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Panorama da compra de alimentos da agricultura familiar para o Programa Nacional de Alimentação Escolar

Panorama of purchasing food products from family farmers for the Brazilian School Nutrition Program

Resumos

O artigo tem por objetivo apresentar um panorama da compra de alimentos provenientes da agricultura familiar, analisando o seu cumprimento frente às novas diretrizes de execução do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Trata-se de ensaio crítico realizado com base em revisão da literatura e em dados oficiais fornecidos pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação/Ministério da Educação/PNAE, referentes às prestações de contas dos órgãos gestores municipais relativas ao exercício 2010. O orçamento do PNAE em 2010 foi de aproximadamente R$ 2,5 bilhões e beneficiou 45,6 milhões de estudantes da educação básica e de jovens e adultos. Deste montante, R$ 150.397.052,68 foram destinados para a compra da agricultura familiar. No Brasil, 47,4% dos municípios adquiriram alimentos da agricultura familiar para o PNAE e o percentual médio de compra nestes municípios foi de 22,7%. Em função do caráter recente da legislação, destaca-se a necessidade de organização de gestores e agricultores para a efetivação desta normativa nos diferentes contextos brasileiros e assim contribuir tanto para o desenvolvimento econômico local, como para o fornecimento de refeições aos escolares que atendam aos princípios de uma alimentação saudável e adequada.

Alimentação escolar; Saúde escolar; Agricultura sustentável; Programas e políticas de nutrição e alimentação


This article seeks to describe the viewpoint of purchasing food products from family farmers, analyzing their performance within the new guidelines of the Brazilian School Nutrition Program (PNAE). It is a critical assessment based on a review of the literature and the official data provided by the National Fund for the Development of Education/Ministry of Education relating to 2010. The program budget in 2010 was approximately R$2.5 billion and attended 45.6 million children, adolescents and adults. From the total amount, R$150,397,052.68 was allocated for the purchase of agricultural products from family farmers. In Brazil, 47.4% of the local councils acquired food products from family farmers for the Brazilian School Nutrition Program and the purchase percentage was, on average, 22.7%. Given the nature of recent legislation, other aspects should be explored in order to strengthen the compliance with the regulations in different Brazilian contexts and thus contribute both to local economic development and the provision of school meals which fulfill the principles of a healthy and adequate diet.

School meals; School health care; Sustainable agriculture; Nutrition and food programs and policies


ARTIGO ARTICLE

Panorama da compra de alimentos da agricultura familiar para o Programa Nacional de Alimentação Escolar

Panorama of purchasing food products from family farmers for the Brazilian School Nutrition Program

Elisa Braga SaraivaI; Ana Paula Ferreira da SilvaII; Anete Araújo de SousaI; Gabrielle Fernandes CerqueiraIII; Carolina Martins dos Santos ChagasIII; Natacha ToralIII

ICentro Colaborador em Alimentação e Nutrição do Escolar de Santa Catarina, Universidade Federal de Santa Catarina. Campus Universitário, Centro de Ciências da Saúde, Departamento de Nutrição sala n° 205, Trindade. 88040-970 Florianópolis Santa Catarina. ebsaraiva@gmail.com

IIPrograma de Pós-graduação em Nutrição, Universidade Federal de Santa Catarina

IIICentro Colaborador em Alimentação e Nutrição do Escolar, Universidade de Brasília

RESUMO

O artigo tem por objetivo apresentar um panorama da compra de alimentos provenientes da agricultura familiar, analisando o seu cumprimento frente às novas diretrizes de execução do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Trata-se de ensaio crítico realizado com base em revisão da literatura e em dados oficiais fornecidos pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação/Ministério da Educação/PNAE, referentes às prestações de contas dos órgãos gestores municipais relativas ao exercício 2010. O orçamento do PNAE em 2010 foi de aproximadamente R$ 2,5 bilhões e beneficiou 45,6 milhões de estudantes da educação básica e de jovens e adultos. Deste montante, R$ 150.397.052,68 foram destinados para a compra da agricultura familiar. No Brasil, 47,4% dos municípios adquiriram alimentos da agricultura familiar para o PNAE e o percentual médio de compra nestes municípios foi de 22,7%. Em função do caráter recente da legislação, destaca-se a necessidade de organização de gestores e agricultores para a efetivação desta normativa nos diferentes contextos brasileiros e assim contribuir tanto para o desenvolvimento econômico local, como para o fornecimento de refeições aos escolares que atendam aos princípios de uma alimentação saudável e adequada.

