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Atenção primária à saúde em municípios de alto risco para malária

Resumos

Neste estudo pretendeu-se caracterizar aspectos da Atenção Básica, na região da Amazônia Legal, principal área endêmica para malária, no Brasil. O Ministério da Saúde recomenda a expansão da Atenção Básica nas áreas malarígenas. Foi realizado inquérito transversal, aplicado aos portadores de malária, em 6 municípios, durante os meses de janeiro e fevereiro de 2007. Os dados coletados foram tabulados e analisados, utilizando-se técnicas quantitativas. Registros de campo auxiliaram na composição das impressões do contexto dessas políticas nos locais pesquisados. A qualidade do acesso a consultas e medicamentos, o vínculo com os profissionais e com as Unidades Básicas de Saúde, o sistema de referência e contrarreferência, e a abordagem familiar e comunitária da saúde pelos profissionais, nos municípios do estudo, ainda são deficientes nesse nível de atenção. Há baixa integração entre o Programa Nacional de Controle de Malária e a Atenção Básica, de modo geral.

Atenção Primária à Saúde; Malária; Brasil


This study aims to characterize aspects of Primary Health Care in the Amazon Region of Brazil, considered as the main endemic area for malaria in the country. The Ministry of Health recommends the expansion of Primary Health Care in endemic areas for malaria. A survey focusing on patients infected with malaria was conducted in 6 municipalities, in January and February 2007, to investigate specific aspects of Primary Health Care. Data was analyzed quantitatively and field records helped to give support to context and policy issues in the visited sites. Quality of access to health services and medicines, continuity of health care, system coordination and community orientation are still incipient in the visited areas. The study showed that there is little integration between Primary Health Care and malaria control in the region, which calls for development of joint strategies and for the strengthening of Primary Health Care per se, as a benefit to the population of this endemic area.

Primary Health Care; Malaria; Brazil


Este estudio pretende caracterizar aspectos de la Atención Básica en la región de la Amazonia Legal, principal área endémica para malaria en Brasil. El Ministerio de la Salud recomienda la expansión de la Atención Básica en las áreas afectada por la malaria. Fue realizado una encuesta transversal aplicada a los portadores de malaria en 6 municipios, durante los meses de enero y febrero de 2007. Los datos recolectados fueron tabulados y analizados utilizando técnicas cuantitativas. Registros de campo auxiliaron en la composición de las impresiones del contexto de estas políticas en los locales investigados. La calidad del acceso a consultas y medicamentos, el vínculo con los profesionales y con las Unidades Básicas de Salud, el sistema de referencia y contra-referencia y el abordaje familiar y comunitario de la salud por los profesionales en los municipios del estudio también son deficientes en este nivel de atención. Existe una baja integración entre el Programa Nacional de Control de Malaria y la Atención Básica de un modo general.

Atención Primaria en Salud; Malaria; Brasil


ARTIGO ORIGINAL

Atenção primária à saúde em municípios de alto risco para malária

Ana Cristina Soares FerreiraI ; Martha Cecilia Suárez-MutisII; Monica Rodrigues CamposIII; Claudia Garcia Serpa Osorio de CastroIV

IEnfermeira, Doutoranda em Enfermagem, Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: anacrissofer@yahoo.com.br

IIMédica, Doutor em Medicina Tropical, Laboratório de Doenças Parasitárias, Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: marmutis@ioc.fiocruz.br

IIIEstatística, Doutor em Saúde Pública, Professor Adjunto, Escola Nacional de Saúde Pública, Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: monicamp@uol.com.br

IVFarmacêutica, Doutor em Saúde da Criança e da Mulher, Pesquisador Titular, Escola Nacional de Saúde Pública, Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: claudia.osorio@ensp.fiocruz.br

Endereço para correspondência

RESUMO

Neste estudo pretendeu-se caracterizar aspectos da Atenção Básica, na região da Amazônia Legal, principal área endêmica para malária, no Brasil. O Ministério da Saúde recomenda a expansão da Atenção Básica nas áreas malarígenas. Foi realizado inquérito transversal, aplicado aos portadores de malária, em 6 municípios, durante os meses de janeiro e fevereiro de 2007. Os dados coletados foram tabulados e analisados, utilizando-se técnicas quantitativas. Registros de campo auxiliaram na composição das impressões do contexto dessas políticas nos locais pesquisados. A qualidade do acesso a consultas e medicamentos, o vínculo com os profissionais e com as Unidades Básicas de Saúde, o sistema de referência e contrarreferência, e a abordagem familiar e comunitária da saúde pelos profissionais, nos municípios do estudo, ainda são deficientes nesse nível de atenção. Há baixa integração entre o Programa Nacional de Controle de Malária e a Atenção Básica, de modo geral.

