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Práticas de atenção à saúde de crianças e adolescentes com hanseníase: discursos de profissionais

RESUMO

Objetivo:

Analisar as práticas de atenção à saúde de crianças e adolescentes com hanseníase, a partir dos discursos de profissionais de saúde.

Método:

Pesquisa qualitativa, realizada com 23 profissionais de saúde que atendiam crianças e adolescentes com hanseníase na atenção básica e secundária de um município do Estado de Pernambuco, de abril a julho de 2018, mediante entrevistas semiestruturadas. Os dados foram submetidos a análise de conteúdo.

Resultados:

A prática de atenção à saúde foi apreendida a partir das seguintes categorias de análise: “Acolhimento em hanseníase”, “A prática clínica” e “Educação em saúde”, com limitações no atendimento às especificidades do público estudado.

Conclusões:

Os aspectos limitantes na prática de atenção à saúde contribuem para as dificuldades no controle da doença, requerendo o desenvolvimento de recomendações de boas práticas que contemplem as necessidades de crianças e adolescentes.

Palavras-chave:
Hanseníase; Criança; Adolescente; Prática de saúde pública; Educação em saúde

ABSTRACT

Objective:

To analyze the health care practices of children and adolescents with leprosy from the speeches of health professionals.

Method:

Qualitative research conducted with 23 health professionals who attended children and adolescents with leprosy in primary and secondary care in a municipality in the state of Pernambuco, from April to July 2018, through semi-structured interviews. Data were subjected to content analysis.

Results:

The practice of health care was apprehended from the following categories of analysis: "Embracement in leprosy", "Clinical practice" and "Education in Health", with limitations in meeting the particularities of the studied population.

Conclusions:

Limiting aspects in health care practice contribute to the difficulties in controlling the disease, requiring the development of best practice recommendations that address the needs of children and adolescents.

Keywords:
Leprosy; Child; Adolescent; Public health practice; Health education

RESUMEN

Objetivo:

Analizar las prácticas de atención de la salud de niños y adolescentes con lepra, a partir de los discursos de los profesionales de la salud.

Método:

Investigación cualitativa realizada con 23 profesionales de la salud que atendieron niños y adolescentes con lepra en atención primaria y secundaria en un municipio del estado de Pernambuco, de abril a julio de 2018, a través de entrevistas semiestructuradas. Los datos fueron sometidos a análisis de contenido.

Resultados:

La práctica de la atención de la salud fue aprehendida de las siguientes categorías de análisis: "Recepción en la lepra", "Práctica clínica" y "Educación en salud", con limitaciones para satisfacer las especificidades de la población estudiada.

Conclusiones:

Los aspectos limitantes en la práctica del cuidado de la salud contribuyen a las dificultades para controlar la enfermedad, lo que requiere el desarrollo de recomendaciones de mejores prácticas que aborden las necesidades de los niños y adolescentes.

Palabras clave:
Lepra; Niño; Adolescente; Práctica de salud pública; Educación en salud

INTRODUÇÃO

A hanseníase, apesar de ser uma doença milenar, ainda é endêmica em países em desenvolvimento, podendo atingir desde a infância até a terceira idade. Ela apresenta um alto potencial incapacitante, principalmente quando atinge a infância ou adolescência por essas serem fases do crescimento e desenvolvimento humano11. Freitas BHBM, Cortela DCB, Ferreira SMB. Trend of leprosy in individuals under the age of 15 in Mato Grosso (Brazil), 2001-2013. Rev Saúde Pública. 2017;51:28. doi: https://doi.org/10.1590/s1518-8787.2017051006884
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.

Foram registrados globalmente, no ano de 2018, 208.613 casos novos. No Brasil, foram notificados 28.660 casos, representando uma taxa de detecção geral de 13,70/100.000 habitantes, sendo 1.705 casos novos registrados em menores de 15 anos de idade22. Pan American Health Organization [Internet]. Washington: PAHO; c2019- [cited 2020 Jan 10]. Leprosy; [about 1 screen]. Available from: http://apps.who.int/neglected_diseases/ntddata/leprosy/leprosy.html
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. No mesmo ano, a região Nordeste foi considerada a região do Brasil com o maior número de notificações em menores de 15 anos, registrando um total de 802 casos novos, e Pernambuco foi considerado o segundo estado com o maior quantitativo33. Ministério da Saúde (BR) [Internet]. Brasília (DF); c2019- [cited 2020 Jan 9]. Hanseníase: o que é, causas, sinais e sintomas, tratamento, diagnóstico e prevenção; [approx. 1 screen]. Available from: http://saude.gov.br/saude-de-a-z/hanseniase
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.

