A condição humana fragilizada pelo medo da morte, pelo sofrimento afetivo, pelas doenças e pelo envelhecimento imprime ao ser humano a busca pelo prazer. O uso de drogas lícitas ou ilícitas é bom exemplo desse fato. Muitas vezes, isso ocorre de forma tão intensa que condena o indivíduo a morte prematura ou a subjugar a própria vida. Para agravar esta situação a sociedade ocidental, a todo o momento, é bombardeada por propagandas que incentivam o consumo de produtos. O consumo torna-se sinônimo de felicidade.
A indústria do tabaco talvez tenha sido a pioneira em explorar e abordar esse
aspecto na publicidade do cigarro,(
11. Cummings KM, Morley CP, Horan JK, Steger C, Leavell NR. Marketing to
America's youth: evidence from corporate documents. Tob Control. 2002;11 Suppl
1:I5-17.
https://doi.org/10.1136/tc.11.suppl_1.i5...
) sendo responsável pela indução de bilhões de
usuários a dependência ao produto e, como consequência, a morte precoce e
a perda de qualidade de vida, determinando um ônus sem precedentes aos sistemas de
saúde ao redor de todo o planeta. A consequência dessa epidemia tabágica
foi a adoção de medidas restritivas para reduzir o consumo, e isso motivou a
indústria do tabaco a buscar produtos que pudessem manter a dependência a
nicotina, mas com um rótulo como "menos prejudiciais à saúde" do que
cigarros típicos.(
22. Shiffman S, Gitchell JG, Warner KE, Slade J, Henningfield JE, Pinney
JM. Tobacco harm reduction: conceptual structure and nomenclature for analysis and
research. Nicotine Tob Res. 2002;4 Suppl 2:S113-29.
https://doi.org/10.1080/1462220021000032...
) Dentro desse contexto, produtos como hooka ou
narguilé, e mais recentemente o cigarro eletrônico, passaram a ser propagados
como "inócuos", sem de fato terem respaldo científico para tanto. A
evidência da presença de menos substâncias tóxicas nessas formas
alternativas do tabaco em comparação ao cigarro convencional tem sido o
argumento usado e explorado para isso, mas, de fato, não existem dados suficientes
para se considerar que o uso dessas substâncias em menor concentração,
mas de forma contínua e perpetuada pela presença do vapor de nicotina, seja
inócuo.
No epicentro dessa discussão, o presente volume do Jornal Brasileiro de Pneumologia apresenta o artigo original de Martins et al.( 33. Martins SR, Paceli RB, Bussacos MA, Fernandes FL, Prado GF, Lombardi EM, et al. Experimentation with and knowledge regarding water-pipe tobacco smoking among medical students at a major university in Brazil. J Bras Pneumol. 2014;40(2):102-110. ) sobre a experimentação de narguilé, a prevalência de seu uso e o conhecimento sobre o assunto entre estudantes de medicina do terceiro e sexto anos da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em São Paulo (SP), entre 2008 e 2013. Apesar de a maioria dos estudantes reconhecer o potencial de risco a saúde pelo uso do produto, seja pelo risco de contaminação por bactérias e vírus, seja pelo próprio potencial de dependência a nicotina determinado pelo uso do produto, além da alta exposição a elevadas concentrações de monóxido de carbono, tal conhecimento não impediu que mais de 40% daqueles estudantes do sexo masculino experimentassem o produto. A baixa prevalência do uso de cigarros entre os estudantes de medicina do terceiro e sexto anos de curso (9,78% e 5,26% entre os homens, respectivamente, e 1,43% e 2,65% entre as mulheres) claramente demonstra a efetividade das políticas públicas de desestímulo à iniciação do tabagismo, realizadas há mais de 20 anos no Brasil; por outro lado, isso reforça o alcance do marketing e da publicidade que disseminam o uso de formas alternativas do tabaco.
