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Artrite reumatóide, terapia imunossupressora e tuberculose

EDITORIAL EDITORIAL

Artrite reumatóide, terapia imunossupressora e tuberculose(* Endereço para correspondência: Fernando Augusto Fiuza de Melo R. Abílio Soares, 233, conj. 81, Paraíso São Paulo, SP, CEP.04005-000 e-mail: fernandofiuza@terra.com.br )

Claudia ManginiI; Fernando Augusto Fiuza de MeloII

IMédica do Serviço de Infectologia e Controle de Infecção Hospitalar do Hospital do Câncer, e do Serviço de Hematologia e Transplante de Medula Óssea do Hospital Brigadeiro

IIMédico do Instituto Clemente Ferreira e do Serviço de Doenças do Aparelho Respiratório do HSPE - Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Doutor em Medicina pela EPM-UNIFESP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Fernando Augusto Fiuza de Melo R. Abílio Soares, 233, conj. 81, Paraíso São Paulo, SP, CEP.04005-000 e-mail: fernandofiuza@terra.com.br

A artrite reumatóide (AR) é uma doença autoimune de etiologia não esclarecida, caracterizada por inflamação sinovial e erosão óssea e, em alguns casos, com manifestações extra-articulares.

Muitos avanços foram obtidos na terapia da AR, com maiores evidências do benefício do tratamento precoce e com uso de drogas como metotrexato, ciclosporina, corticosteróides e leflunomide. Novas opções de tratamento foram desenvolvidas e possivelmente mais benefícios possam ser obtidos com a introdução dos agentes modificadores da resposta biológica, em especial os inibidores do fator de necrose tumoral (TNF).

O uso de drogas imunossupressoras (metotrexato, corticoterapia, ciclosporina, azatioprina, etc), tem sido implicado no desenvolvimento de infecções oportunísticas e esta preocupação também deve incluir os agentes anti-TNF. A inibição do TNF-alfa, uma importante citocina na regulação do sistema imunológico, diminui a resistência às infecções causadas por patógenos intracelulares, entre eles o bacilo da tuberculose, especialmente quando associado a outras drogas imunossupressoras, como metotrexato e corticóides. Está bem documentada a associação da tuberculose com o uso de corticosteróides em doses imunossupressoras (> 2mg/kg), enquanto que, com doses baixas de corticóides, a incidência aumentada de infecções estaria mais relacionada quando este se combina com outras drogas (metotrexate, por exemplo).

Até o final de 2003 o FDA já havia recebido cerca de 250 notificações de tuberculose em pacientes utilizando anti-TNF(1). Esses dados devem despertar especial atenção no Brasil, país onde a tuberculose constitui um sério problema de saúde pública, com uma estimativa do Ministério da Saúde de que 50 milhões de brasileiros estejam infectados pelo bacilo tuberculoso e, portanto, com possibilidade de desenvolver a doença sob várias formas(2). Se considerarmos que a AR tem o pico de incidência entre os 45 e os 65 anos, a preocupação dobra, pois aumenta a incidência de infectados pelo bacilo de Koch. A associação com outras patologias imunossupressoras, como o diabetes, e a forma como a tuberculose se apresenta nessa faixa etária (bem mais insidiosa que nos mais jovens e de mais difícil diagnóstico) também alerta para a importância dessa infecção nos pacientes com AR(3).

Ainda que com atraso, é necessário alertar especialistas e clínicos para cuidados preventivos e de tratamento da tuberculose em pacientes com AR, que necessitem receber terapia imunossupressora.

Sugerimos um roteiro, mostrado a seguir, que pode ser usado como guia de investigação e orientação nos pacientes portadores de AR com indicação de imunossupressores, particularmente a terapia anti-TNF.

