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O impacto da COVID-19 no sono e no ritmo circadiano

O padrão circadiano de atividade e repouso é o ritmo biológico de aproximadamente 24 h, que corresponde a variações cíclicas no comportamento, na fisiologia e no ciclo sono-vigília, resultantes de um sistema de controle temporal intrínseco. A estabilidade desse ritmo biológico reflete funções orgânicas e saúde ideais; entretanto, a dessincronização entre o sistema circadiano e as horas necessárias de sono pode causar distúrbios nesse sistema e, consequentemente, distúrbios do sono. Existem formas de avaliar o ciclo sono-vigília, incluindo o uso de medidas subjetivas e objetivas, como diários do sono e actigrafia. Além disso, a polissonografia noturna também é utilizada para avaliar objetivamente o sono e diversos parâmetros fisiológicos, sendo a melhor opção para a avaliação completa dos parâmetros do sono; apesar disso, a polissonografia é utilizada na suspeita de distúrbios do sono.11 Frange C, Coelho FM, editors. Sleep Medicine and Physical Therapy: A Comprehensive Guide for Practitioners: Cham, Switzerland: Springer Nature; 2022. https://doi.org/10.1007/978-3-030-85074-6
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Assim, o uso da polissonografia apresenta limitações para a avaliação de indivíduos com comprometimento do ciclo sono-vigília.

Diante do cenário em que o mundo inteiro se encontra desde 2020, tem-se investigado a relação entre a infecção por SARS-CoV-2 e seus impactos negativos no sono e no ritmo circadiano. No presente número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, Henríquez-Beltrán et al.22 Henríquez-Beltrán M, Labarca G, Cigarroa I, Enos D, Lastra J, Nova-Lamperti E, et al. Sleep health and the circadian rest-activity pattern four months after COVID-19. J Bras Pneumol. 2022;48(3):e20210398. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20210398
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utilizaram a actigrafia e a polissonografia noturna domiciliar, respectivamente, como estratégia de mensuração para avaliar o ciclo circadiano e distúrbios do sono em pacientes que tiveram COVID-19 entre abril e julho de 2020. As avaliações ocorreram quatro meses após a fase aguda da COVID-19.

Já foi observado que, durante a fase aguda da infecção, independentemente dos sintomas ou da necessidade de hospitalização, a COVID-19 promove alterações prejudiciais do sono33 Bhat S, Chokroverty S. Sleep disorders and COVID-19. Sleep Med. 2022;91:253-261. https://doi.org/10.1016/j.sleep.2021.07.021
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e que esse cenário persiste mesmo seis meses após a fase aguda, resultando em sequelas. Em geral, 63% dos pacientes apresentavam fadiga ou fraqueza muscular, e 23% tinham dificuldade para dormir.44 Huang C, Huang L, Wang Y, Li X, Ren L, Gu X, et al. 6-month consequences of COVID-19 in patients discharged from hospital: a cohort study. Lancet. 2021;397(10270):220-232. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32656-8
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Investigações sobre a influência da COVID-19 e o padrão circadiano de atividade e repouso são escassas, embora o cenário pandêmico tenha sido relacionado ao comprometimento desse padrão e a níveis elevados de sintomas de depressão, ansiedade e estresse durante o período de lockdown. Henríquez-Beltrán et al.22 Henríquez-Beltrán M, Labarca G, Cigarroa I, Enos D, Lastra J, Nova-Lamperti E, et al. Sleep health and the circadian rest-activity pattern four months after COVID-19. J Bras Pneumol. 2022;48(3):e20210398. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20210398
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relataram que pacientes com COVID-19 moderadamente grave apresentaram maior prevalência de dificuldade de adormecer, de permanecer dormindo e de acordar cedo, enquanto pacientes com doença mais grave apresentaram dificuldade de permanecer dormindo e de acordar cedo.