Descritores: Atenção Primária à Saúde; Malária; Brasil.

Introdução

A Atenção Primária à Saúde foi aprovada em 1978, na Declaração da Conferência de Alma Ata, como a principal estratégia para atingir a meta Saúde para todos no ano 2000 (1). No Brasil, desde 1994, o Ministério da Saúde vem incentivando a expansão da atenção primária, também denominada Atenção Básica (AB), por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF)(2). De acordo com as recomendações da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, uma das ações prioritárias para a melhoria das políticas de controle da malária é a ampliação da rede de Atenção Básica na Amazônia(3). Na tentativa de se estabelecer uma política regional para a Atenção Básica nessa região, no período de 2003 a 2005, houve aumento no repasse financeiro para a Estratégia Saúde da Família e para o controle de endemias, mas essa discriminação positiva não foi estendida a todos os programas, e ainda há muita carência institucional nos municípios amazônicos(4).

Os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, parte do Maranhão, do Mato Grosso e do Tocantins compõem a Amazônia Legal. Essa região representa aproximadamente 60% do território brasileiro, abriga a floresta Amazônica e tem se apresentado como uma das últimas fronteiras agropecuárias do país, com formação de múltiplos assentamentos, resultando em desflorestamento e queimadas. A exploração madeireira, atividades de garimpo e extrativistas, sem gestão ambiental adequada, contribuem para tornar a região suscetível a conflitos sociais e ao incremento de riscos sanitários, entre os quais a malária(5). A Amazônia Legal é área endêmica em malária, no Brasil, concentrando em torno de 99,5% dos casos no país.

A situação epidemiológica desta doença é heterogênea, e os seus dados anuais são oscilantes. Segundo o Programa Nacional de Controle da Malária (PNCM), houve redução gradual no número de casos de malária, entre 1999 e 2002. A partir de 2003, houve incremento, atingindo 603.532 casos, em 2005. No ano 2006, foram notificados 540.047 casos, e os números decaíram, novamente, em 2008, quando foram notificados 315.716 casos(6).

O PNCM preconiza que o diagnóstico da malária seja feito através da coleta de gota espessa, para identificação do tipo de plasmódio(5). Essa atividade é prioritariamente desenvolvida pelos agentes da Secretaria de Vigilância Epidemiológica e da Gerência de Endemias nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e, quando necessário, nos domicílios. A Portaria nº44/GM, de 3 de janeiro de 2002(7), afirma a necessidade de incluir ações de epidemiologia e de controle de doenças na gestão da AB, enfatizando a importância da educação em saúde, relacionada a conhecimentos básicos de prevenção e controle da malária e da dengue. Essa Portaria também reafirma a importância do trabalho dos agentes comunitários de saúde (ACS), na prevenção e controle dessas doenças, e aponta a necessidade de incorporação das ações de vigilância, prevenção e controle dessas, nas atividades desenvolvidas pelos Programas de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e pela Estratégia Saúde da Família(7).

Falhas na proteção social da região, no entanto, como falta de assistência básica de saúde e de medidas efetivas para o controle integrado da malária, contribuem para a ocorrência de óbitos, sofrimentos e perdas sociais(5).

O objetivo neste presente artigo foi descrever e discutir características específicas da Atenção Básica e algumas de suas dimensões, em municípios de alto risco para malária, na Amazônia Legal. Poucos estudos têm sido desenvolvidos objetivando esclarecer o funcionamento da AB, em áreas onde a malária continua sendo endêmica, no Brasil. Foram encontradas referências sobre temas próximos, mas não relacionadas ao mesmo tema aqui proposto. Uma delas, mais atual, é a referência a respeito de como se desenvolver práticas de enfermagem na saúde da comunidade, no contexto de regiões vulneráveis como a Região Amazônica(8); e outras duas referências, mais antigas, a respeito da integração do controle da doença de Chagas na rede de atenção primária(9) e da erradicação bem-sucedida da malária na Costa Rica, através da colaboração dos serviços primários de saúde(10).