As características clínicas dos casos de tuberculose associados a imunossupressão descritas nos países desenvolvidos (aproximadamente 40% dos casos com a forma extrapulmonar) provavelmente não se aplicam ao Brasil. Como existe alta prevalência de indivíduos bacilíferos, a reinfecção exógena poderá ser um aspecto marcante em nosso meio, enquanto formas de reativação endógena (portanto com maior possibilidade de manifestação extrapulmonar) predominam em países com baixa prevalência da doença.

Apresentamos em seguida um roteiro que poderá servir de guia para o diagnóstico da tuberculose infecção (latente) ou doença (ativa)(4,5).

A. AVALIAÇÃO INICIAL

1) HISTÓRIA CLÍNICA

- História de tratamento anterior para tuberculose;

- História de quimioprofilaxia anterior para infecção tuberculosa;

- Ter tido contato intradomiciliar ou institucional, com portadores de tuberculose;

- Considerar paciente sintomático (suspeita de tuberculose) quando: tosse seca ou produtiva por 3 semanas ou mais, febre vespertina, sudorese noturna, perda ponderal (>10% do peso ideal), inapetência e astenia;

- Considerar paciente assintomático: ausência dos sintomas acima descritos.

2) RAIO-X DE TÓRAX

Deverá obedecer a seguinte normatização:

- Normal: não apresenta imagens patológicas em campos pleuro-pulmonares;

- Suspeito: imagem sugestiva de tuberculose ativa ou de complexo primário;

- Seqüela: imagens sugestivas de lesões residuais;

- Outras doenças: imagens sugestivas de pneumopatia não tuberculosa (infecções bacterianas, micoses, abscessos, neoplasias ou alterações relacionadas a AR).

3) TESTE TUBERCULÍNICO (PPD):

É um método auxiliar no diagnóstico da tuberculose, e quando positivo indica infecção, não sendo suficiente para diagnóstico da doença.

No Brasil, a prova tuberculínica utilizada é o PPD RT23. O resultado é registrado pelo tamanho da enduração em milímetros, sendo classificado como:

- Não reator: 0-4 mm - indivíduo não infectado pelo M. tuberculosis ou com hipersensibilidade reduzida.

- Reator fraco: 5-9 mm - indivíduo vacinado com o BCG ou infectado pelo M. tuberculosis ou por outra micobactéria.

- Reator forte: >10 mm - indivíduo infectado pelo M. tuberculosi, que pode estar doente ou não, e vacinado com BCG nos últimos dois anos.

Considerar como positivo os testes com valores de 5 mm ou mais. Desta forma, parte da possível necessidade de investigar a infecção relacionada ao fenômeno "booster" será evitada. Este fenômeno ocorre quando, à repetição do teste tuberculínico, no caso de não reatores ou reatores fracos, verifica-se valores mais altos, expressando um retorno da memória imunológica, antes deprimida ou diminuída, estimulada pelo primeiro teste. Um teste inicialmente não reator ou reator fraco, num segundo teste, após 4 ou mais semanas pode ser considerado indicativo de infecção ou doença se mostrar um incremento de mais de 6 mm. A ocorrência entre nós deste fenômeno, em diversos estudos realizados, varia entre 12% e 24%6. Quando a enduração for menor que 5mm recomenda-se a realização do "booster", especialmente diante de história epidemiológica positiva.

Além disso, o uso deste valor de corte de 5mm ao invés de 10 mm para exames positivos, também minimiza a interferência da AR, bem como do uso de tratamento imunossupressor prévio sobre a hipersensibilidade. Este valor de corte (5 mm) é recomendado pelo Ministério da Saúde para pacientes considerados de alto risco, como infectados por HIV e imunossuprimidos(5).

