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Concepções de profissionais de saúde sobre a violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente

Resumos

Este estudo buscou compreender as concepções que os profissionais de saúde têm sobre a violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente. Foram utilizadas metodologia qualitativa na modalidade estudo de caso e técnicas de observação participante, entrevista e consulta em documentos. Os participantes eram membros de uma Unidade de Saúde da Família. Evidenciou-se que os profissionais de saúde associam a violência à conjuntura econômica, social e política e a aspectos culturais; para alguns, os atos violentos fazem parte do ciclo intergeracional e da dinâmica familiar. A punição física, considerada violência por uns, é defendida como medida educativa por outros. Definem violência com base em construção prévia dos sujeitos como vítimas ou agressores, perdendo-se, com isso, a dimensão relacional do fenômeno. Constata-se que os profissionais de saúde têm dificuldade para compreender a violência no contexto em que tem significado e para reconhecê-la como conseqüência de dinâmica relacional complexa.

violência; assistência à saúde; saúde da criança; saúde do adolescente; saúde da família; enfermagem pediátrica


The present study sought to understand the conceptions held by health professionals with regards to violence within the family against children and adolescents. Qualitative case-study methodology and techniques of participant observation, interviewing, and search in documents were used. Participants were staffed in a government-run Family Health Basic Unit in Brazil. Health professionals were found to associate violence with the economic, social, and political juncture and with cultural aspects; for some, violent acts are part of the intergenerational cycle and family dynamics. Physical punishment, considered as violence by some, is advocated as an educational measure by others. Participants also base their definition of violence on an a priori construction of subjects as either victims or aggressors, thus missing the relational dimension of the phenomenon. Health professionals were found to have difficulty in understanding violence in the context that gives it a meaning and to recognize it as consequence of a complex relational dynamics.

violence; delivery of health care; child health; adolescent health; family health; pediatric nursing


Este estudio buscó comprender las concepciones que los profesionales de la salud manifiestan sobre la violencia intrafamiliar contra niños y adolescentes. Fue utilizada la metodología cualitativa a través del estudio de caso y técnicas de observación participante, entrevista y consulta a documentos. Los participantes trabajaban en una Unidad de Salud de la Familia en Brasil. Se observó que estos profesionales asocian la violencia a la coyuntura económica, social, política y a aspectos culturales; para algunos de ellos, los actos violentos son parte del ciclo intergeneracional y de la dinámica familiar. La punición física, considerada violencia por algunos, es defendida por otros como una medida educativa. Definen violencia basándose en una construcción previa que tienen los sujetos como víctimas o agresores, perdiendo así la dimensión relacional del fenómeno. Se observa que los profesionales de la salud tienen dificultad para comprender la violencia dentro del contexto en que tiene significado, así como para reconocerla como una consecuencia de dinámica relacional compleja.

violencia; prestación de atención de salud; salud del niño; salud del adolescente; salud de la familia; enfermería pediátrica


ARTIGO ORIGINAL

Concepções de profissionais de saúde sobre a violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente1 1 Trabalho extraído da Tese de Doutorado

Cristina Brandt NunesI; Cynthia Andersen SartiII; Conceição Vieira da Silva OharaIII

IEnfermeira, Doutor em Ciências, Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil, e-mail: cbrandt@terra.com.br

IIAntropóloga, Orientador, Professor Livre Docente, e-mail: csarti@uol.com.br

IIIEnfermeira, Co-Orientador, Doutor em Enfermagem,Professor Adjunto, e-mail: consilva@denf.epm.br. Universidade Federal de São Paulo, Brasil

RESUMO

Este estudo buscou compreender as concepções que os profissionais de saúde têm sobre a violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente. Foram utilizadas metodologia qualitativa na modalidade estudo de caso e técnicas de observação participante, entrevista e consulta em documentos. Os participantes eram membros de uma Unidade de Saúde da Família. Evidenciou-se que os profissionais de saúde associam a violência à conjuntura econômica, social e política e a aspectos culturais; para alguns, os atos violentos fazem parte do ciclo intergeracional e da dinâmica familiar. A punição física, considerada violência por uns, é defendida como medida educativa por outros. Definem violência com base em construção prévia dos sujeitos como vítimas ou agressores, perdendo-se, com isso, a dimensão relacional do fenômeno. Constata-se que os profissionais de saúde têm dificuldade para compreender a violência no contexto em que tem significado e para reconhecê-la como conseqüência de dinâmica relacional complexa.