Métodos

O estudo aninhou-se ao Projeto Mafalda(11). Esse projeto avaliou a assistência farmacêutica no tratamento de malária não complicada (prescrição, dispensação e adesão), com financiamento do CNPq, contando com equipe de pesquisadores treinados nas visitas aos municípios, na Região Amazônica. Sendo o foco prioritário do estudo a assistência farmacêutica, ocorreram certas limitações no braço da AB como, por exemplo, o momento da abordagem dos pesquisados e a impossibilidade de contemplar algumas dimensões da Atenção Básica, como elenco de serviços e formação profissional. A amostra de usuários não foi aleatória para procura à AB, pois os usuários que participaram do inquérito eram portadores de malária.

Procurou-se incorporar aspectos da Atenção Básica propostos por Starfield(12) e adaptados à realidade brasileira por Almeida e Macinko(13). Foram utilizadas as dimensões acesso ou "porta de entrada", sistema de referência e contrarreferência, vínculo e enfoque familiar e comunitário da saúde. Realizou-se pesquisa de desenho transversal, de janeiro a fevereiro de 2007, em UBSs, nos municípios de Manaus e Presidente Figueiredo, no Amazonas; Porto Velho e Ariquemes, em Rondônia; e Cruzeiro do Sul e Rodrigues Alves, no Acre. Esses municípios representavam aqueles de pequeno, médio e grande porte e apresentavam as maiores incidências parasitárias anuais (IPA) para malária(6).

O critério de elegibilidade incluiu as UBSs que notificassem malária em áreas urbanas, ou que estivessem a menos de 50km dos centros urbanos, totalizando seis unidades. Comunidades mais distantes foram excluídas por motivo de logística. As unidades selecionadas não eram centros de referência para atendimento em malária grave e complicada, mas unidades de saúde para atendimento cotidiano na Atenção Básica, inclusive casos suspeitos de malária. As entrevistas foram aplicadas a pacientes com mais de 18 anos, que procuravam a UBS com queixa de malária. Foram excluídas as gestantes, pois as mesmas eram encaminhadas para tratamento de malária em centros de referência. Os pacientes foram abordados, no momento da realização do exame de gota espessa para diagnóstico de malária, pois se verificou, após o estudo piloto, ser essa a ocasião na qual a abordagem teria maior sucesso, além de oportunizar a observação da prescrição e dispensação dos antimaláricos, que aconteciam concomitantemente à coleta. A amostra pretendida era de 300 pacientes, e 271 aceitaram responder à entrevista. Os instrumentos de coleta de dados foram construídos com base nas dimensões da atenção citadas(13). O instrumento conteve 24 questões, e foi avaliado em estudo piloto, realizado no município de Tucuruí, no Estado do Pará. Dentre os pesquisadores de campo, participaram médicos, enfermeiros e farmacêuticos, todos previamente treinados. Para a análise de dados, foi utilizado o pacote estatístico SPSS 8.0, e os resultados apresentados de acordo com cada dimensão da Atenção Básica pesquisada.

Visando enriquecer a análise, foram utilizadas impressões do contexto dos municípios, registradas em diários de campo, durante as visitas, para ilustrar aspectos tangenciais à atenção básica na região. O estudo seguiu as normas éticas de pesquisa com seres humanos (Resolução CNS nº196/96). Foi solicitada aos gestores autorização para acesso às unidades. Os pacientes foram entrevistados mediante consentimento informado, após assinatura do termo. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, sob nº91/06 CAAE: 0086.0.031.000-06.

Resultados e Discussão

Contexto

Programa Nacional de Controle da Malária e Atenção Básica

Registrou-se em campo, importante presença dos serviços do PNCM, principalmente através das ações dos agentes de controle de endemias da Secretaria de Vigilância Epidemiológica, que realizavam a coleta de gota espessa para diagnósticos de malária, dispensação de medicamentos e busca ativa de novos casos. Verificou-se que o encaminhamento para a coleta da gota espessa, em caso de febre, é protocolar para a realização de diagnóstico diferencial, nos municípios visitados. Houve casos em que os agentes comunitários de saúde da ESF e os agentes de endemias trabalhavam na mesma região. O suporte recebido pelos agentes de controle de endemias caracterizava-se pela presença de um coordenador, denominado gerente de endemias, e de um microscopista. Esses técnicos, normalmente divididos em atenção aos indivíduos, e ao controle vetorial e ao meio ambiente, frequentemente desempenhavam seu trabalho em uma UBS, onde eram realizadas outras atividades da Atenção Básica.