Ao atingir crianças e adolescentes, a hanseníase é mais prevalente na faixa etária de 5 a 14 anos, e em até 6% dos casos em menores de cinco anos. Estudo realizado com essa população mostra que uma frequência maior em crianças mais velhas pode ser explicada devido ao longo período de incubação da doença (3-7 anos) e à dificuldade por parte dos profissionais em avaliar a perda de sensibilidade em crianças, o que ocasiona o atraso no diagnóstico44. Narang T, Kumar B. Leprosy in children. Indian J Paediatr Dermatol. 2019 [cited 2020 Jan 10];20(1):12-24. Available from: http://www.ijpd.in/text.asp?2019/20/1/12/247542
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O manejo inadequado da doença ou o atraso no diagnóstico podem comprometer a saúde dessa população, causando deformidades e incapacidades permanentes, provocando mudanças na sua vida. Essas mudanças incluem as atividades de vida diária e de lazer, seja pelos efeitos colaterais causados pelas medicações, pelas próprias manifestações clínicas da doença ou pela discriminação social, requerendo políticas públicas inclusivas às suas demandas de saúde55. Menezes MLN, Figueiroa MN, Monteiro EMLM, Beserra AA, Fernandes MJSS, Santana ADS. Leprosy in subjects under 15 years: epidemiological analysis in Brazil. Int Arch Med. 2017;10. doi: https://doi.org/10.3823/2495
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. Neste sentido, estudo realizado no Brasil33. Ministério da Saúde (BR) [Internet]. Brasília (DF); c2019- [cited 2020 Jan 9]. Hanseníase: o que é, causas, sinais e sintomas, tratamento, diagnóstico e prevenção; [approx. 1 screen]. Available from: http://saude.gov.br/saude-de-a-z/hanseniase
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) aponta a importância da intensificação de ações em saúde no cuidado a crianças e adolescentes com hanseníase, objetivando a quebra da cadeia de transmissão e da elevada endemicidade da doença no país.

Destarte, reconhecendo as especificidades da população infantil e juvenil no incremento de ações de vigilância e controle da hanseníase, a equipe multiprofissional de saúde configura-se como instrumento essencial para revisitar as práticas de atenção à saúde, com ênfase no papel articulador do enfermeiro no desenvolvimento do cuidado integral55. Menezes MLN, Figueiroa MN, Monteiro EMLM, Beserra AA, Fernandes MJSS, Santana ADS. Leprosy in subjects under 15 years: epidemiological analysis in Brazil. Int Arch Med. 2017;10. doi: https://doi.org/10.3823/2495
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-66. Pinheiro MGC, Miranda FAN, Simpson CA, Carvalho FPB, Ataide CAV, Lira ALBC. Understanding "patient discharge in leprosy": a concept analysis. Rev Gaúcha Enferm. 2017;38(4):e63290. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.04.63290
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. A atenção à saúde é um trabalho complexo construído dentro de um contexto histórico e social, em que o seu principal resultado é imaterial e produzido através de relações estabelecidas entre o profissional e o usuário. A análise das relações de poder é um dos pilares da obra foucaultiana; nesse universo, elas são colocadas como relações presentes em toda parte, em toda espécie de interação entre as pessoas, inclusive na saúde.

O poder é capaz, ainda, de assumir diversas representações e sentidos. Nesse contexto, analogamente ao pensamento foucaultiano, pode-se traduzir o sistema de saúde como uma representação jurídico-discursiva do poder. Jurídica porque é moldada por leis, normas, protocolos. Discursiva pois as suas normas são vinculadas ao que se pode dizer e ao que se pode fazer, então ela é vinculada tanto à linguagem quanto às ações77. Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2016. .

O discurso é uma representação culturalmente construída pela realidade, não uma cópia fidedigna, pois é regulado através da produção de categorias de conhecimento e conjuntos de textos, determinando o que é possível de ser falado e o que não é, em consonância como as regras estabelecidas. Assim, ele (re)produz poder e conhecimento simultaneamente88. Foucault M. A Arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2013. . O discurso, a troca de saberes e a comunicação se mostram como figuras positivas, que atuam de forma a traduzir os significados e as subjetividades que se manifestam ou se ocultam nas relações entre os indivíduos99. Foucault M. A Ordem do discurso. 24. ed. São Paulo: Loyola; 2013. .

As práticas de atenção à saúde têm como base constituinte um conjunto de ações prioritárias realizadas no cotidiano do atendimento à comunidade. Essas práticas, quando desenvolvidas para crianças e adolescentes com hanseníase, representam um conjunto de dispositivos que, conforme o conceito de Foucault, compreendem elementos dinâmicos e articulados que juntos reúnem as instâncias do poder onde estão incluídos os discursos, instituições, leis, medidas administrativas e proposições morais. Neste sentido, os dispositivos se movimentam de acordo com as redes de poder, podendo expressar as subjetividades dos sujeitos envolvidos nessa teia77. Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2016. -99. Foucault M. A Ordem do discurso. 24. ed. São Paulo: Loyola; 2013. .

A inquietação para o desenvolvimento desta proposta de investigação foi gerada ao considerar que a doença ainda permanece sob a ótica mundial e nacional como um problema de saúde pública, com aumento do número de casos na população estudada. Emergem ainda as limitações de pesquisas revisitando o contexto da prática profissional na atenção à saúde de crianças e adolescentes em tratamento de hanseníase.

Com o interesse de apreender conhecimentos significativos referentes às práticas de atenção à saúde de crianças e adolescentes com hanseníase, emergiu o seguinte questionamento: como são realizadas as práticas de atenção à saúde de crianças e adolescentes com hanseníase, a partir dos discursos de profissionais de saúde?

Diante do exposto, este estudo tem como objetivo analisar as práticas de atenção à saúde de crianças e adolescentes com hanseníase, a partir dos discursos de profissionais de saúde.

MÉTODO

Estudo do tipo descritivo, qualitativo, realizado em Unidades de Saúde da Família (USF) e Serviços de Referência no tratamento de hanseníase de um município do Estado de Pernambuco, originado de dissertação. O uso da abordagem qualitativa decorreu de sua capacidade de incorporar o significado e a intencionalidade das relações e estruturas sociais, sendo possível captar os níveis mais profundos da investigação, que não podem ser traduzidos em dados estatísticos1010. Minayo MC. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec; 2014. .