Alguma dúvida pode surgir quanto ao impacto da BCG-ID na interpretação do PPD. O BCG-ID usado no país e aplicado ao nascer, promove resposta ao PPD com enduração idêntica à resposta da infecção natural, durante um certo período, mas tende a diminuir progressivamente após dois anos. Portanto, o achado de reatores fortes (>10mm) após dois anos, já sugere infecção natural pós BCG. Como a imunidade conferida pelo BCG é dependente do linfócito de memória, ela pode se prolongar por 15 a 19 anos. Acima deste período pode-se considerar que a vacina não mais interfere na resposta do PPD. Também neste caso, o uso de 5 mm como corte, particularmente em população portadora de AR, em geral adulto, da terceira ou quarta década em diante, dificilmente poderia ser resultado da vacinação normalmente aplicada após o nascimento. A revacinação com o BCG-ID recomendada pelo Programa de Controle da Tuberculose para a faixa de 7 a 14 anos, tende a ser suspensa, pois os resultados de um estudo cooperativo do Ministério da Saúde não mostraram acréscimo de proteção. A recomendação de revacinação de profissionais que entram para serviços de saúde são exceções e como tal devem ser tratadas.

B - QUIMIOPROFILAXIA

A quimioprofilaxia reduz o risco de adoecimento a partir da reativação endógena do bacilo e está indicada para pacientes com AR que necessitem de uso de qualquer terapia imunossupressora, que sejam assintomáticos para tuberculose mas que apresentem:

- PPD reator forte (> 5mm) independente do Raio-X de tórax (normal ou com sinais de seqüela de tuberculose); - PPD não reator (< 5mm), porém com passado de tuberculose, quimioprofilaxia prévia ou Raio-X de tórax compatível com sinais de seqüela, conforme o fluxograma de atendimento abaixo (Figura 1).


A droga de escolha para a quimioprofilaxia da tuberculose, no Brasil, é a isoniazida (INH), na dose de 10 mg/kg/dia, com dose máxima de 300 mg, via oral, diária, recomendado no país por 6 meses consecutivos(5).

A quimioprofilaxia não confere proteção permanente e deve cair com o passar dos anos. O Consenso de Tuberculose(7) de 1997 reconhece este fato, mas não define um período que sirva de base para a repetição da mesma. Possivelmente, se um tratamento imunossupressor for introduzido ou repetido no período de dois anos após o uso da quimioprofilaxia, não seria incorreto a repetição da mesma.

Os pacientes submetidos a quimioprofilaxia podem iniciar o tratamento da AR em vigência dela, e devem ser monitorados periodicamente para detecção de efeitos colaterais com interrogatório clínico, controle de hemograma e provas de função hepática(2,8). Devem também ser orientados para suspender a INH e procurar atendimento médico no caso de aparecimento de algum dos sintomas abaixo relacionados.

A INH é uma das drogas menos tóxicas usadas em medicina. Os efeitos adversos da INH são bastante conhecidos em razão do amplo e sistemático uso da mesma, sempre por tempo prolongado. Calcula-se que incidam em 5% dos que a utilizam, com menos de 1% de efeitos graves que exijam a sua interrupção(7).

A variedade de efeitos é enorme e podem ser enumerados topograficamente:

• Neurológicos e psiquiátricos:

- Ação estimulante central: cefaléia, euforia, excitação, alterações da memória, disartria, vertigens, convulsões.

- Ação simpatomimética: sudorese, secura na boca, hipotensão postural, dilatação pupilar, dermatografismo.

- Ação inibitória: depressão, sedação, sonolência, indiferença, astenia, coma.

- Encefalopatia subaguda: confusão mental, desorientação, delírios, mania, paranóia, onirismo.

- Sistema nervoso periférico: polineurite, neurite ótica.

- Alterações comportamentais: irracionalidade, neuroses, alterações da afetividade, emoções oníricas, tentativas de suicídio.

• Dermatológicos:

- Reações alérgicas e acneiformes, pruridos.

• Digestivos:

- Náuseas, vômitos, obstipação, cólica, diarréia, aumento assintomático de SGOT, hepatite.

• Hematológicos:

- Depressão medular, eosinopenia, meta-hemoglobinemia.