Não foi observada, porém, integração entre essas atividades. Os serviços do PNCM geralmente funcionavam em anexos às UBSs, e os profissionais da Atenção Básica não atendiam pacientes portadores de malária. As exceções aconteceram em áreas rurais, quando o médico da ESF estava presente. Os agentes de endemias realizavam a consulta e a prescrição de antimaláricos, e só encaminhavam casos mais graves ou de grupo de risco, como crianças e gestantes, para a consulta médica ou de enfermagem, em centros de referência em malária. As ações do PNCM e da AB transcorriam, geralmente, de forma paralela, sem haver comunicação entre os profissionais. Essa situação é curiosa, visto que a mesma instância de gestão descentralizada deveria coordenar tanto a Atenção Básica quanto as ações de controle da malária(14).

Segundo os registros de campo, a atuação do médico ou do enfermeiro da Atenção Básica na assistência à malária, nos municípios visitados, era muito restrita ou inexistente. A responsabilidade do diagnóstico e do tratamento ficava a cargo dos agentes de controle de endemias e microscopistas.

Dimensões da Atenção Básica

O acesso aos serviços de saúde, na Atenção Primária, está relacionado à capacidade de os pacientes acessarem uma unidade de saúde, à facilidade em se obter uma consulta, à disponibilidade e ao uso dessa unidade como o primeiro contato para solucionar problemas de saúde(12). Sabe-se que um dos mais importantes resultados da ESF foi a melhora do acesso aos serviços básicos de saúde para a população(15).

A Atenção Básica, na região estudada, apresentou uma variedade de formatos. Havia unidades com equipes da ESF, UBSs tradicionais, e atendimento em Atenção Básica também em ambulatórios de policlínicas e hospitais gerais. Além de todos esses, serviços básicos de saúde eram realizados nos Distritos Sanitários Especiais Índígenas (DSEI). A presença de equipes da ESF ocorre majoritariamente nas áreas rurais, o que pode ser explicado pela concepção original do Programa Saúde da Família, cujo foco de implantação se fixava em áreas de maior risco e menor acesso(2).

Nos relatos de campo, gestores da AB informaram que os atendimentos em locais de difícil acesso acontecem na zona rural, nas comunidades ribeirinhas, ou em áreas urbanas periféricas. Nessas últimas, é grande a procura por atendimentos noturnos, principalmente em hospitais.

Nas áreas rurais de alguns municípios, havia equipes da ESF que abrangiam várias comunidades, outras se deslocavam diariamente para as áreas rurais, retornando à sede do município ao final do dia. Certas equipes visitavam, com diferente periodicidade, comunidades de sua área de abrangência, cumprindo calendário previamente elaborado. Nos casos em que havia o suporte de ambulâncias e estradas, buscavam-se pacientes da zona rural. Alguns municípios contavam com atendimento sazonal de saúde para as áreas rurais ou ribeirinhas, por meio de "mutirões" para atendimento de populações isoladas em períodos de cheias. A grande demanda por atendimento sobrecarregava essas equipes.

Em comunidades muito distantes, a presença da ESF, denotada pela atuação de agentes comunitários de saúde, foi limitada, mesmo nos casos de atendimento à malária. Registrou-se que pacientes provenientes dessas comunidades buscavam a UBS de municípios que não os seus, para consultas médicas ou atendimento para malária, por ser o ponto de acesso mais próximo.

Sobre a proporção de pacientes que referem utilizar a UBS como porta de entrada, 39,9% dos entrevistados responderam que procuram uma Unidade Básica de Saúde quando adoecem. O hospital público foi a segunda "porta de entrada" mais procurada, com 24,3% das respostas; 23,5% responderam que se tratam em casa; e 2,6% dos respondentes procuram uma farmácia quando adoecem. Nenhum paciente respondeu que paga serviços particulares do próprio bolso para tratamento de saúde, e apenas 1,1% da população entrevistada procurou serviço particular via plano de saúde, o que não é de se estranhar, na Região Norte, onde 46,2% das pessoas são consideradas pobres, proporção maior que a média nacional, de 33,4%(16).