O estudo foi realizado em áreas de alta endemicidade da doença para menores de 15 anos, segundo critérios epidemiológicos apreendidos através do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), gerando o mapeamento prioritário dos distritos sanitários (DS) II e IV. Foram incluídos no estudo três USF e dois Serviços de Referência dos distritos em questão por apresentarem o maior número de casos novos de hanseníase em crianças e adolescentes de 2012 a 2017. As USF, assim como os Serviços de Referência e os Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB), foram incluídas na investigação com base na portaria nº149 de 2016, que regulamenta as Redes de Atenção para as pessoas atingidas pela hanseníase. A referida portaria considera que as ações de controle da endemia devem ser executadas em toda rede de atenção básica do Sistema Único de Saúde (SUS).

Os participantes foram profissionais de saúde integrantes da equipe multiprofissional que assistiam crianças e adolescentes com hanseníase por meio de consultas e/ou visitas domiciliares. A seleção dos profissionais de saúde atendeu aos seguintes critérios de inclusão: 1) atuar há pelo menos 6 (seis) meses nas Unidades de Saúde da Família ou nos Serviços de Referência; 2) assistir crianças e adolescentes com hanseníase por meio de consultas. Foram excluídos do estudo os profissionais que estivessem ausentes do serviço por férias, doença ou outro motivo durante o período da coleta. A amostra foi do tipo intencional e o critério de saturação teórica foi utilizado como definidor do tamanho da amostra. A coleta de dados ocorreu no período de abril a julho de 2018.

A entrevista semiestruturada foi utilizada nesta pesquisa como técnica de coleta de dados, sendo orientada por meio de um roteiro com as seguintes perguntas norteadoras: qual é o tempo médio de atendimento da criança/adolescente portador de hanseníase? Quais são os procedimentos relativos à prática clínica realizados na consulta? Como é realizado o acolhimento na primeira consulta do paciente na unidade? Como é estabelecido o relacionamento/vínculo entre profissional-paciente? Existe algum tipo de dificuldade/fator limitante no atendimento de crianças/adolescentes portadores de hanseníase? Se sim, quais são? Existe algum fator facilitador da sua prática assistencial? Se sim, quais são? Como é realizada a educação em saúde em hanseníase para as crianças e adolescentes em atendimento?

As entrevistas foram realizadas no ambiente de trabalho dos profissionais, em sala reservada, e conduzidas por um dos autores do estudo. Foram gravadas por meio de dois recursos de gravação de áudio, um gravador digital (Sony Digital Voice Recorder) e um gravador portátil (Smart Voice Recorder), e transcritas na íntegra para subsidiar a etapa de apresentação e análise dos dados.

Para apreciação dos dados foi utilizada a análise de conteúdo estruturada em Bardin1111. Bardin L. Análise de conteúdo. 6. ed. São Paulo: Edições 70; 2011. , que consiste em um conjunto de técnicas de análise das comunicações ancoradas em procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição dos conteúdos das mensagens. A sistematização, assim como a organização da análise, deu-se através de três momentos: o primeiro foi a pré-análise, seguido da exploração do material e por fim o tratamento e interpretação dos resultados obtidos. A segunda fase, que corresponde à exploração do material, contou com o auxílio do programa Atlas.ti for Windows (versão 8.0), que auxilia o pesquisador na codificação e organização da análise de dados.

A codificação, a partir dos depoimentos dos participantes, subsidiou o agrupamento analítico em três categorias temáticas: “Acolhimento em hanseníase”; “A prática clínica”; e “Educação em saúde”. O corpus apreendido com o discurso dos profissionais subsidiou a elaboração das três categorias temáticas, que foram formuladas a partir da análise dos conteúdos dos discursos dos participantes, considerando elementos estruturantes dos fundamentos filosóficos foucaultianos como poder, cuidado e discurso77. Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2016. -99. Foucault M. A Ordem do discurso. 24. ed. São Paulo: Loyola; 2013. ,1212. Foucault M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes ; 2014. -1313. Foucault M. O nascimento da clínica. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária ; 2015. .

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos (CEP) do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com a obtenção do CAAE nº 81181417.2.0000.5208 e parecer de nº: 2.532.172, atendendo aos requisitos da Resolução 466/12 e suas complementares. Foi solicitada a anuência formal dos participantes através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Para manter o anonimato dos participantes foram utilizados códigos formados por uma sequência de letras e números. As letras iniciais correspondem à categoria profissional de cada participante. As letras são seguidas por numerais cardinais que identificam a ordem de participação do entrevistado na pesquisa. Seguindo a sequência da codificação, uma segunda ordem de letras foi utilizada, sendo “F” para feminino e “M” para masculino, sucedido por último da idade do entrevistado.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foram apreendidos os discursos de um total de 23 profissionais de saúde de nível superior das USF, Serviços de Referência e NASF-AB incluídos na pesquisa, dentre eles oito (08) enfermeiros, dez (10) médicos, dois (02) fisioterapeutas, um (01) terapeuta ocupacional e dois (02) psicólogos. Foi identificado que os participantes, quanto à sua formação profissional, realizaram cursos de pós-graduação do tipo especialização, residência em saúde e mestrado nas áreas de dermatologia, hansenologia, saúde pública, saúde da família, saúde da criança e/ou do adolescente, assim como alguns cursos de aperfeiçoamento em hanseníase oferecidos pela gestão municipal.