Palavras-chave Alimentação escolar, Saúde escolar, Agricultura sustentável, Programas e políticas de nutrição e alimentação

ABSTRACT

This article seeks to describe the viewpoint of purchasing food products from family farmers, analyzing their performance within the new guidelines of the Brazilian School Nutrition Program (PNAE). It is a critical assessment based on a review of the literature and the official data provided by the National Fund for the Development of Education/Ministry of Education relating to 2010. The program budget in 2010 was approximately R$2.5 billion and attended 45.6 million children, adolescents and adults. From the total amount, R$150,397,052.68 was allocated for the purchase of agricultural products from family farmers. In Brazil, 47.4% of the local councils acquired food products from family farmers for the Brazilian School Nutrition Program and the purchase percentage was, on average, 22.7%. Given the nature of recent legislation, other aspects should be explored in order to strengthen the compliance with the regulations in different Brazilian contexts and thus contribute both to local economic development and the provision of school meals which fulfill the principles of a healthy and adequate diet.

Key words School meals, School health care, Sustainable agriculture, Nutrition and food programs and policies

Introdução

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é a maior e mais antiga política pública no Brasil. A alimentação escolar é defendida como um direito dos estudantes e considerada uma das estratégias de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Recentemente, novas diretrizes de execução do PNAE foram estabelecidas a partir da Lei Federal no 11.947 e da Resolução no 38/Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), promulgadas em julho de 20091,2.

O FNDE faz os repasses de verbas provenientes do governo federal para a alimentação escolar dos estados e municípios, com base no número de alunos matriculados na educação básica. Uma das diretrizes estipula que, no mínimo, trinta por cento (30%) do total destes recursos sejam destinados à compra de alimentos, preferencialmente orgânicos, produzidos pela agricultura familiar (AF), local, regional ou nacional1,2. O Programa, a partir destas diretrizes, tornou-se um importante segmento institucional para aquisição de alimentos da agricultura familiar.

Neste contexto, o estímulo e o apoio à agricultura familiar têm se mostrado relevantes para a formulação e a implementação de ações municipais de SAN e de desenvolvimento local, que visem promover o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA)3-5. Assim, a produção de alimentos, especialmente a da agricultura familiar, tem se fortalecido com iniciativas de articulação de políticas públicas, a exemplo do PNAE com o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF).

Dados do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional sobre a produção da AF mostram a contribuição que este segmento representa na produção de alimentos para o mercado interno, destacando a necessidade de apoiar este modelo produtivo, por meio de políticas agrárias e agrícolas, bem como a valorização da produção destes agricultores6.

Em função do caráter recente da legislação, análises da compra de alimentos para a alimentação escolar são relevantes, considerando a necessidade de fortalecer a agricultura familiar, de estimular a utilização de alimentos regionais, ou seja, que respeite os hábitos alimentares locais e o aumento do consumo de alimentos in natura por parte dos escolares, como definido nas diretrizes do PNAE2.

Diante destas considerações, o presente artigo tem como objetivo apresentar um panorama da compra de alimentos provenientes da AF, analisando o seu cumprimento frente às novas diretrizes de execução do PNAE.

Inicialmente, é apresentada a evolução histórica da aquisição dos alimentos para o PNAE, com base na legislação nacional da alimentação escolar. Em seguida, são pontuadas as informações sobre a AF no Brasil, a partir da literatura científica sobre o tema. Posteriormente, é analisado o percentual de compras de alimentos da AF, com base em dados oficiais fornecidos pelo FNDE/MEC referente ao exercício 2010, bem como as justificativas do não atendimento dos 30% por parte dos municípios. O artigo finaliza com a discussão dos desafios e perspectivas de ampliação da compra de alimentos da AF para a alimentação escolar.

Evolução histórica da compra de alimentos para a alimentação escolar

A evolução da gestão da alimentação escolar no Brasil, no que diz respeito ao planejamento e à forma de aquisição de alimentos, tais como o processo de descentralização dos recursos, a obrigatoriedade para a compra de alimentos básicos e a determinação da lista de alimentos básicos na elaboração de cardápios, foi determinante para o fortalecimento do Programa e da AF.

