID-19 está tendo um impacto significativo nesta população. Informações adicionais são bem-vindas para melhorar o manejo clínico dos receptores de TR, principalmente aqueles que evoluem para condições críticas da doença.

Conclusão

Embora este seja um pequeno estudo de coorte pivotal, ele destaca um campo de investigação relevante: a predição de desfechos desfavoráveis em receptores de TR com COVID-19. Como esperado, a mortalidade em 90 dias entre os receptores de TR foi muito alta e independentemente associada ao uso de vasopressores no primeiro dia após a admissão na UTI. Receber um rim de um doador falecido também foi relacionado à mortalidade, apesar do longo período entre o transplante e a infecção por SARS-CoV-2. Por fim, observamos que, entre SOFA, SAPS3 e APACHE IV, este último apresentou os melhores desfechos na predição de mortalidade precoce e em 90 dias.

Abreviações

  • LRA  lesão renal aguda
  • APACHE  Avaliação da Fisiologia Aguda e Saúde Crônica
  • RA  rejeição aguda
  • AZA  azatioprina
  • DRC  doença renal crônica
  • COVID-19  doença do coronavírus
  • CSA  ciclosporina
  • TFGe  taxa de filtração glomerular estimada
  • FiO2  fração inspirada de oxigênio
  • UTI  unidade de terapia intensiva
  • TR  transplante renal
  • MPS  micofenolato
  • imTOR  inibidores da proteína alvo da rapamicina em mamíferos
  • VM  ventilação mecânica
  • PaO2  pressão parcial de oxigênio no sangue arterial
  • TRS  terapia renal substitutiva
  • SAPS  Escore Fisiológico Agudo Simplificado
  • SARS-CoV-2  síndrome respiratória aguda grave coronavírus 2
  • SOFA  Avaliação Sequencial de Falência de Órgãos
  • TAC  tacrolimus

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Jun 2021
  • Aceito
    18 Out 2021
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