Acolhimento em hanseníase

O acolhimento dentro do SUS pode ser caracterizado como uma postura ética assumida pelos profissionais de saúde que perpassa por todos os momentos do atendimento ao usuário e resulta em uma escuta qualificada, levando em consideração as suas queixas e necessidades individuais1414. Fortuna CM, Oliveira KF, Feliciano AB, Silva MV, Borges FA, Camacho GA, et al. Embracement as an analyzer of the relationships between professionals, managers and users. Rev Esc Enferm USP. 2017;51:e03258. doi: https://doi.org/10.1590/S1980220X2016003303258
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. Para o acolhimento dos usuários pelos profissionais de saúde da equipe multiprofissional, consideram-se os requisitos referentes ao ambiente de trabalho, como: o tempo disponível para cada consulta em relação à demanda de atendimento; a comunicação com a criança/adolescente e com a família; a acessibilidade ao serviço; e a adesão ao tratamento com atendimento multiprofissional.

Os participantes do estudo em seus discursos atrelaram o tempo utilizado na consulta às suas atribuições de rotina no atendimento em hanseníase, considerando que a hanseníase é uma doença de notificação compulsória.

(M5 - F30) [...] sempre é uma consulta que demora mais porque, além de estar examinando, vendo o problema do paciente, a gente precisa saber dos contactantes, tentar entender como esse paciente se contaminou, e precisa fazer toda a papelada de notificação, de prescrição, às vezes, encaminhar também para o dermatologista.

Os profissionais comentaram sobre a comunicação que eles estabelecem com a criança e/ou adolescente e a família ou cuidador, afirmando que o discurso dos usuários se apresenta como elemento norteador das práticas de atenção à saúde em hanseníase. Foi destacado ainda a importância de o profissional utilizar uma linguagem lúdica para compreender tanto o universo infantil quanto o adolescente.

(TO1 - F48) [...] os discursos deles são norteadores. Tem a ver com a nossa prática, o paciente trazer a sua demanda, é ele quem sabe o que quer. O discurso é determinante, pois o pai/a mãe/o cuidador trouxe porque alguém disse alguma coisa ou, se não disse, cabe à gente observar e buscar escutar daquela criança ou do adolescente.

(P1 - F51) Com criança tem um jeito, com adolescente tem outro jeito [...] eu gosto de usar às vezes um jogo, uma brincadeira, um desenho, uma pintura, porque aí a gente pode desenhar, conversar [...] você tem que ter a uma linguagem própria, porque tem que entender o mundo deles, o universo do adolescente, assim como o da criança.

Em contrapartida, foi observado em alguns discursos a invisibilização da criança/adolescente no processo de cuidado, principalmente no primeiro momento do processo de acolhimento, que é a comunicação, tornando assim a interlocução entre profissional e usuário um processo unilateral. A comunicação ocorre de modo verticalizado, quando o profissional expõe informações que considera necessárias para serem cumpridas no tratamento do paciente. As informações são direcionadas ao adulto, e a criança ou o adolescente são meros espectadores, sendo esperado que o adolescente seja capaz de entender a mensagem de modo semelhante ao adulto.

(M10 - F51) Não é a questão de ser criança ou adolescente, porque se for criança quem vai ter que entender o que estou falando é a mãe ou o pai ou a tia, então é o adulto. Se um adolescente já entender, entende igual a um adulto.

A realização do acolhimento na atenção à saúde da criança e do adolescente com hanseníase foi considerada essencial por minimizar riscos de perdas no atendimento e diagnóstico de possíveis casos e por oportunizar o estabelecimento de vínculo entre profissional, paciente e familiares. A proposta de uma assistência inclusiva e humanizada vem constituir uma estratégia de fortalecimento dos pilares das ações de promoção à saúde da população.

(E3 - F46) Na primeira consulta eu acho que é o momento ideal para você criar vínculo. Ele viu que foi acolhido, ele viu que tinha alguém interessado em tratar, em querer ver sua família, em querer ver todo mundo, então ele vê que aquela pessoa está com interesse em tratar, então ele já começa a vir mais facilmente.

O acolhimento é considerado uma prática constitutiva das relações de cuidado entre profissional de saúde e paciente. Acolher a demanda apresentada pela população sugere que esta demanda seja ouvida, problematizada e reconhecida como legítima, o que exige do profissional um olhar ampliado a respeito da necessidade de saúde apresentada pela pessoa1414. Fortuna CM, Oliveira KF, Feliciano AB, Silva MV, Borges FA, Camacho GA, et al. Embracement as an analyzer of the relationships between professionals, managers and users. Rev Esc Enferm USP. 2017;51:e03258. doi: https://doi.org/10.1590/S1980220X2016003303258
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-1515. Moreira CP, Torrenté MON, Jucá VJS. Análise do processo de acolhimento em um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil: considerações de uma investigação etnográfica. Interface (Botucatu). 2018;22(67):1123-34. doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622017.0500
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Os discursos dos profissionais apontam que o acolhimento foi compreendido como elemento que permeia todo o ciclo assistencial da criança e do adolescente em tratamento de hanseníase. Alguns profissionais enfatizam o acolhimento como uma ponte para o estabelecimento de vínculo entre eles e o paciente.

Foi evidenciado na literatura1616. Rocha SA, Spagnuolo RS. Acolhimento na visão complexa: ação coletiva emergente na Equipe de Saúde da Família. Saúde Debate. 2015;39(104):124-35. doi: https://doi.org/10.1590/0103-110420151040394
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que através do acolhimento em saúde é possível estabelecer relações de confiança entre os atores envolvidos nessa prática, como os profissionais de saúde, pacientes e famílias, sendo a confiança o sustentáculo para criação de vínculo.