Descritores: violência; assistência à saúde; saúde da criança; saúde do adolescente; saúde da família; enfermagem pediátrica

INTRODUÇÃO

A violência, principalmente da década de 1980 em diante, constitui preocupação de alta relevância em todas as instâncias sociais e requer a mobilização de redes de apoio interinstitucionais e intersetoriais, das quais o setor de saúde também deve participar. O ambiente doméstico e familiar tem sido o cenário predominante de expressão da violência contra a criança e o adolescente. A violência, que tem lugar nesse âmbito, constitui grau extremo de abuso nas relações familiares e não diz respeito a atos isolados, mas a relações violentas que ocorrem entre pessoas próximas e aparentadas(1). A criança e o adolescente, sujeitos à violência intencional e repetida, aprendem esses padrões como “verdades” e tendem a reproduzir essa vivência em suas relações sociais. Tal fenômeno pode acompanhar a família de geração a geração, constituindo-se na intergeracionalidade da violência(2). Os profissionais de saúde não podem ficar alheios a essa problemática. Além disso, a possibilidade de tornar visível a situação de violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente, possibilitada pelo exame físico, exige abordagem de cuidado que leve em conta os aspectos relacionais desse fenômeno e o contexto no qual se manifesta e que lhe dá significado.

Nesse sentido, considerou-se relevante, no presente estudo, compreender as concepções que os profissionais de saúde têm sobre a violência intrafamiliar praticada contra a criança e o adolescente, na medida em que essas orientam suas práticas de cuidado.

METODOLOGIA

Dado o caráter interpretativo do problema deste estudo, escolheu-se a metodologia qualitativa para sua realização e, em particular, o estudo de caso, tal como desenvolvido no âmbito das Ciências Sociais(3). Nele, parte-se de abordagem da vida social como realidade que pode ser interpretada, uma vez que se concebe o mundo social como constituído pelo significado que os indivíduos lhe atribuem, a partir das referências da coletividade da qual fazem parte(4-5). Considera-se que o conhecimento resulta de um processo e que a trajetória da pesquisa é mais relevante que os resultados propriamente ditos(3,6-7). Assim, a cientificidade da pesquisa qualitativa não é dada a priori, por normas rígidas e acabadas, mas a posteriori, como resultado desse processo.

A designação “estudo de caso” provém da pesquisa médica e psicológica e refere-se à análise detalhada de um caso individual que explica a dinâmica e a patologia de uma doença específica. Ao ser adaptado para as Ciências Sociais, o estudo de caso tornou-se uma das principais modalidades de pesquisa nesse campo, prestando-se a abranger não só um indivíduo, mas uma organização ou comunidade(3).

A pesquisa* * A pesquisa de campo teve início após a aprovação e autorização do Comitê de Ética em Pesquisa da UNIFESP, Parecer 1587/03. Antes de cada entrevista foi lido o termo de consentimento livre e esclarecido e explicado e discutido seu conteúdo, permanecendo uma cópia do documento com o profissional entrevistado. foi realizada em uma unidade em que estavam instaladas quatro equipes de profissionais que atuavam no Programa de Saúde da Família (PSF). O principal critério de escolha dos sujeitos foi o de disporem de experiência profissional com crianças, adolescentes e famílias envolvidas com questões entendidas como sendo de “violência”. O ponto de partida foi localizar os casos considerados e registrados como de violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente. Considera-se como violência intrafamiliar “toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode ser cometida dentro ou fora de casa por algum membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir a função parental, ainda que sem laços de consangüinidade, e em relação de poder à outra”(8).

Esse conceito se refere às relações em que o ato violento se constrói e é efetivado, e não apenas ao espaço físico em que a violência acontece(8-9). Embora os casos abordados tenham, na maioria, ocorrido no âmbito doméstico, a noção de violência intrafamiliar parece mais adequada para uso neste estudo, por dizer respeito à natureza relacional do problema, sem estar focada no local em que os fatos ocorrem.

Fizeram parte do momento inicial do trabalho de campo dezenove agentes comunitários de saúde. Ao longo da pesquisa, foram incorporados outros profissionais integrantes das quatro equipes: cinco agentes comunitários de saúde, dois assistentes sociais e gerentes de unidade, uma auxiliar de consultório dentário, uma auxiliar de enfermagem, dois dentistas, três enfermeiras e dois médicos. Os instrumentos de pesquisa utilizados foram a observação participante, a entrevista e a consulta de documentos.