A redução do tabagismo no Brasil nos últimos 5 anos tem sido gradual e
constante entre os homens, com uma variação de 21% em 2008 para 18% em
2012.(
44. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância
em Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Vigitel
Brasil 2012: vigilância de fatores de risco e proteção para
doenças crônicas por inquérito telefônico. Brasília:
Ministério da Saúde; 2013.
) Essa taxa entre as mulheres diminuiu e tem se mantido estável desde
2008, oscilando entre 12% e 13%. Atualmente, já temos mais ex-fumantes que fumantes
no Brasil e eles representam 22% da população. Em uma revisão
sistemática da literatura sobre o uso de álcool e tabaco entre adolescentes de
10 a 19 anos, Barbosa et al.(
55. Barbosa Filho VC, Campos Wd, Lopes Ada S. Prevalence of alcohol and
tobacco use among Brazilian adolescents: a systematic review. Rev Saude Publica.
2012;46(5):901-17.
https://doi.org/10.1590/S0034-8910201200...
) encontraram que a prevalência de uso atual de tabaco (uso na
época da pesquisa ou no mês anterior) variou de 2,4% a 22,0%, com média
de 9,3% no Brasil. Embora o risco de início de consumo de tabaco por adolescentes
seja maior quando têm pais fumantes, há outros fatores familiares associados,
como práticas parentais com baixa aceitação e baixo controle
comportamental dos filhos.(
66. Gilman SE, Rende R, Boergers J, Abrams DB, Buka SL, Clark MA, et al.
Parental smoking and adolescent smoking initiation: an intergenerational perspective
on tobacco control. Pediatrics. 2009;123(2):e274-81.
https://doi.org/10.1542/peds.2008-2251...
) Além das implicações do uso do tabaco sobre a saúde do
adolescente, há que se ressaltar também que seu uso associado ao consumo de
maconha é elevado.
A indústria do tabaco sabe que tem ao seu lado fatores que facilitam por demais a experimentação de qualquer produto que contenha nicotina entre os jovens, primeiramente pela curiosidade, assim como pela influência da simbologia de ritual de passagem, ausência de maturidade de estruturas cerebrais que inibem atos de impulsividade, influência do grupo e o próprio desejo de enfrentamento, ou seja, um conjunto de fatores que deixa os jovens particularmente seduzidos pelo fascínio de experimentar e consumir drogas.
É relevante destacar a importância da influência cultural e da mídia sobre os jovens, visto que a adolescência é uma fase crucial no desenvolvimento da personalidade e da individualidade. Nessa fase, o adolescente é muito influenciável, e o marketing e a propaganda atingem propositalmente os jovens, os tendo como alvos. Estudos evidenciam que a propaganda de cigarros tem uma grande influência no consumo de tabaco por jovens.( 77. dos Santos RP, Pasqualotto AC, Segat FM, Guillande S, Benvegnú LA. A relação entre o adolescente e o cigarro: o marketing como fator predisponente. Pediatria (São Paulo). 1999;21:103-11. ) A divulgação via judicial de documentos secretos da indústria do tabaco nos EUA comprova a estratégia de direcionar a propaganda do cigarro preferencialmente para crianças e adolescentes.
O resultado é que as novas vivências tendem a ser experimentadas com grande
intensidade, e o uso de álcool, cigarros e outras drogas é um comportamento
frequente, o que torna esse período de vida crucial na maioria dos estudos e
programas de prevenção de dependência de substâncias.
Aproximadamente 72% dos adolescentes nos EUA relatam ter experimentado álcool; no
Brasil, essa prevalência chega a 84,3% entre estudantes de 17-18 anos de
idade.(
88. Madruga CS, Laranjeira R, Caetano R, Pinsky I, Zaleski M, Ferri CP.
Use of licit and illicit substances among adolescents in Brazil--a national survey.
Addict Behav. 2012;37(10):1171-5.
https://doi.org/10.1016/j.addbeh.2012.05...
) Em relação aos cigarros, nos EUA, a prevalência de seu uso
alguma vez na vida é de 43,6% entre adolescentes e, no Brasil, essa
prevalência é de 32,1% aos 18 anos.