Na leitura foucaultiana, o cuidado em saúde deve se dirigir de modo a conhecer as frágeis singularidades do ser humano, estabelecendo uma relação dialética entre a doença e o doente1313. Foucault M. O nascimento da clínica. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária ; 2015. . Nessa perspectiva, é possível refletir sobre as práticas de atenção à saúde a partir do profissional, visto que as profissões da saúde têm em sua base de trabalho a constituição de relações com os indivíduos, que são permeadas pelo processo comunicativo. Para assegurar uma atenção à saúde que contemple as necessidades biopsicossociais e culturais de um indivíduo e sua família, é essencial estabelecer uma comunicação embasada em uma relação de vínculo.

Os profissionais indicaram também as peculiaridades do processo de comunicação com crianças e com adolescentes, reconhecendo que muitas vezes aos mesmos é ofertada uma assistência formalizada nos moldes do público adulto. Em estudo sobre o atendimento em ambulatórios de pediatria de um hospital, foi evidenciado que a atenção dispensada pelos profissionais ao paciente e a família, como também a utilização de uma linguagem adequada a este binômio, foram levantados como aspectos positivos no atendimento1717. Lira HG, Machado CVB, Del Ciampo IRL, Del Ciampo LA. Comunicação médico - paciente em ambulatórios de pediatria de um hospital universitário. Medicina (Ribeirão Preto). 2015;48(5):425-30. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2176-7262.v48i5p425-430
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Um dos pontos do critério acolhimento refere-se ao tempo utilizado para o atendimento. O tempo demandado na consulta foi destacado, uma vez que é necessário realizar o exame dermatoneurológico no paciente, a notificação da doença, investigação dos contatos, solicitação de medicamento e orientação da criança/adolescente/família.

No entanto, vale salientar que a assistência integral à saúde das crianças e adolescentes em tratamento de hanseníase requer o desenvolvimento do cuidado a essa população com foco na promoção da saúde e humanização do atendimento. Ela deve ser voltada para a resolução das demandas de saúde, sejam elas individuais ou coletivas, valorizando a criança e o adolescente como sujeitos sociais de direitos em seu processo de crescimento e desenvolvimento1717. Lira HG, Machado CVB, Del Ciampo IRL, Del Ciampo LA. Comunicação médico - paciente em ambulatórios de pediatria de um hospital universitário. Medicina (Ribeirão Preto). 2015;48(5):425-30. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2176-7262.v48i5p425-430
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. Emerge destacar a importância da atuação do enfermeiro como elemento articulador e mobilizador da equipe de saúde, considerando as especificidades de cada profissional para assegurar o atendimento integral a esse grupo populacional, tendo em vista a relevância da atuação do enfermeiro, principalmente nas consultas de acompanhamento.

A partir da análise do requisito tempo para apreender todas as demandas voltadas para um cuidado integral às crianças/adolescentes com diagnóstico de hanseníase, o pensamento foucaultiano1313. Foucault M. O nascimento da clínica. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária ; 2015. aborda que o cuidado em saúde atualmente vem sendo executado em uma atenção cada vez mais impaciente e apressada. Para Foucault, esse tipo de prática não reflete a sua essência, pois a “pressa” e a “impaciência” matam o poder de apreensão do profissional para as questões mais profundas que existem entre o doente e a doença. A produção do cuidado em crianças e adolescentes com hanseníase exige cautela do profissional de saúde em relação às especificidades, considerando não só a sua idade, como também o seu desenvolvimento cognitivo e emocional.

A prática clínica

Em seus discursos sobre as práticas clínicas, os participantes destacaram uma distinção entre a consulta inicial, com avaliação para definição do diagnóstico e tratamento, e as consultas mensais posteriores para acompanhamento do tratamento, a partir de seis meses até a alta. Ao considerar as especificidades das crianças e adolescentes, os profissionais enfatizaram uma maior dificuldade para definir o diagnóstico com base na realização do exame dermatoneurológico. Em relação às consultas de retorno, foi sinalizada a necessidade de sensibilizar os familiares para assegurar o exame dos contatos e retornar ao serviço, caso a criança ou adolescente apresente qualquer alteração.

A maioria dos participantes associou a prática clínica com a anamnese e/ou exame físico detalhado do usuário. Na prática clínica é primordial uma avaliação clínica, a qual envolve o processo inicial em uma consulta, quando o profissional vai apreender dados relatados pelo familiar e adolescente ou criança, como também vai proceder o exame dermatoneurológico.

(M5 - F30) Primeiro a anamnese, a gente vai querer saber qual a história, por que o paciente veio, por que está aqui, o que aconteceu, e no exame físico a gente vai procurar alguma lesão de pele, e aí faz os testes de sensibilidade.

(TO1 - F48) Inicialmente eu vejo essa parte de avaliação ocupacional e social, porque isso tem tudo a ver com as minhas práticas, posteriormente tem uma anamnese e depois sigo para o que o ministério da saúde preconiza para a gente fazer na área de reabilitação.

A solicitação de exames laboratoriais também foi destacada como procedimento inerente à prática clínica, pois como medida complementar é essencial para avaliar as funções orgânicas e possíveis adequações na terapêutica medicamentosa.

(E7 - F37) a gente já pede a função hepática desse paciente, hemograma, exames de urina, a gente geralmente já começa o tratamento com antiparasitário, tudo isso.