Tais resultados são importantes para elucidar a associação entre a gravidade da COVID-19 e o ciclo sono-vigília, já que as variáveis supracitadas refletem o comportamento do ciclo circadiano. Além disso, um estudo anterior observou que, três meses após a alta hospitalar, 60,5% dos pacientes apresentavam má qualidade do sono (determinada por um índice subjetivo e actigrafia) e duração do sono < 7 h.55 Benitez ID, Moncusi-Moix A, Vaca R, Gort-Paniello C, Minguez O, Santisteve S, et al. Sleep and Circadian Health of Critical COVID-19 Survivors 3 Months After Hospital Discharge. Crit Care Med. 2022;50(6):945-954. https://doi.org/10.1097/CCM.0000000000005476
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Ademais, a presença de distúrbios do sono, como apneia obstrutiva do sono (AOS), resulta em desfechos negativos nessa população.66 Peker Y, Celik Y, Arbatli S, Isik SR, Balcan B, Karatas F, et al. Effect of High-Risk Obstructive Sleep Apnea on Clinical Outcomes in Adults with Coronavirus Disease 2019: A Multicenter, Prospective, Observational Clinical Trial. Ann Am Thorac Soc. 2021;18(9):1548-1559. https://doi.org/10.1513/AnnalsATS.202011-1409OC
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Henríquez-Beltrán et al.22 Henríquez-Beltrán M, Labarca G, Cigarroa I, Enos D, Lastra J, Nova-Lamperti E, et al. Sleep health and the circadian rest-activity pattern four months after COVID-19. J Bras Pneumol. 2022;48(3):e20210398. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20210398
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relataram que o risco de AOS foi maior nos grupos COVID-19 moderada e grave. De acordo com a polissonografia domiciliar, as prevalências de AOS nos grupos COVID-19 leve, moderada e grave foram, respectivamente, de 27,8%, 64,7% e 80,0%. A relação entre AOS e pacientes com COVID-19 hospitalizados também já foi estudada,77 Maas MB, Kim M, Malkani RG, Abbott SM, Zee PC. Obstructive Sleep Apnea and Risk of COVID-19 Infection, Hospitalization and Respiratory Failure. Sleep Breath. 2021;25(2):1155-1157. https://doi.org/10.1007/s11325-020-02203-0
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mostrando que a prevalência de AOS nesses pacientes foi de 15,3%. Essa divergência se deve principalmente à diferença no momento da avaliação da AOS e no número de pacientes avaliados: 6022 Henríquez-Beltrán M, Labarca G, Cigarroa I, Enos D, Lastra J, Nova-Lamperti E, et al. Sleep health and the circadian rest-activity pattern four months after COVID-19. J Bras Pneumol. 2022;48(3):e20210398. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20210398
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e 3.185.77 Maas MB, Kim M, Malkani RG, Abbott SM, Zee PC. Obstructive Sleep Apnea and Risk of COVID-19 Infection, Hospitalization and Respiratory Failure. Sleep Breath. 2021;25(2):1155-1157. https://doi.org/10.1007/s11325-020-02203-0
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Henríquez-Beltrán et al.22 Henríquez-Beltrán M, Labarca G, Cigarroa I, Enos D, Lastra J, Nova-Lamperti E, et al. Sleep health and the circadian rest-activity pattern four months after COVID-19. J Bras Pneumol. 2022;48(3):e20210398. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20210398
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relataram que a qualidade do sono estava comprometida nos pacientes, independentemente da gravidade da doença. Da mesma forma, houve uma elevada prevalência de insônia nos três grupos de gravidade estudados. Além disso, a actigrafia mostrou que os grupos apresentavam duração do sono < 7 h, mas boa eficiência do sono.