A observação teve como foco conhecer a dinâmica dos profissionais no contato com as crianças, adolescentes e suas famílias e nas interações entre eles, em atividades relacionadas ao atendimento na sala de recepção, na farmácia, na sala de curativos e na sala de odontologia, à coleta de exames laboratoriais, a ações educativas, a atividades realizadas na sala de pós-consulta, à inalação, à vacinação, a consultas médicas e de enfermagem, às visitas domiciliares e às reuniões de sextas-feiras, em que participavam os profissionais de todas as equipes da unidade. As entrevistas, com roteiro prévio, foram realizadas após contato de cerca de um mês com os profissionais. As estratégias utilizadas para a entrevista, bem como a elaboração das questões, foram sendo gradativamente construídas e dependeram do modo como as situações se apresentaram no decorrer da pesquisa. As informações documentais foram buscadas na Unidade Básica de Saúde da Família pesquisada, no Conselho Tutelar Sul e na Secretaria Municipal de Saúde Pública (Setores de Informática e de Epidemiologia) para complementar os dados da observação participante e da entrevista.

Para análise dos dados, foram realizadas leituras exaustivas dos relatos, dos diários de campo e dos documentos. A recorrência das questões permitiu agrupar os dados em temas correspondentes e, posteriormente, transformá-los nas categorias temáticas, que constituíram os eixos da análise.

RESULTADOS E DISCUSSÃO: CONCEPÇÕES DE PROFISSIONAIS DE SAÚDE

A convergência dos dados referentes às concepções que os profissionais entrevistados têm sobre a violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente resultou em seis eixos temáticos que serão apresentados a seguir: reflexo de condições sociais, omissão de cuidados na família, idéias pré-concebidas de vítima e agressor, conseqüência de problemas pessoais, violência e ciclo intergeracional e correção de rumo: a violência como disciplina.

Reflexo de condições sociais

A maioria dos entrevistados considera que a violência é reflexo de condições sociais e culturais, tem múltiplas causas e está ligada à política de governo. Nessa concepção, que prioriza a dimensão coletiva, a violência é conseqüência de conflitos desencadeados por desemprego, salários baixos, falta de moradia, condições inadequadas de saúde e baixa escolaridade. Segundo essa visão, tal contexto favorece a desestruturação familiar.

A percepção que acentua associação entre violência e problemas sociais e culturais pode estar relacionada ao fato de que a grande maioria das famílias, atendidas pelos entrevistados, vive situação de pobreza. Para os profissionais, os pais que vivem em condições precárias de vida perdem a noção de dignidade e de identidade própria e são mais propensos a agredir seus filhos, pois não aderem aos valores que podem inibir a violência.

É importante ter em mente, porém, que atribuir apenas à pobreza o aumento da violência no país, especialmente na última década, é forma de alimentar preconceitos e discriminações contra os pobres. Tal erro de diagnóstico pode tornar ineficazes as políticas públicas nele baseadas, com efeitos desastrosos(10), levando a um círculo vicioso por reiterar permanentemente uma associação (entre violência e pobreza) que é construída por uma representação da pobreza.

Omissão de cuidados na família

Os entrevistados vêem a violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente como fortemente ligada à omissão de cuidados familiares, ou “negligência”, em que prevalecem o abandono e o descaso para com as necessidades básicas, como alimentação, higiene e vacinação. O fato de os pais não cumprirem alguns procedimentos básicos de prevenção de doenças previstos nas ações de saúde suscita certa irritação e desperta condutas punitivas em alguns profissionais.

O caso de L, de um ano de idade, é percebido pelos profissionais como omissão de cuidados básicos pelos pais. Segundo a agente comunitária de saúde, a mãe rejeitou a criança desde a gestação e não compareceu a nenhuma das várias consultas de pré-natal marcadas. Para alguns profissionais, a mãe parece não gostar da filha desde o nascimento, opinião que se baseia no fato de que a criança não recebe a atenção necessária para seu crescimento e desenvolvimento adequados, o que se manifesta, segundo os profissionais, em “falta de afeto”, nos precários cuidados com o corpo (alimentação e higiene) e no não comparecimento às consultas médicas, de enfermagem e odontológicas.

A análise de situações como essa é complexa, por ser tênue a fronteira entre o que pode ser entendido como negligência de cuidados dos pais para com os filhos e o julgamento moral dos profissionais em relação à família, com base num modelo de cuidado alheio ao mundo sociocultural das famílias. Avaliar tudo como sendo negligência é uma maneira de desqualificar qualquer forma diferente de cuidado, principalmente quando esse provém de um universo cultural marcado pela pobreza. É, portanto, o olhar do profissional que, por vezes, define o que é negligência.