Foi avaliado se os indivíduos receberam a prescrição dos medicamentos para atender seu problema de saúde (que não a malária); 82,6% dos entrevistados receberam prescrição, mas 62,4% não conseguiram todos os medicamentos na UBS. Tendo em vista o perfil da população atendida, é possível que os pacientes não tenham tido acesso aos medicamentos que não estavam disponíveis nas UBSs. Se adequadamente implantada, a AB poderia fazer grande diferença em cuidados e em acesso a medicamentos para essa população, reforçando o papel da UBS como "porta de entrada".

A população das áreas rurais e ribeirinhas pareceu ser o grupo mais vulnerável, uma vez que enfrenta as maiores barreiras de acesso: geográficas, financeiras e de informação. Essa população é grandemente afetada pela malária. A desvinculação entre atenção à malária e AB, contrariando a determinação do MS(7), causa duplicação de esforços assistenciais, e compromete a integralidade do sistema, afastando a possibilidade de se contar com cuidados básicos oferecidos de forma racional.

O vínculo envolve a existência de um médico ou uma equipe, e a utilização de determinado serviço de saúde pelos pacientes, para o cuidado em saúde, sem que haja limitação a doenças específicas(12). O registro adequado da história clínica do paciente e o agendamento de consulta de retorno também auxiliam o vínculo(12).

Um estudo no município de Ribeirão Preto, SP, avaliou o estabelecimento do vínculo entre o paciente e o profissional de saúde, nos serviços de controle da tuberculose. O desempenho foi considerado favorável nesse aspecto, oportunizando melhor adesão ao tratamento da doença. No entanto, ressaltou-se que os melhores resultados foram encontrados em programas com menor número de atendimentos, demonstrando que o excesso de demanda dificulta a comunicação e a relação doente/profissional de saúde e, consequentemente, o estabelecimento de vínculos(17).

Do total de entrevistados que receberam consulta médica, 34,4% relataram que receberam orientação para retornar com consulta agendada. Aproximadamente 65% dos entrevistados relataram não serem assistidos pelo mesmo médico ou pelo mesmo enfermeiro, quando procuram atendimento na UBS. Houve relatos sobre a ausência do médico, em tempo integral, na UBS. De qualquer modo, o paciente que busca o serviço, esperando dar continuidade ao seu tratamento com o mesmo médico ou enfermeiro, tem sua expectativa frustrada, nos municípios visitados. O esperado era que os pacientes atendidos obtivessem relacionamento interpessoal de longa duração com os profissionais de saúde que os atenderam(12).

Segundo registros de campo, a rotatividade de profissionais é alta, principalmente a do médico, e havia enfermeiros realizando atendimentos clínicos de exclusividade do médico, em municípios onde ocorria falta desse profissional. O difícil acesso aos municípios, as condições precárias de moradia, a falta de pagamento continuado por parte das prefeituras, assim como ausência de recursos mínimos para trabalhar, foram considerados alguns dos fatores que geram elevada rotatividade de profissionais. A diminuição da rotatividade dos profissionais de saúde envolvidos em atividades da Atenção Básica, na Região Amazônica, é também uma das metas do PNCM(3), que reconhece a importância da relação próxima entre os profissionais da atenção à malária e os da Atenção Básica.

Quando entrevistados sobre tempo necessário para sanar dúvidas durante a consulta, 44,1% dos pacientes relatam falta ou insuficiência. A Portaria no648/2006 do Ministério da Saúde(2) determina que dentre as ações de competência dos profissionais da ESF e da saúde bucal está a escuta qualificada das necessidades dos usuários.

Foram colhidas informações sobre a qualidade percebida de convívio entre pacientes e profissionais de saúde. As avaliações de convívio "muito bom" e "bom", somadas, resultaram em 64% das respostas. Convívios classificados como "regular" e "ruim" somaram 36% delas.