Em 2009, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar,(
99. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [homepage on the
Internet]. Rio de Janeiro: IBGE. [cited 2013 Dec 1]. Pesquisa Nacional de Saúde
do Escolar 2009. [Adobe Acrobat document, 138p.]. Available from:.
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/pense/pense.pdf
Available from:.
ht...
) 24,2% dos escolares que frequentavam o nono ano do ensino fundamental
experimentaram cigarros e 6,3% os usavam habitualmente. Não houve diferenças
entre meninos e meninas; no entanto, o uso foi maior nas escolas públicas (26,4%)
do que nas escolas privadas (18,3%).
Os fatores ambientais constituem importantes fatores de risco para a
experimentação e a manutenção do uso de álcool e tabaco na
adolescência, bem como a progressão para outras drogas.(
1010. National Institutes of Health. National Institute on Drug Abuse
[homepage on the Internet]. Bethesda: National Institute on Drug Abuse. [updated 2012
Dec 1; cited 2013 Jan 1]. DrugFacts: High School and Youth Trends. Available from:.
http://www.nida.nih.gov/infofacts/HSYouthtrends.html.
Available
from:. ht...
) Os fatores de proteção são menos pesquisados na literatura
do que os fatores de risco. Os principais fatores de proteção relativos ao uso
de álcool e cigarros são a capacidade de enfrentar e superar problemas,
principalmente no sexo feminino; a religiosidade; a realização de pelo menos
uma refeição com pais ou responsáveis na maioria dos dias da semana; e o
conhecimento dos pais ou responsáveis sobre o que os adolescentes fazem em seu
tempo livre nos últimos 30 dias. O monitoramento parental eficaz parece ser o maior
fator de proteção ao uso de álcool, tabaco e outras drogas na
adolescência e pode ser a base para os fatores de proteção supracitados.
Da mesma forma, a família também pode ser um dos fatores de risco mais
importantes para o início de uso de álcool ou tabaco na adolescência,
quando os adolescentes têm pais que também fazem uso de álcool ou de
tabaco, assim como quando há desestruturação familiar e relacionamento
ruim com os pais.
A propaganda do cigarro foi proibida no Brasil em 2000. Esse fato contribuiu sobremaneira para a redução na prevalência do tabagismo no país. Estudos mostram que os adolescentes que são mais expostos a essas propagandas são os mesmos que as apreciam e que acabam fazendo uso mais frequente dessas drogas, ou seja, a propaganda comprovadamente estimula o consumo e contribui para o aumento de todos os desfechos desfavoráveis desse consumo.( 77. dos Santos RP, Pasqualotto AC, Segat FM, Guillande S, Benvegnú LA. A relação entre o adolescente e o cigarro: o marketing como fator predisponente. Pediatria (São Paulo). 1999;21:103-11. )
Há um debate considerável sobre o papel dos produtos alternativos ao tabaco (smokeless) em reduzir os danos à saúde causados pelo tabaco. Dos produtos alternativos ao tabaco, a Suécia tem experiência com uso do snus, um tablete de nicotina de uso sublingual adotado como alternativa ao cigarro comum. Uma revisão sobre uso de snus sugere que ele é menos prejudicial para a saúde do que cigarros, reduzindo o risco de doenças cardiovasculares, respiratórias e neoplásicas.( 1111. J Foulds, Ramstrom L, Burke M, Fagerström K. Effect of smokeless tobacco (snus) on smoking and public health in Sweden. Tob Control. 2003;12(4):349-59. )
Parte da comunidade científica mundial acredita na adoção de uma
política de regulamentação que determine o desestímulo ao consumo
dos produtos de nicotina mais prejudiciais(
1212. Bates C, Fagerström K, Jarvis MJ, Kunze M, McNeill A, Ramström L.
European Union policy on smokeless tobacco: a statement in favour of evidence based
regulation for public health. Tob Control. 2003 Dec;12(4):360-7.
https://doi.org/10.1136/tc.12.4.360...