De 1955 até 1993 a gestão da alimentação escolar era centralizada. Os cardápios eram planejados pelo órgão gerenciador (Ministério da Educação), os gêneros eram adquiridos via processo licitatório e a distribuição era realizada para todo o território nacional7.

A partir de 1994, a Lei no 8.913, de 12/07/1994 promove a descentralização dos recursos, ficando a execução do programa sob responsabilidade das Secretarias de Educação dos municípios, dos Estados e do Distrito Federal. O gerenciamento do programa passa a ser realizado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) por meio da Medida Provisória nº 1784, de 14/12/19987. Outra vantagem deste processo foi a redução ou a exclusão dos alimentos formulados, pré-processados, desidratados no cardápio que exigiam pouco tempo de pré-preparo, sem refrigeração, baixos volumes e menor peso, muitas vezes necessitando apenas do acréscimo de água8,9.

Ainda, a Medida Provisória no 2178, de 28/06/2001 torna obrigatório o percentual de 70% dos recursos provenientes do FNDE para a aquisição de gêneros básicos, devendo-se respeitar os hábitos alimentares regionais, a vocação agrícola do município e promovendo o desenvolvimento da economia local7.

A Resolução/CD/FNDE no 15 de 16/06/2003 estabelece critérios e formas de transferência de recursos do PNAE, e determina a lista de alimentos básicos a serem utilizados na elaboração dos cardápios7.

Recentemente, diretrizes de execução do PNAE foram estabelecidas através da Lei no 11.947/2009 e da Resolução nº 38/FNDE/2009. O principal avanço refere-se ao percentual para a compra de alimentos: no mínimo, trinta por cento (30%) do total de recursos repassados pelo FNDE devem ser destinados à compra de alimentos, preferencialmente orgânicos, produzidos pela agricultura familiar local, regional ou nacional, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e as comunidades quilombolas1,2.

Esta mesma Resolução2 estabeleceu diretrizes para o Programa, quais sejam: o emprego da alimentação saudável e adequada; a inclusão da educação alimentar e nutricional no processo de ensino aprendizagem; a descentralização das ações e a articulação, em regime de colaboração, entre as esferas de governo e o apoio ao desenvolvimento sustentável, com incentivos para a aquisição de gêneros alimentícios diversificados, produzidos e comercializados em âmbito local e preferencialmente pela agricultura familiar e por empreendedores familiares, priorizando as comunidades tradicionais indígenas e as de remanescentes de quilombos.

Portanto, a partir desta regulamentação, abriu-se mais um espaço de produção e comercialização para a agricultura familiar, além de promover o consumo de alimentos in natura por parte dos escolares, podendo reduzir assim a oferta de alimentos processados1.

A aproximação entre agricultores familiares e consumidores tem promovido uma integração baseada em princípios de sustentabilidade, podendo contribuir com a redução do êxodo rural e da pobreza rural e urbana. A Lei no 11.947/2009, ao tornar obrigatória a compra da agricultura familiar, ampara o produtor quanto à aquisição dos alimentos e cria um meio para que este possa comercializar seus alimentos, através da dispensa do processo licitatório10.

O PNAE como instrumento de fortalecimento da agricultura

A Lei no 11.326 de 2006 define como agricultor familiar e empreendedor familiar "os indivíduos que praticam atividades no meio rural; não detenham mais que quatro módulos fiscais, ou seja, pequeno proprietário; utilizem mão de obra da própria família e tenha percentual mínimo da renda familiar originada de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento, na forma definida pelo Poder Executivo"11.

A Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) destaca que a maior parte do abastecimento da mesa dos brasileiros é proveniente da agricultura familiar que responde por 7 de cada 10 empregos no campo, ocupando 80% do setor rural. Em 2009, 60% dos produtos que compuseram a cesta familiar distribuída pela CONAB foram da agricultura familiar12.

Portanto, o apoio a estes agricultores como forma de estimular a produção de alimentos sustentáveis é considerado essencial, não só por sua capacidade de geração de ocupação e de renda, como também pela maior diversidade e oferta de alimentos de qualidade, menor custo com transporte, confiabilidade do produto, preservação do hábito regional e da produção artesanal, promovendo uma conexão entre o campo e a cidade13,14.