Esse descompasso entre os pontos de vista dos profissionais e da família é percebido por alguns dos pesquisados. O modo como certos pais se portam com seus filhos em relação aos cuidados básicos pode ser considerado como atitude normal para esses pais, e não como omissão. Essa percepção é evidenciada no seguinte relato:

E uma coisa muito interessante é avaliar até que ponto aquela negligência é realmente sentida e entendida pela mãe como uma negligência. Será que aquele tratamento que ela dava pra criança dela pra ela não era normal? (Médica).

Idéias pré-concebidas de vítima e agressor

Outro aspecto a considerar é a maneira como são percebidos pelos profissionais os possíveis casos de violência contra a criança ou adolescente e as posições em que se encontram a vítima e o agressor. Na maioria das vezes, a suposição provém inicialmente dos vizinhos da família, que informam o agente comunitário de saúde, o qual, por sua vez, geralmente comunica a enfermeira e/ou o assistente social da equipe. Tal situação é exemplificada no depoimento:

A agente comunitária contou que o pai vivia com duas crianças de dois e quatro anos de idade. E a vizinha falou para ela que as crianças choravam muito à noite e achava que o pai estava molestando as crianças. Aí fomos eu e a enfermeira lá. Só que, ele tinha perdido a esposa recentemente. Daí nós chegamos e conversamos. Pelo que nós vimos, nós não notamos nada assim de diferente. Acho que elas, por perderem a mãe, choravam muito. (Assistente social e gerente de Unidade)

O fato de as meninas chorarem à noite e ser o pai quem delas cuida, e não a mãe, levou à suposição de que pudessem estar sofrendo algum tipo de abuso sexual. Nisso está implícita, de um lado, a atribuição do cuidado exclusivamente à figura materna, além de outra idéia pré-concebida relacionada às questões de gênero, que identifica o homem como o abusador, a partir da associação entre masculinidade e violência, que informa a realidade, impedindo de ver os acontecimentos sob outro prisma, diferindo do que esses possam estar representando para os profissionais. Nessa perspectiva, o homem é identificado como agressor, por ser-lhe de antemão dado esse atributo(11). Com isso, criam-se pressuposições que dificultam a avaliação do que está de fato acontecendo. Casos como esse revelam a dificuldade dos profissionais em entender o contexto das relações familiares.

A violência é um fenômeno relacional que abrange distintos sujeitos culturais, como a vítima, o agressor e os profissionais. A partir desse envolvimento, nomeia-se a violência e o atendimento que lhe corresponde. Nessa relação, a construção prévia dos sujeitos como vítimas ou agressores pode predispor à concepção de violência, o que se antecipa aos acontecimentos em si(11-12), condicionando sua avaliação.

Em algumas ocasiões, o comportamento da mãe pode levar a identificar na figura materna supostas características de maldade, que explicariam o ato violento ou a cumplicidade de permitir que alguém o empreenda. Nesses casos, há um papel de mãe idealizado: se essa não cumpre com a função pré-concebida pelos profissionais é porque é “má”. Tal ponto de vista ilustra a concepção do amor materno como instintivo e intrínseco do ser mulher. Com a maternidade, pressupõe-se que a mulher seja naturalmente capacitada a lidar com todas as situações referentes a essa condição, sem falhas.

A história do comportamento materno mostra, porém, que há grande diversidade de atitudes e qualidades no relacionamento entre mãe e filho e que o amor entre eles é um sentimento humano sujeito a incertezas, fragilidades e imperfeições(13).

Na visão dos profissionais pesquisados, quem ama seu filho não o maltrata, e aquela que o maltrata é julgada e moralmente condenada:

Ah, é maldade, falta de vínculo afetivo, falta de coração! Não sei o que leva essa mãe a não proteger o filho dela, ou ficar batendo nele! Acho que é falta de tudo; também é ignorância! Não tem o que justifica violentar o filho! É um absurdo! A criança é indefesa! Elas põem muito filho assim, no mundo, e não têm paciência de cuidar! (Enfermeira).