(M7 - F35) Já sai com os exames de rotina, então o inicial a gente pede glicemia, hemograma, porque normalmente a dapsona pode fazer anemias, e a gente vai pedir os outros exames, a parte de bioquímica, bilirrubina, TGO, TGP, função hepática, G6PD, coagulograma. Faz a medicação e o albendazol para a profilaxia de estrongilóides.

Outra questão abordada entre os participantes foi no tocante ao processo de investigação da doença. Foram relatadas dificuldades em definir o diagnóstico de hanseníase em crianças pela maioria dos profissionais das unidades básicas de saúde, sendo encaminhadas para as unidades de referência.

(E7 - F37) [...] às vezes tem dificuldade nas respostas, principalmente crianças, então, quando tem criança geralmente a gente encaminha para a referência, porque não é tão simples fechar um diagnóstico de uma criança. Eles se confundem nas respostas da sensibilidade [...]

Outro ponto abordado entre os entrevistados foi o exame dos contatos. Muitos profissionais apresentaram dificuldades em investigar a existência de outros casos da doença entre os comunicantes, pela resistência deles em comparecerem ao serviço.

(E3 - F46) Eu acho que a minha maior dificuldade é fazer exames de contato. Um paciente eu consegui ir na casa dele e fiz o exame de contato, porque na unidade eles não vinham [...]. O outro paciente eu não consegui fazer de nenhum ainda porque até a mãe dele que veio trazer no dia, ela não me deixou fazer o exame.

Em seus discursos os participantes apontaram como uma potencialidade da prática clínica o tratamento medicamentoso.

(M4 - F36) A medicação chega bem rápido, não tenho problema, quando solicitar em 24 horas ela vai chegar e eu vou iniciar.

A prática clínica, quando aplicada no contexto da Atenção Primária à Saúde, pode ser compreendida como uma atividade que envolve vários processos e ações articulados que resultam no cuidado integral ao usuário. A nomenclatura clínica é utilizada nas obras foucaultianas ao apresentar a prática clínica como um elemento de acumulação positiva do saber profissional. O referido filósofo ainda afirma que a clínica assume um papel dinâmico dentro da atenção à saúde, pois através do olhar constante e atento sobre o doente ela se renova a cada instante1313. Foucault M. O nascimento da clínica. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária ; 2015. .

O profissional no exercício da clínica é instrumentalizado para desvelar a verdade em seu sentido original. Entretanto, esta prática precisa ser sistematizada em todo seu desfecho, desde o início do encontro do profissional com o paciente, perpassando pelo aconselhamento, apreensão da história clínica, exame físico, seguindo sistematizada e organizada até o final do encontro. Neste sentido, o pensamento foucaultiano aponta a clínica como elemento fundamental e valoroso na atenção à saúde, mas não o único1313. Foucault M. O nascimento da clínica. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária ; 2015. .

A analítica foucaultiana apresentada em “O Nascimento da Clínica” coloca a importância de o profissional dominar as características biológicas da doença, mas não se restringir a elas. O profissional só consegue ampliar o seu conhecimento em saúde se ele for além da doença, por meio da investigação do que está por trás dela, para assim compreender o paciente como um todo, de acordo com o contexto social em que ele está inserido.

A avaliação da criança e do adolescente por meio da anamnese e do exame físico, assim como a solicitação de exames descrita pelos entrevistados, corrobora com o estudo realizado1818. Serrano-Coll H, Mora HR, Beltrán JC, Duthie MS, Cardona-Castro N. Social and environmental conditions related to Mycobacterium leprae infection in children and adolescents from three leprosy endemic region of Colombia. BMC Infect Dis. 2019;19:520. doi: https://doi.org/10.1186/s12879-019-4120-2
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, onde foi constatado que, além de promover a saúde e prevenir doenças, essas práticas auxiliam no conhecimento das características clínicas, sociodemográficas e culturais dos pacientes.

Ao discutir sobre o acompanhamento das crianças e adolescentes com hanseníase, os entrevistados apontaram o exame dos contatos e ainda a segurança no diagnóstico como limitações apresentadas em suas práticas. A avaliação dos contatos, sejam eles domiciliares ou sociais, objetiva quebrar a cadeia de transmissão da doença, como também evitar as incapacidades e deformidades físicas decorrentes do diagnóstico tardio. Além disso, o exame se propõe a buscar as possíveis fontes de infecção da doença, para assim realizar o acompanhamento adequado1919. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Guia prático sobre a hanseníase. Brasília, DF; 2017 [cited 2019 Aug 10]. Available from: https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2017/novembro/22/Guia-Pratico-deHanseniase-WEB.pdf
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. Vale salientar a importância de investigar os contatos das crianças e adolescentes, tendo em vista o risco de transmissão da hanseníase para os contatos domiciliares ser nove vezes maior devido a exposição contínua e precoce ao bacilo2020. Pradhan S, Nayak BP, Dash G. Childhood leprosy: a review. Indian J of Paediatr Dermatol. 2019;20(2):112-6. doi: https://doi.org/10.4103/ijpd.IJPD_47_18
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A dificuldade em realizar o diagnóstico em crianças foi referida pelos profissionais, e o fato de a criança não conseguir se expressar verbalmente de maneira precisa em relação ao exame dermatoneurológico, que requer testes de sensibilidade térmica, dolorosa e tátil na investigação da hanseníase, foi apresentada como justificativa.