O apoio à AF insere-se em um conjunto de ações públicas iniciadas na década de 1980. Estas ações, frutos de debates nacionais e internacionais, foram motivadas pela crise do desenvolvimento econômico no período, que gerou a instabilidade monetária, o endividamento, a desaceleração do crescimento econômico, o incremento da pobreza rural e urbana e a degradação dos recursos naturais15.

Na década de 1990, o Ministério da Agricultura e do Abastecimento criou o Programa de Valorização da Pequena Produção Rural (PROVAP), que serviu de base para a criação no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), em 19954.

Em 2003, foi criado o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) através da Lei no 10.696, dentro da estratégia federal que visa assegurar o DHAA e a SAN – o Programa Fome Zero16,17. O PAA tem por objetivo garantir o acesso aos alimentos em quantidade e regularidade aos indivíduos em insegurança alimentar e nutricional, a inclusão social no campo e a redução do êxodo rural. O Programa também contribui para a formação de estoques estratégicos, possibilitando aos agricultores familiares o armazenamento de seus produtos para posterior comercialização a um preço justo18.

Os responsáveis pela gestão deste programa são o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome juntamente com os governos estaduais, municipais, sociedade civil, organizações da AF e rede de entidades socioassistenciais18. O apoio à AF foi, portanto, inserido dentro das políticas públicas objetivando a SAN, por meio da distribuição de renda e geração de empregos.

Nas análises de Machado et al.19, a aquisição de alimentos do PAA para a alimentação escolar mostrou-se uma importante iniciativa para minimizar ou até mesmo sanar a deficiência no consumo de alimentos e ao mesmo tempo promover a produção familiar nos diferentes municípios. No conjunto destas políticas, o PAA foi uma das estratégias utilizadas por alguns municípios, antes do estabelecimento das novas diretrizes do PNAE em 20094.

Ainda, no processo de compras de produtos provenientes da agricultura familiar para o PNAE, os critérios utilizados são os mesmos do PAA: "dispensa do processo licitatório, desde que os preços sejam compatíveis com os praticados no mercado local e atendam aos critérios de qualidade"20.

No Quadro 1 são descritas as etapas de compra de alimentos da agricultura familiar para a alimentação escolar.


A observância do percentual de 30% da compra da AF é disciplinada pelo FNDE e poderá ser dispensada quando houver impossibilidade de emissão do documento fiscal correspondente; inviabilidade de fornecimento regular e constante dos gêneros alimentícios e condições higiênico-sanitárias inadequadas20.

Para isso, o FNDE utiliza instrumentos de prestação de compras. Um destes instrumentos é o Demonstrativo Sintético Anual (DSA)20 que apresenta um campo específico para que as Entidades Executoras informem quanto foi gasto do recurso do PNAE na compra de alimentos desse tipo de produtor rural. Outro instrumento é o Parecer Conclusivo dos Conselheiros de Alimentação Escolar (CAE)20. Com base nestas informações é possível analisar e acompanhar a execução destas compras.

Panorama das compras de alimentos da agricultura familiar no Brasil: exercício de 2010

O orçamento do programa em 2010 foi de aproximadamente R$ 2,5 bilhões e beneficiou 45,6 milhões de estudantes da educação básica e de jovens e adultos7. Deste montante, R$ 150.397.052,68 foram destinados para a compra da agricultura familiar, segundo dados do DSA, instrumento de prestação de contas dos municípios e estados, do PNAE/FNDE, 2010, em estudo realizado pela equipe do Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição do Escolar da Universidade Federal de Brasília (Cecane/UnB).

A Tabela 1 apresenta o número de DSA analisados, por região do Brasil e a situação dos municípios e estados referente à compra da agricultura familiar para a alimentação escolar, segundo regiões e Brasil, no ano de 2010.

No Brasil, 47,4% dos municípios adquiriram alimentos da AF para o PNAE e o percentual de compra nestes municípios foi, em média, de 22,7%. A região Sul do país apresentou o maior percentual de compra de alimentos da agricultura familiar (71,3%) e o Centro-Oeste apresentou o menor (35,3%). Destaca-se que o ano de 2010 foi o primeiro ano de obrigatoriedade da compra da agricultura familiar e que um número considerável de municípios brasileiros já iniciou este processo.