O vínculo pode ainda ser prejudicado pela descontinuidade do atendimento que, na zona rural de alguns municípios, é realizado pelas equipes de saúde apenas nos finais de semana, segundo os registros de campo. Essa situação também contribuiria para o desencontro entre os membros da equipe de saúde, em especial entre os agentes comunitários de saúde e os outros profissionais da equipe, que residem fora da área rural. A ausência da equipe na localidade também prejudica a supervisão, acompanhamento e educação continuada dos ACS, segundo os gestores, e contraria as normativas de capacitação do MS(2).

No Brasil, a literatura aponta para falhas no sistema de coordenação entre os serviços prestados pela Atenção Básica e os serviços de níveis de maior complexidade(18).

Sobre o sistema de referência e contrarreferência nos municípios visitados, apenas 67% dos pacientes relataram que os profissionais fizeram anotações em prontuário, durante a consulta. Dos pacientes encaminhados ao especialista, 43,8% receberam relatório médico dos profissionais de saúde da Atenção Básica, e 56,3% foram, efetivamente, à consulta ao especialista. Desses, apenas 32% receberam informações escritas para consulta de retorno com médico da UBS. De todas as pessoas encaminhadas para consulta com o especialista, somente 18,8% retornaram à UBS ao final do processo.

A porcentagem de encaminhamentos relatada pelos pacientes no estudo, 17,4%, aproxima-se às determinações do Ministério da Saúde, que estima que em torno de 15% dos agravos(2), atendidos na AB, sejam encaminhados para atendimento em nível secundário e terciário. O problema detectado foi em relação aos pacientes encaminhados que não se consultaram nesse outro nível de assistência, o que sugere a presença de barreiras de acesso ao atendimento, nos níveis secundário e terciário de atenção, e demanda reprimida para a AB(18).

Sobre o enfoque comunitário, Starfield(12) considera importante a influência de fatores ambientais, sociais e comportamentais nas causas e evolução das doenças, e sugere que os profissionais abordem esse tema com assistência mais efetiva.

Estudo realizado em São José do Rio Preto, SP, avaliou, de acordo com a percepção dos pacientes, o desempenho dos serviços de saúde no controle da tuberculose, nas dimensões enfoque na família e orientação para a comunidade. Quanto à dimensão enfoque na família, foi demonstrado que profissionais de saúde preocupam-se mais com os sinais e sintomas dos pacientes do que com as circunstâncias da vida capazes de comprometer a saúde da família. A dimensão orientação para a comunidade, caracterizada por atividades que dependem de pacientes, como busca de informações em cartazes e outros materiais educativos, apresentou pontuações altas. Porém, a pontuação não foi satisfatória, no que diz respeito à responsabilidade pela busca ativa de casos para a coleta de escarro, e estímulo à participação da comunidade para discutir os problemas de saúde relacionados à tuberculose(19).

Nos municípios estudados, 71% dos entrevistados relataram que os profissionais de saúde não perguntam sobre suas condições de vida durante a consulta. Mas cerca de 54% dos pacientes acharam que os profissionais conhecem os problemas mais importantes da comunidade. Aproximadamente 77% dos entrevistados admitem que os profissionais da UBS não trabalha com outras organizações da comunidade. A metade dos pacientes entrevistados relata estar recebendo visita domiciliar.

A partir das mudanças ocorridas nos critérios de financiamento da AB e nos parâmetros de cobertura por ACS, diminuindo a quantidade de pessoas acompanhadas por agente, houve incremento de 7.435 novos ACS nessa região(20). Essa ampliação pode ter gerado impactos positivos, mas há ainda um contingente de população que não está sendo coberto, sugerindo a necessidade de maior aumento no número de equipes e desse profissional para o acompanhamento das famílias. Só a presença do ACS não é suficiente, pois o mesmo deve estar capacitado, através de atividades de educação continuada, realizada por outros membros da equipe da ESF, como médicos e enfermeiros, das Secretarias Municipais e Estaduais, quando oportuno, e profissionais do PNCM. Além de capacitados, os ACS devem receber supervisão e coordenação constantes do enfermeiro e do médico da ESF, inclusive integradas às ações de supervisão dos gerentes de endemias.