Por vezes, os profissionais pesquisados não vislumbram possibilidades de recuperação para o agressor. Essa concepção se acentua quando as complicações advindas à criança são evidentes. Disso é exemplo o caso de G. No segundo dia de vida do menino, a mãe biológica (18 anos) abandonou-o no hospital. A avó materna da criança pediu que a mãe o buscasse. No quinto dia de vida, G foi atendido num centro regional de saúde com traumatismo cranioencefálico e transferido ao hospital. Segundo informações dos profissionais e da avó, a criança foi jogada pela mãe contra a parede quando tinha quatro dias de vida. De acordo com as informações coletadas, a mãe teve depressão pós-parto. Esse caso mobilizou os profissionais de diversas maneiras, dado o modo como ocorreu o ato agressivo e a gravidade das seqüelas. G tem dificuldade para deglutir alimentação pastosa, apresenta nistagmo e macrocefalia (em decorrência da hidrocefalia), não apresenta controle da cabeça, não segura objetos com a mão, não se senta sozinho nem engatinha, é hospitalizado freqüentemente com pneumonia. Retornou recentemente do hospital com traqueostomia e gastrostomia. O fato aconteceu há três anos e a mãe é referida como alguém doente e que necessita ficar afastada da criança.

Conseqüência de problemas pessoais

Para alguns dos pesquisados, em particular agentes comunitários de saúde, a violência contra a criança e o adolescente é conseqüência de problemas pessoais que os pais enfrentaram ou enfrentam e que influenciam o modo como lidam com o filho. Isso pode ser avaliado em um dos relatos. A agente realizara, por cinco meses, visitas domiciliares a uma mãe, constatando que essa fora abandonada pela família ao engravidar e recentemente se separara do marido. Com o tempo, percebeu também que ela batia freqüentemente no filho de dois anos, principalmente se esse não controlava as eliminações, e dirigia a ele palavras agressivas de desprezo. Para a agente comunitária de saúde, a mãe “culpa a criança por ser a causa de seu sofrimento”, e por isso a pune fisicamente, numa interpretação que revela maior proximidade desta profissional com o mundo social e cultural das famílias atendidas.

Eu acho que o fato dela bater no filho tem a ver com o que ela passou lá atrás, com o passado dela. Ela acha que aquela criança veio no mundo só para fazer ela sofrer! Porque ela colocava a maldade que tinha acontecido na vida dela na vida da criança! (Agente comunitária de saúde).

Violência e ciclo intergeracional

Entre os outros profissionais pesquisados, há os que entendem os atos violentos como fazendo parte de um ciclo intergeracional e decorrendo de experiências agressivas que os pais vivenciaram no passado em seu convívio familiar, naturalizando esse comportamento ou repetindo-o inconscientemente. Eles consideram que determinadas situações são complexas de abordar e ficam perplexos frente ao ocorrido. No entanto, para o assistente social e gerente de unidade, apesar da abrangência do fenômeno, há, por trás de um caso de violência contra criança ou adolescente, um contexto que necessita ser avaliado e assistido, apontando para atendimento que focalize não apenas a vítima, mas toda a situação e os agentes envolvidos no ato violento.

Quando eu conheci o avô de 45 anos que abusou do neto de quatro anos eu pensei: que grau de atrocidade chega o ser humano! Senti a necessidade de haver punições mais adequadas, até porque a vítima está ali e ele não pode ficar impune. Mas eu não tenho o meu pensamento voltado para: ‘Ah! Este cara tem que ser sacrificado’ e tal. Eu acho que ele também é uma vítima por todas as mazelas que o cercaram desde a tenra idade. (Assistente social e gerente de Unidade)

Correção de rumo: a punição física como disciplina

O uso da punição física para com os filhos é questão abordada com certa freqüência tanto pelas famílias atendidas pelas equipes como pelos próprios profissionais. Numa das reuniões realizadas no centro de educação infantil, que recebe crianças na faixa de quatro meses a seis anos e onze meses de idade, foram discutidos alguns problemas relacionados principalmente ao comportamento agressivo de determinadas crianças nessa escola. Do encontro participaram vinte e cinco mães, três pais, quatro professoras, a diretora, a psicóloga, a pedagoga e a agente comunitária de saúde da área. Inicialmente a diretora convidou a pesquisadora a falar sobre as principais características do desenvolvimento infantil.

Após a exposição, o assunto mais discutido por mães e pais foi o uso da palmada com fins educativos. As diversas manifestações mostraram que essa é prática utilizada pela maioria deles em seu cotidiano. Uma das mães, ao falar da forma como educa seus filhos, relatou:

Eu tenho três filhos e eu criei todos iguais, mas esse terceiro, de cinco anos, eu não sei o que fazer! Daí eu bato nele. Faço isso pra ver se ele melhora. Já coloquei até de joelho pra ver se ele aprende.