Segundo dados do Censo Agropecuário 2006 a agricultura familiar no Brasil é responsável por parte da produção nacional, sendo 87% da produção de mandioca, 70% de feijão, 46% de milho, 38% de café, 34% de arroz, 58% do leite, 59% dos suínos, 50% das aves, 30% dos bovinos e 21% do trigo21.

Guilhoto et al.22 em estudo sobre a importância da agricultura familiar no Brasil indica que nas regiões Norte, Sul e Nordeste a AF tem uma contribuição expressiva para o Produto Interno Bruto (PIB). A região Centro-Oeste apresenta características de grandes propriedades e ênfase na exportação e a região Sul destaca-se na produção da AF e no abastecimento interno de alimentos, o que pode justificar os dados de compra da AF para a alimentação escolar nestas regiões.

Infere-se pelos resultados encontrados que há a necessidade do fortalecimento e da implementação de estratégias de diferentes setores públicos e da sociedade civil organizada para se colocar em prática o item da Resolução nº 38/FNDE/2009 sobre a compra de alimentos provenientes da agricultura familiar.

A Tabela 2 apresenta as justificativas para o não atendimento dos 30%, conforme análise dos pareceres conclusivos emitidos pelos Conselheiros da Alimentação Escolar (CAE) ao FNDE.

Considerando os pareceres conclusivos, a maior causa para o não atendimento dos 30% de compra da AF referiu-se a "Inviabilidade de fornecimento regular e constante" com 21,10% e "Outros" com 32,90% dos relatos (alternativa prevista na análise, quando as justificativas não constavam na legislação), tais como: falta de interesse dos agricultores, demora da Prefeitura em elaborar a chamada pública, os agricultores já haviam destinado todos os gêneros para o PAA, dentre outros limites. Para este último item (outros), as regiões Sudeste (44,65%) e Centro-Oeste (41,56%) tiveram maior frequência de relatos. Para o item sobre inviabilidade de fornecimento regular e constante de alimentos, as regiões Norte e Nordeste apresentaram os maiores percentuais, com 33,04% e 29,33% de ocorrências, respectivamente.

Diante dos dados apresentados e dos parâmetros legais que devem ser seguidos pelas Entidades Executoras (EE) em relação à compra da AF, destaca-se que ainda há muito a ser feito para a consolidação do mercado institucional entre os pequenos produtores e o PNAE, desde o planejamento e a organização da produção de alimentos, a apropriação por parte das EE das realidades agrícolas locais e regionais a serem refletidas na demanda em tipos de alimentos e épocas de demanda, a priorização e a qualificação operativa das EE (recursos humanos e materiais, integração entre secretarias envolvidas) até a distribuição dos alimentos e refeições nas escolas.

Desafios e perspectivas da compra de alimentos da AF para o PNAE

A compra da AF para o PNAE é uma regulamentação recente. A inviabilidade de fornecimento regular e constante como justificativa para o não atendimento dos 30% exige articulação entre quem compra (demanda de alimentos para as escolas dos municípios) e quem vende (oferta de alimentos produzidos pelos agricultores familiares). Neste espaço de interlocução, destaca-se que o planejamento dos cardápios escolares, como primeiro passo para a compra da AF, deve basear-se em novos referenciais: o de promoção da saúde conjugada à sustentabilidade ambiental, cultural, econômica e social.

Assim, o planejamento requer a verificação das características dos diferentes produtos, pois alguns alimentos possuem ciclo produtivo mais longo, outros são mais sensíveis às alterações climáticas (sazonalidade), interferindo no abastecimento. Ao mesmo tempo, os agricultores precisam realizar um planejamento da produção dos alimentos, de acordo com a demanda para reduzir as oscilações e garantir uma oferta estável de produtos23.

Real e Schneider10 destacam que apesar da obrigatoriedade da compra da AF alguns municípios ainda encontram dificuldades na aquisição destes alimentos, pela presença de grandes empresas do setor envolvidas na compra pública de alimentos.