Estudo realizado com crianças e adolescentes menores de 15 anos2020. Pradhan S, Nayak BP, Dash G. Childhood leprosy: a review. Indian J of Paediatr Dermatol. 2019;20(2):112-6. doi: https://doi.org/10.4103/ijpd.IJPD_47_18
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vem corroborar com os achados da pesquisa, ao afirmar que a palpação de nervos periféricos e a realização dos testes de sensibilidade constituem problemas na identificação da doença, especialmente em crianças.

O tratamento medicamentoso da hanseníase foi um ponto positivo abordado pelos participantes. Em seus discursos, eles relatam regularidade e acessibilidade na distribuição mensal das cartelas de medicações pelo SUS, padronizadas em esquemas terapêuticos poliquimioterápicos paucibacilar e multibacilar, ambos para o público infantil e adulto, embora a terapêutica medicamentosa e o diagnóstico laboratorial não se constituam como atrativos para investimentos em pesquisa pela indústria químico-farmacêutica55. Menezes MLN, Figueiroa MN, Monteiro EMLM, Beserra AA, Fernandes MJSS, Santana ADS. Leprosy in subjects under 15 years: epidemiological analysis in Brazil. Int Arch Med. 2017;10. doi: https://doi.org/10.3823/2495
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Educação em saúde

Os discursos dos participantes do estudo demonstram que as atividades de educação em saúde são desenvolvidas em eventos pontuais específicos para hanseníase. Alguns participantes citaram que não aconteciam atividades de educação em saúde em hanseníase para grupos de crianças e adolescentes em específico, mas que as atividades aconteciam genericamente para quem estivesse na sala de espera aguardando atendimento, independente da faixa etária. A educação em saúde foi também referida como as orientações individuais durante as consultas.

(M5 - F30) Só desenvolve [atividade de educação em saúde] quando tem campanha que geralmente o distrito faz, a semana ou o mês de alguma coisa, aí a gente faz palestra, conversa, enfim... Atividade regular não tem.

Ao discorrerem a respeito de suas atividades educativas, foi possível observar que os entrevistados as realizam ao encontrar com a criança e/ou adolescente e família e/ou cuidador durante as consultas.

(F2 - F4) [...] atualmente a única parte de educação em saúde que está sendo feita é durante a consulta, a orientação para os pais ou para o acompanhante da criança.

Ao realizar as orientações às crianças e/ou adolescentes e aos familiares em relação a hanseníase, pode-se constatar que em alguns momentos elas foram utilizadas com enfoque na doença com distintas abordagens, seja marcada pelo modelo biologicista ou por uma perspectiva mais ampla que considera aspectos psíquicos e sociais, no sentido de desmistificar a doença.

(M2 - F45) [...]a gente começa a explicar aquela mancha, e depois a gente faz os testes [...] se a gente observa que já está perdendo essa sensibilidade, eu começo a falar contando a história [...] existe muito tabu, muito preconceito ainda com relação à hanseníase por conta daquela história da doença da lepra, então existe um preconceito social em cima disso. A gente procura deixar uma coisa mais leve mostrando que tem cura [...]

No contexto das práticas de atenção à saúde em hanseníase para crianças e adolescentes, vale salientar a importância da construção de um conhecimento mediado por atividades educativas em saúde. Ao transitar pelos pensamentos foucaultianos sobre o saber e o conhecimento, pode-se observar que o autor faz uma análise, por que não dizer, genealógica do conhecimento em uma investigação histórica de suas possibilidades88. Foucault M. A Arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2013. .

Ao trazer esse diálogo entre poder e o saber para o campo da saúde, ele faz uma análise da contribuição desse conhecimento para a organização da atenção à saúde, com ênfase em suas práticas. Em seu pensamento, ele valoriza o conhecimento como o caminho para a revelação da verdade, e esse conhecimento terá o seu caráter produtivo reconhecido como verdadeiro, indispensável e necessário à sociedade a partir do momento em que ele é desempenhado na dimensão de liberdade88. Foucault M. A Arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2013. .

Neste sentido, podemos falar de educação em saúde enquanto prática política, pedagógica e social dentro da esfera das práticas de atenção à saúde, um processo sistemático e contínuo que parte do princípio da promoção da saúde, que requer um pensar reflexivo, de modo a mostrar a realidade, propiciando a elaboração de ações transformadoras que levem a pessoa à sua autonomia e emancipação, além de uma maior participação no seu processo de cuidado. Essa interpretação de educação em saúde considera o indivíduo como sujeito social, capaz de opinar nas decisões sobre a sua saúde2121. Monteiro EMLM, Mercês AA, Cavalcanti ACBS, Cavalcanti AMTS, Lacerda ACT, Silva RDM, et al. Culture circle as a teaching approach in the education of teenager health multipliers on leprosy awareness. Health. 2015;7(14):1813-23. doi: https://doi.org/10.4236/health.2015.714199
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As atividades educativas configuram-se como elemento capaz de proporcionar um maior engajamento do indivíduo com a saúde, seja ela individual ou coletiva. Quando orientadas para o público infantil ou adolescente, é imprescindível a estimulação da criatividade desses sujeitos. Para subsidiar o processo educativo em saúde envolvendo crianças e adolescentes, encontramos referenciais teórico-metodológicos que subsidiam propostas voltadas a esse público com o emprego de técnicas lúdicas, como brincadeiras e jogos que estimulam a fantasia e propiciam uma articulação com a realidade, motivando e envolvendo a participação da criança. Mas o tema também pode ser explorado com abordagens de maior complexidade para os adolescentes2222. Vygotsky LS. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2007. .