Outro parâmetro do padrão circadiano de atividade e repouso - a fragmentação do ritmo de atividade e repouso, determinada pela variabilidade intradiária - mostrou-se comprometido em todos os grupos estudados, mas foi significativamente maior no grupo COVID-19 moderada.22 Henríquez-Beltrán M, Labarca G, Cigarroa I, Enos D, Lastra J, Nova-Lamperti E, et al. Sleep health and the circadian rest-activity pattern four months after COVID-19. J Bras Pneumol. 2022;48(3):e20210398. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20210398
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O distúrbio circadiano já foi associado ao aumento do risco de doenças como doenças cardiovasculares, diabetes, hipertensão, obesidade, insônia e câncer.11 Frange C, Coelho FM, editors. Sleep Medicine and Physical Therapy: A Comprehensive Guide for Practitioners: Cham, Switzerland: Springer Nature; 2022. https://doi.org/10.1007/978-3-030-85074-6
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O resultado encontrado no estudo de Benítez et al.55 Benitez ID, Moncusi-Moix A, Vaca R, Gort-Paniello C, Minguez O, Santisteve S, et al. Sleep and Circadian Health of Critical COVID-19 Survivors 3 Months After Hospital Discharge. Crit Care Med. 2022;50(6):945-954. https://doi.org/10.1097/CCM.0000000000005476
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está de acordo com os achados supracitados22 Henríquez-Beltrán M, Labarca G, Cigarroa I, Enos D, Lastra J, Nova-Lamperti E, et al. Sleep health and the circadian rest-activity pattern four months after COVID-19. J Bras Pneumol. 2022;48(3):e20210398. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20210398
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e indica que a saúde mental deve ser levada em consideração como marcador associado à privação do sono após a COVID-19.

Embora Henríquez-Beltrán et al.22 Henríquez-Beltrán M, Labarca G, Cigarroa I, Enos D, Lastra J, Nova-Lamperti E, et al. Sleep health and the circadian rest-activity pattern four months after COVID-19. J Bras Pneumol. 2022;48(3):e20210398. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20210398
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tenham investigado poucos pacientes, existem sequelas da COVID-19 que afetam os parâmetros do sono e os padrões circadianos de atividade e repouso que persistem mesmo após um período prolongado após a fase aguda da doença, promovendo a fragmentação do ritmo circadiano de repouso e comprometendo os parâmetros associados ao sono e à saúde mental.

Em conclusão, a mensagem central do estudo22 Henríquez-Beltrán M, Labarca G, Cigarroa I, Enos D, Lastra J, Nova-Lamperti E, et al. Sleep health and the circadian rest-activity pattern four months after COVID-19. J Bras Pneumol. 2022;48(3):e20210398. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20210398
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é clara: alterações do sono, do padrão do ciclo circadiano e da saúde mental parecem ser comuns por pelo menos quatro meses após a fase aguda da COVID-19, especialmente em pacientes que desenvolveram doença mais grave. No entanto, esses resultados devem ser vistos com cautela.

REFERENCES

  • 1
    Frange C, Coelho FM, editors. Sleep Medicine and Physical Therapy: A Comprehensive Guide for Practitioners: Cham, Switzerland: Springer Nature; 2022. https://doi.org/10.1007/978-3-030-85074-6
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  • 2
    Henríquez-Beltrán M, Labarca G, Cigarroa I, Enos D, Lastra J, Nova-Lamperti E, et al. Sleep health and the circadian rest-activity pattern four months after COVID-19. J Bras Pneumol. 2022;48(3):e20210398. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20210398
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  • 3
    Bhat S, Chokroverty S. Sleep disorders and COVID-19. Sleep Med. 2022;91:253-261. https://doi.org/10.1016/j.sleep.2021.07.021
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  • 4
    Huang C, Huang L, Wang Y, Li X, Ren L, Gu X, et al. 6-month consequences of COVID-19 in patients discharged from hospital: a cohort study. Lancet. 2021;397(10270):220-232. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32656-8
    » https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32656-8
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    Benitez ID, Moncusi-Moix A, Vaca R, Gort-Paniello C, Minguez O, Santisteve S, et al. Sleep and Circadian Health of Critical COVID-19 Survivors 3 Months After Hospital Discharge. Crit Care Med. 2022;50(6):945-954. https://doi.org/10.1097/CCM.0000000000005476
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    » https://doi.org/10.1513/AnnalsATS.202011-1409OC
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    Maas MB, Kim M, Malkani RG, Abbott SM, Zee PC. Obstructive Sleep Apnea and Risk of COVID-19 Infection, Hospitalization and Respiratory Failure. Sleep Breath. 2021;25(2):1155-1157. https://doi.org/10.1007/s11325-020-02203-0
    » https://doi.org/10.1007/s11325-020-02203-0

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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