Outra comentou:

A minha filha de três anos é muito arteira e eu não sei o que fazer. Às vezes o jeito é bater mesmo!

Tais relatos mostram a dificuldade dos pais para colocar limites a certos comportamentos de seus filhos e que, como medida educativa, recorrem à punição física como tentativa de fazer com que mudem de atitude.

Observa-se aí que, na abordagem de criação da criança, a punição física é utilizada com o fim de estabelecer limites para a conduta inadequada do filho. Subentendido nessa ação está um motivo educacional: os pais realmente acreditam que tal tipo de punição serve a um digno propósito voltado ao bem-estar da criança(14). Essa visão está relacionada à aceitação cultural, presente em todas as classes sociais, em que o uso da punição física é percebido como maneira de regular o comportamento dos filhos(15). Para a maioria dos pais, o uso da punição física não é acompanhado de culpa, pois se sentem em seu direito de fazê-lo. A criança pode reagir de maneira passiva ou de forma agressiva. Ambas as reações podem aumentar a agressividade do adulto. O risco dessa situação é que atos de violência se incorporem na relação como um modo de diálogo entre agressor e vítima(16).

Entre os profissionais pesquisados, há os que defendem o uso da força física dos pais sobre os filhos em determinadas ocasiões. Para eles há diferença entre bater e espancar. Consideram que a palmada, quando utilizada de forma leve, tem fins corretivos, mas vêem o espancamento como um tipo de violência, por seu caráter agressivo, que deixa marcas no corpo da criança ou adolescente.

Alguns dos entrevistados questionam o fato de certos órgãos como, por exemplo, o Conselho Tutelar, não defenderem o uso da força física como recurso educativo. Consideram que esse tipo de punição, em certas situações, tem função educativa, sendo uma forma de castigo que leva a criança ou adolescente a ter melhor conduta — a “correção de rumos”.

A própria política do Conselho Tutelar tem uma forma que eu acho muito errônea de agir, quando se deixou clara que a correção de rumos praticamente foi proibida. Eu acho que às vezes tem que dar um tapa no bumbum da criança! Não é no sentido de espancar, mas no sentido de fazer correção! Senão a criança não aprende mesmo! (Médico).

Tais aspectos revelam o fato de que tanto para as famílias como para alguns profissionais o uso da palmada educativa é aceito e defendido como algo benéfico, não sendo identificado com violência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As atitudes dos profissionais de saúde frente à violência intrafamiliar estão relacionadas a suas concepções sobre a questão, o que nem sempre coincide com a concepção das famílias ou de outros setores ligados aos atendimentos às famílias, como é o caso do Conselho Tutelar. Esses descompassos mostram a necessidade de contextualizar o fenômeno da violência para entender o significado a ele atribuído pelos diversos atores envolvidos, para que se formule assistência adequada.

Os profissionais de saúde freqüentemente pensam a violência a partir de pré-concepções, não apenas quanto à condição social de pobreza das famílias assistidas pela Unidade do PSF pesquisada, mas também quanto aos sujeitos sociais que são identificados preferencialmente como agressores, como é o caso dos homens. Isso leva à predisposição para associar a violência a determinados contextos e sujeitos, independente de avaliação do acontecimento em si.

Há, ainda, a dificuldade de compreender a violência dentro de seu contexto, ou seja, a partir do ponto de vista de quem a vivencia, e de reconhecê-la como conseqüência de uma dinâmica relacional complexa.

A possibilidade de tornar visível a violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente exige dos profissionais de saúde um “novo olhar” para a situação. É necessário pensar a violência num âmbito de relações, dentro de um contexto, e reconhecer que esse fenômeno não é doença do agressor e nem doença da vítima, mas sim a conseqüência de uma dinâmica relacional complexa, tornando-se importante problema social que tem repercussões das quais decorrem agravos à saúde.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 30.5.2007

Aprovado em: 5.12.2007

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    Trabalho extraído da Tese de Doutorado
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    A pesquisa de campo teve início após a aprovação e autorização do Comitê de Ética em Pesquisa da UNIFESP, Parecer 1587/03. Antes de cada entrevista foi lido o termo de consentimento livre e esclarecido e explicado e discutido seu conteúdo, permanecendo uma cópia do documento com o profissional entrevistado.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Mar 2008
    • Data do Fascículo
      Fev 2008

    Histórico

    • Recebido
      30 Maio 2007
    • Aceito
      05 Dez 2007
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