Turpin4 abordou a alimentação escolar como fator de desenvolvimento local por meio do apoio aos agricultores familiares. Discutiu que diante da nova legislação, a alimentação escolar ganha reforços que estimulam os agricultores familiares e permitem que sejam alcançados os seus objetivos, com ganhos aos escolares, agricultores e comunidade local, possibilitando discussões do PNAE frente à produção e desenvolvimento rural e suas relações com o consumo e a saúde pública.

Nesse sentido, do desenvolvimento local, é de fundamental importância o reconhecimento do papel interdependente das várias secretarias do poder executivo (tanto municipal quanto estadual) relacionadas ao tema, como agricultura, educação, fazenda ou administração, entre outras. O desenvolvimento local será potencializado na medida em que o gestor público, ou EE, consiga implementar a compra da agricultura familiar como uma ação verdadeiramente transversal dentro de políticas setoriais, prevendo desafios pendentes como o tema da assessoria técnica para agricultores, infraestrutura de logística e armazenagem, diagnóstico e interação com a realidade agrícola local/regional e, fundamentalmente, a criação de espaços ou fóruns participativos de debate e planejamento, envolvendo agricultores, gestores e escolas.

Carvalho24 ao analisar experiências exitosas em municípios brasileiros, antes das novas diretrizes de execução do PNAE, ressaltou que as licitações sustentáveis na alimentação escolar têm promovido o desenvolvimento regional, a inclusão social, a movimentação da economia local, o consumo de alimentos mais frescos por parte dos escolares, a redução nos gastos com transportes e a promoção de educação alimentar e nutricional para além do espaço escolar, ou seja, o principal entrave para a compra de AF é a falta de planejamento, ou planejamento inadequado, do gestor para a execução da compra. Deve-se conhecer a realidade local dos agricultores para que o gestor possa planejar sua compra respeitando sazonalidades, vocação produtiva etc.

Portanto, o desafio é que a compra da AF supere a diretriz que destaca o mínimo de 30% de compra para, de fato, compras que se baseiem em parcerias reais para o desenvolvimento sustentável local e regional.

Considerações Finais

Os resultados apresentados neste artigo mostraram que cerca da metade dos municípios brasileiros (47,4%) adquiriram alimentos da AF para a alimentação escolar e o percentual de compras nestes foi, em média de 22,7%, em 2010. A inviabilidade de fornecimento regular e constante, além de outros limites apresentados pelas EE, se destacou como justificativa para o não atendimento dos 30%. A região Sul apresentou maior percentual de compra da AF possivelmente relacionado ao nível de organização dos produtores rurais e dos gestores da região. A região Centro Oeste apresentou o menor percentual de compras (35,3%), o que pode estar relacionado ao predomínio de produção ligada ao agronegócio e à pouca produção agrícola familiar nesta região se comparada à região Sul.

Cabe ressaltar que o ano de 2010 foi o primeiro de obrigatoriedade da compra da agricultura familiar para o PNAE. A cada ano, novos avanços vêm sendo construídos e os dados de 2011 e 2012 provavelmente apontarão um percentual maior de compras, no total de municí­pios e no volume total das compras.

Destaca-se que dado ao caráter recente da legislação, outros aspectos deverão ser explorados por estudos futuros, de forma a fortalecer a efetivação da normativa nos diferentes contextos brasileiros e assim contribuir tanto para o desenvolvimento econômico local, como para o fornecimento aos escolares de refeições que atendam aos princípios de uma alimentação saudável e adequada.

Colaboradores

EB Saraiva participou da concepção e desenho do artigo, análise de dados, redação e revisão do texto. APF Silva participou da concepção e desenho do artigo, revisão bibliográfica, redação e revisão do texto. AA Souza participou da concepção e desenho do artigo, redação e revisão do texto. GF Cerqueira e CMS Chagas e N Toral participaram da concepção do artigo, análise de dados e revisão do texto.

Agradecimentos

Ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), a partir de parceria estabelecida com o Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição do Escolar do Estado de Santa Catarina (CECANE/SC).

Artigo apresentado em 23/09/2012

Aprovado em 29/10/2012

Versão final apresentada em 30/11/2012

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Maio 2013
  • Data do Fascículo
    Abr 2013

Histórico

  • Recebido
    23 Set 2012
  • Aceito
    29 Out 2012
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