Nessa dimensão, preocupam questões relacionadas à informação sobre a existência e a participação em alguma atividade preventiva sobre malária. Sobre atividades educativas a respeito de prevenção de malária, 69% dos pacientes não souberam de nenhuma prática desse tipo na comunidade, e 78% dos entrevistados jamais participaram de alguma atividade educativa sobre prevenção de malária. No entanto, ao confrontar-se este resultado com as ações desenvolvidas pelos profissionais durante a visita domiciliar, observa-se que 64,2% responderam que o profissional orientou quanto à prevenção de doenças. Pode-se perceber que as ações de prevenção estão sendo realizadas, de certa forma, durante a visita domiciliar, ou por certos ACS ou agentes de endemias.

Uma vez que os entrevistados são pacientes portadores de malária e moradores de áreas endêmicas, observam-se falhas nas medidas preventivas e nas ações mais efetivas de proteção social. O estudo demonstrou que os profissionais de saúde envolvidos na Atenção Básica, em especial os da ESF, estão enfrentando dificuldades para atuar nas comunidades através de abordagem de grupos de risco, em visitas domiciliares, ou para realizar trabalhos integrados com outras instituições da comunidade.

A responsabilização pela baixa abordagem comunitária e familiar não pode ser atribuída apenas aos profissionais de saúde, mas também aos gestores, que exercem papel fundamental no incentivo e controle dessa função. Além desses, o grau de organização da comunidade, expresso por meio das associações de moradores, da participação nos conselhos municipais de saúde, dentre outros, atuaria como suporte e regulação das ações comunitárias de saúde, exercendo o controle social(21).

Apesar de 50% de a população receber visitas em seu domicílio, é necessário aumentar a cobertura, tanto do ESF quanto das ações do PNCM, na região. A articulação das ações, tanto pelo aumento da quantidade de ACS, quanto pela atuação conjunta com os agentes de endemias, favoreceria o acompanhamento das famílias e as ações de vigilância epidemiológica.

A expansão gradual do número de equipes da ESF e do número de ACS(20), que ocorre atualmente na região, pode ser considerada fator positivo. Outros fatores que vêm favorecendo a integração AB e combate à malária são referentes ao PNCM, como: diagnóstico oportuno por gota espessa, abastecimento regular de antimaláricos e o empenho de equipes que se esforçam em benefício do tratamento, da prevenção e do controle da malária.

Conclusões

Sobre as características da Atenção Básica observadas nos municípios da área endêmica em malária, na região da Amazônia Legal, contemplados pelo estudo, pode-se destacar: (i) falta integração entre a Política Nacional de Atenção Básica e o Programa Nacional de Controle da Malária; (ii) a maioria dos médicos, enfermeiros e outros profissionais envolvidos na Atenção Básica trabalham distanciados do tratamento e prevenção da malária; (iii) há deficiências nas dimensões acesso, vínculo, sistema de referência e contrarreferência, e abordagem familiar e comunitária da saúde .

O desempenho das dimensões da AB demonstra que esse nível de atenção ainda necessita de importantes melhorias. Ainda, a região se beneficiaria por reavaliação das políticas de saúde, em relação à concessão de incentivos de fixação a profissionais de saúde da Atenção Básica, supervisão dos elementos necessários à integração entre a AB e o controle da malária, à avaliação de ações de gestores e profissionais da Atenção Básica, e à capacitação e coordenação de ações conjuntas entre os diversos tipos de agentes de saúde atuantes na região.

Para a enfermagem, o estudo contribui para mostrar o contexto em que esses profissionais desenvolvem seu trabalho na Região Amazônica: condições em que há dicotomias entre as políticas de saúde, situações em que, às vezes, o médico não está presente, falta de estrutura adequada, prejudicando a eficiência das ações em saúde e precarizando seu trabalho.

Desafios estão sendo enfrentados, no Brasil, em relação à expansão e à qualificação da Atenção Básica e à consolidação da Estratégia Saúde da Família. Entretanto, as políticas de saúde voltadas para a região endêmica em malária, no Brasil, devem ser planejadas atentando-se às suas peculiaridades: uma região com alta rotatividade de profissionais, difíceis condições geográficas e com população de baixa escolaridade e baixo nível socioeconômico. Por tudo isso, a região necessita de políticas de proteção social eficazes, dentre essas, as estratégias de qualificação e o fortalecimento da integração entre a Atenção Básica e o Programa Nacional de Controle da Malária.

Referências

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  • Corresponding Author:
    Ana Cristina Soares Ferreira
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Recebido
      14 Mar 2011
    • Aceito
      11 Out 2011
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