) (cigarros ou produtos de tabaco inalado por combustão) por produtos
que são muito menos prejudiciais, como o snus e, possivelmente, o
cigarro eletrônico.(
1313. Vansickel A, Eissenberg T. Electronic cigarettes: effective nicotine
delivery after acute administration. Nicotine Tob Res.
2013;15(1):267-70.
https://doi.org/10.1093/ntr/ntr316...
) Esse último, devido à semelhança com o cigarro convencional,
tem se mostrado a forma mais atrativa de consumo de nicotina, considerando que o consumo
e venda mundial têm alcançado cifras alarmantes nos países onde sua
comercialização é permitida. No Brasil, a comercialização do
produto é proibida. Nos EUA, essa já é forma de experimentação
preferida por 25% dos jovens americanos.
O fato é que a fragilidade humana nos torna vulneráveis ao uso de substâncias com efeitos psicoativos e somente as evidências científicas cumulativas permitem a escolha de políticas públicas que possam proteger a sociedade da vulnerabilidade e compatibilizar a vida em sociedade sem degradá-la.
Uma sociedade construída num modelo de consumo inconsequente e irracional evidentemente fica vulnerável ao consumo de drogas e a todo ônus dessa condição. Somente a análise abrangente e criteriosa da questão permitirá adoção de políticas publicas que minimizem o impacto do consumo de drogas e que sejam efetivas em reduzir a exposição ao risco, considerando a vulnerabilidade da condição humana.
References
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1Cummings KM, Morley CP, Horan JK, Steger C, Leavell NR. Marketing to America's youth: evidence from corporate documents. Tob Control. 2002;11 Suppl 1:I5-17.
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2Shiffman S, Gitchell JG, Warner KE, Slade J, Henningfield JE, Pinney JM. Tobacco harm reduction: conceptual structure and nomenclature for analysis and research. Nicotine Tob Res. 2002;4 Suppl 2:S113-29.
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3Martins SR, Paceli RB, Bussacos MA, Fernandes FL, Prado GF, Lombardi EM, et al. Experimentation with and knowledge regarding water-pipe tobacco smoking among medical students at a major university in Brazil. J Bras Pneumol. 2014;40(2):102-110.
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4Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Vigitel Brasil 2012: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Brasília: Ministério da Saúde; 2013.
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5Barbosa Filho VC, Campos Wd, Lopes Ada S. Prevalence of alcohol and tobacco use among Brazilian adolescents: a systematic review. Rev Saude Publica. 2012;46(5):901-17.
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6Gilman SE, Rende R, Boergers J, Abrams DB, Buka SL, Clark MA, et al. Parental smoking and adolescent smoking initiation: an intergenerational perspective on tobacco control. Pediatrics. 2009;123(2):e274-81.
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7dos Santos RP, Pasqualotto AC, Segat FM, Guillande S, Benvegnú LA. A relação entre o adolescente e o cigarro: o marketing como fator predisponente. Pediatria (São Paulo). 1999;21:103-11.
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8Madruga CS, Laranjeira R, Caetano R, Pinsky I, Zaleski M, Ferri CP. Use of licit and illicit substances among adolescents in Brazil--a national survey. Addict Behav. 2012;37(10):1171-5.
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9Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [homepage on the Internet]. Rio de Janeiro: IBGE. [cited 2013 Dec 1]. Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar 2009. [Adobe Acrobat document, 138p.]. Available from:. http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/pense/pense.pdf
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12Bates C, Fagerström K, Jarvis MJ, Kunze M, McNeill A, Ramström L. European Union policy on smokeless tobacco: a statement in favour of evidence based regulation for public health. Tob Control. 2003 Dec;12(4):360-7.
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13Vansickel A, Eissenberg T. Electronic cigarettes: effective nicotine delivery after acute administration. Nicotine Tob Res. 2013;15(1):267-70.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Mar-Apr 2014