Em análise aos discursos dos participantes, observa-se que não há atividades de educação em saúde, nas USF ou nas unidades de referência, direcionadas às crianças e aos adolescentes em tratamento de hanseníase, nem aos seus familiares. Essa atitude reforça o isolamento, reprimindo possibilidades de construção pactuada no coletivo, de modos de identificação e enfrentamento a fatores limitantes a promoção da saúde, que são resultantes de uma produção social.

O mês de janeiro configura-se como um disparador para a percepção da hanseníase enquanto problema de saúde pública nacional, pois o Ministério da Saúde oficializou este período para enfatizar as campanhas de conscientização sobre a doença em todo território brasileiro. Entretanto, as ações educativas não podem ser restritas a esse momento do ano. É necessário um desencadeamento continuado de atividades sobre o tema, em articulação com as ações de vigilância e detecção precoce de novos casos.

É possível observar nos discursos dos profissionais de saúde que as orientações sobre a hanseníase são realizadas durante a consulta de crianças e adolescentes e que são operadas sob um contexto tradicional verticalizado. Em analogia ao pensamento foucaultiano, esse tipo de prática perpassa pela ideia do exercício de um poder denso, onde o saber não é praticado em seu sentido de liberdade. O exercício de uma educação em saúde comprometida com o sentido de liberdade está fundamentado no desenvolvimento de ações de educação em saúde que articule arenas dialógicas para o processo de ensino e aprendizagem sobre hanseníase, comprometidas com o protagonismo da criança e do adolescente como sujeitos de direitos2121. Monteiro EMLM, Mercês AA, Cavalcanti ACBS, Cavalcanti AMTS, Lacerda ACT, Silva RDM, et al. Culture circle as a teaching approach in the education of teenager health multipliers on leprosy awareness. Health. 2015;7(14):1813-23. doi: https://doi.org/10.4236/health.2015.714199
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A interlocução entre profissional-criança/adolescente-família não foi privilegiada em todos os momentos, pois o discurso das crianças e dos adolescentes foi desvalorizado por alguns profissionais em suas narrativas, deixando clara a invisibilização da criança e do adolescente no processo de cuidado.

Os profissionais relatam em seus discursos a importância de desmistificar a doença nas orientações fornecidas na consulta. A reflexão foucaultiana1212. Foucault M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes ; 2014. mostra que uma das formas de exercício do poder é sob forma de repressão, onde essa repressão está ligada ao desconhecimento. Esse poder repressor é mais eficiente quanto maior for a ignorância. Em relação a essa ideia de exclusão, o referido teórico faz uma analogia aos hansenianos durante a idade média, onde o indivíduo era sujeito a todo tipo de práticas de rejeição. Para o autor, essa forma de poder não era exercida apenas com os indivíduos com hanseníase, mas sim com os indivíduos considerados “anormais”, como os loucos, as crianças, os criminosos, os doentes, os pobres1212. Foucault M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes ; 2014. .

Esse modelo de exclusão abordado1212. Foucault M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes ; 2014. , traduzido atualmente como estigma ou preconceito, marcou desde o início a história da hanseníase até os dias atuais. Por esse motivo, o diagnóstico geralmente causa impacto na criança, adolescente e/ou família. Em crianças e adolescentes esse impacto se configura de diferentes maneiras. Na criança, vai depender do nível de desenvolvimento socio-cognitivo; para o adolescente pode ser mais complexo, pois esta é uma fase de profundas modificações em que a identidade e autoestima estão em processo de construção2121. Monteiro EMLM, Mercês AA, Cavalcanti ACBS, Cavalcanti AMTS, Lacerda ACT, Silva RDM, et al. Culture circle as a teaching approach in the education of teenager health multipliers on leprosy awareness. Health. 2015;7(14):1813-23. doi: https://doi.org/10.4236/health.2015.714199
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo foi possível analisar, através dos discursos, que os profissionais realizam suas práticas de atenção à saúde de maneira massificada, pelo elevado quantitativo de consultas e atividades protocolares definidas pelo Sistema de Saúde, refletindo nas limitações para estabelecer uma assistência que contemple as peculiaridades da criança e do adolescente em tratamento de hanseníase. Desse modo, à luz do referencial foucaultiano, cabe refletir sobre o uso da normalização para o controle dos corpos dos indivíduos, o que pode ser observado ainda na pequena participação desse grupo populacional no seguimento do seu cuidado.

Esta pesquisa vem contribuir com evidências que destacam a necessidade de uma reorientação na formação dos profissionais de saúde para uma atuação interdisciplinar, não só na atenção integral à saúde de criança e adolescente com hanseníase, mas também na gestão e nas práticas de atenção à saúde, destacando a importância da escuta aos profissionais que compõem a atenção primária para o delineamento de políticas públicas comprometidas com o enfrentamento da alta endemicidade da hanseníase em crianças e adolescentes.

Neste sentido, observa-se a necessidade de (re)organização das práticas de atenção à saúde em hanseníase para o público infantil e adolescente, de modo a orientar o desenvolvimento de boas práticas. É fundamental o incentivo à realização de outros estudos na área, de modo a contemplar novos olhares sobre a temática.

Como limitação do estudo foi identificada a dificuldade em agregar dados oriundos de observações, durante os atendimentos dos profissionais à criança ou adolescente e familiares, pois implicaria em interferir na espontaneidade das interrelações entre os atores envolvidos no processo do cuidar.

Agradecimentos

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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Editado por

Editor associado:

Wiliam Wegner

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    29 Out 2019
  • Aceito
    12 Fev 2020
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