• Endocrinológicos:

- Alterações do metabolismo glicídico, ginecomastia.

- Cushing.

• Imunológicos:

- Síndrome LE-simile, artralgias, adenopatias.

• Urinários:

- Disúria, polaciúria, retenção urinária.

• Interações medicamentosas:

- Absorção diminuída com antiácidos e derivados imidazólicos (usar horas depois).

- Hidantoinatos e carbamazepina (aumento da hepato-toxicidade).

- Acetaminofeno (diminui o metabolismo).

- Benzodiazepínicos (aumenta seu efeito).

- Sulfoniluréias (promove hipoglicemia).

- Queijos e vinhos (inibição da MAO - hipertensão).

Nota importante: apesar desta multiplicidade de efeitos adversos e interações, raramente há necessidade de interrupção da droga(7).

Os pacientes com indicação de quimioprofilaxia devem ser encaminhados às unidades básicas de saúde com relatório médico justificando a necessidade da quimioprofilaxia, conforme as indicações propostas pelo Ministério da Saúde(2,5):

• Imunodeprimidos por uso de drogas ou por doenças imunodepressoras e contatos intradomiciliares de tuberculosos, sob criteriosa decisão médica.

• Reatores fortes à tuberculina, sem sinais de tuberculose ativa, mas com condições clínicas associadas a alto risco de desenvolvê-la, como (...) pacientes submetidos a tratamento com imunodepressores.

Por fim, é necessário ressaltar que mesmo com os cuidados preventivos e preocupações para evitar a emergência de tuberculose nos pacientes em uso de imunossupressores, esta pode ocorrer. Por este motivo o organograma prevê o seguimento de rotina dos pacientes com AR em uso de imunossupressores para que a história clínica seja constantemente revista de forma a identificar precocemente os contatos com tuberculose, além dos sinais e sintomas do desenvolvimento da doença.

* Instituto Clemente Ferreira e Serviço de Doenças do Aparelho Respiratório do HSPE - Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Serviço de Infectologia e Controle de Infecção Hospitalar do Hospital do Câncer, e Serviço de Hematologia e Transplante de Medula Óssea do Hospital Brigadeiro.

  • 1
    Hamilton CD. Tuberculosis in the cytokine era: what rheumatologists need to know. Arthritis Rheum 2003;48(8):2085-91.
  • 2
    Ministério da Saúde. Caderno de Atenção Básica - Manual Técnico para o Controle da Tuberculose. Brasília - DF, 2002.
  • 3
    Duarte S, Nascimento AV, Marques JC, Sgaib NM. Tuberculose no idoso. J Pneumol 1993;19:96-8.
  • 4
    Furst DE, Cush J, Kaufmann S, Siegel J, Kurth R. Preliminary guidelines for diagnosing and treating tuberculosis in patients with rheumatoid arthritis in immunosupressive trials or being treated with biological agents. Ann Rheum Dis 2002;61(Suppl II):62-3.
  • 5
    Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Tuberculose: Guia de Vigilância Epidemiológica, Brasília - DF, 2002.
  • 6
    Prevalência da infecção pelo Mycobacterium tuberculosis em profissionais de saúde do Hospital São Paulo, de acordo com o local de trabalho. Pedro Aurélio Mathiase Neto, Tese de Mestrado, EPM/UNIFESP, 1998.
  • 7
    Ministério da Saúde/Coordenação Nacional de Pneumologia Sanitária - Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. I Consenso Brasileiro de Tuberculose. J Pneumol 1997;23: 281-342.
  • 8
    Morrone N, Marques WJF, Fazolo N, Soares LCP, Macedo L. Reações adversas e interações das drogas tuberculostáticas. J Pneumol 1993;19:52-9.
  • Endereço para correspondência:
    Fernando Augusto Fiuza de Melo
    R. Abílio Soares, 233, conj. 81, Paraíso
    São Paulo, SP, CEP.04005-000
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Jul 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2003
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