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A Companhia de Pernambuco e Paraíba e o funcionamento do tráfico de escravos em Angola (1759-1775/80)

Resumos

Através da análise dos livros contábeis da Companhia de Pernambuco e da Paraíba, o artigo apresenta estimativas sobre o negócio de importações e a lucratividade do tráfico em Angola operado pela Companhia. Por este estudo de caso procura-se desenvolver a hipótese formulada originalmente por Joseph Miller de que era a metrópole que financiava a maior parte do tráfico em Angola. Deste modo, pretende-se discutir o funcionamento do tráfico de escravos nesta região, particularmente no que diz respeito às operações de financiamento e de transporte.

tráfico de escravos; Companhia de Pernambuco; Angola; crédito; transporte


By analyzing the Pernambuco & Paraíba Company's books, this article presents estimates about the importations and profitability of the slave trade in Angola, operated by the Company. This case study seeks to develop a hypothesis originally formulated by Joseph Miller that it was the metropolis that financed most of trade in Angola. Thus, we intend to discuss the operation of the slave trade in the region, particularly with regard to financing and transport operations.

Slave trade; Pernambuco Company; Angola; credit; transport


  • 1
    1 José Ribeiro Jr., Colonização e monopólio no Nordeste brasileiro, São Paulo: Hucitec, 2004;
  • e Antônio Carreira, As companhias pombalinas,Lisboa: Presença, 1983.
  • 2 Por exemplo, Érika S. A. Carlos, "O fim do monopólio: a extinção da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba" (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Pernambuco, 2001).
  • 3 Sigo a documentação da Companhia e boa parte dos registros alfandegários que designam por "Angola" o comércio feito através do porto de Luanda. Esta designação parece ser comum no Império português durante o século XVIII, pois, de acordo com Miller, enquanto nas colônias das demais nações europeias os escravos denominados Angola diziam respeito a todos os indivíduos resgatados ao sul do Cabo Lopes, no Brasil eram designados por "Angola" os escravos despachados por Luanda. Não pretendo generalizar o "modelo" de funcionamento do tráfico discutido aqui para outras zonas como Loango, Cabinda e Benguela. Joseph Miller, "África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850", in Linda Heywood (org.), Diáspora negra no Brasil (São Paulo: Contexto, 2010), pp. 38-42.
  • 4 Joseph Miller, Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830, Winscosin: The Universisty of Winscosin Press, 1988.
  • A historiografia tem avançado bastante no debate a respeito das relações entre o comércio de escravos e as comunidades africanas do interior, o impacto do tráfico sobre a demografia e sobre as guerras no interior de Angola e demais regiões da África Centro-Ocidental. Ver por exemplo: John Thornton, "Early Kongo Portuguese Relations: A New Interpretation", History in Africa, v. 8 (1981), pp. 183-204;
  • John Thornton, "As guerras civis no Congo e o tráfico de escravos: a história e a demografia de 1718 a 1844 revisitadas", Estudos Afro-Asiáticos, n. 32 (1997), pp. 55-74,
  • John Thornton, Cannibals, Witches, and Slave Traders in the Atlantic World. The William and Mary Quarterly, Third Series, v. 60, n. 2 (2003), pp. 273-94;
  • Roquinaldo Ferreira, "Transforming Atlantic Slaving: Trade, Warfare and Territorial Control in Angola, 1650-1800" (Tese de Doutorado, Universidade da Califórnia, 2003);
  • José Curto, Raymond Gervais, "A dinâmica demográfica de Luanda no contexto do tráfico de escravos do Atlântico Sul, 1781-1844", Topoi, n. 4 (2002), pp. 85-138.
  • Ver também os trabalhos mais gerais de John Thornton, "The Portuguese in Africa",in Francisco Bethencourt e Diogo Curto, Portuguese Oceanic Expansion, 1400-1800 (Cambridge: Cambridge University Press, 2007);
  • Jan Vansina, "O Reino do Congo e seus vizinhos"; e Marian Malowist, "A luta pelo comércio internacional e suas implicações para a África", ambos in Allan Bethwell (org.), História da África, v. V (Brasília: Unesco, 2010), pp. 647-695 e pp. 1-27;
  • David Birmgham, Trade and Conflict in Angola. The Mbundu and their Neighbours under the Influence of the Portuguese 1483-1790 Oxford: Clarendon Press, 1966.
  • Paradoxalmente são poucas as contribuições recentes sobre a organização financeira do negócio durante o século XVIII, especialmente se considerarmos que existem muitas fontes contábeis e alfandegárias nos arquivos portugueses. Os trabalhos mais abrangentes a este respeito e sobre o século XVIII permanecem sendo os de Joseph Miller, "Imports at Luanda, Angola 1785-1823", in G. Pasch e A. Jones, Figuring African Trade (Berlin: Reimer, 1986);
  • Joseph Miller, "Slave Prices in the Portuguese Southern Atlantic, 1600-1830", in Paul Lovejoy (org.), Africans in Bondage. Studies in Slavery and Slave Trade (Winscosin: African Studies Program; University of Winscosin, 1986), pp. 43-77;
  • e Joseph Miller, "Capitalism and Slaving: The Financial and Commercial Organization of the Angolan Slave Trade, According to the Accounts of Antonio Coelho Guerreiro (1684-1692)" The International Journal of African Historical Studies, v. 17, n. 1 (1984).
  • Também José Curto trabalhou com o material alfandegário de Luanda em seu estudo sobre o papel das bebidas alcoólicas no tráfico: José Curto, Álcool e escravos. O comércio luso-brasileiro do álcool em Mpinda, Luanda e Benguela durante o tráfico atlântico de escravos (c. 1480-1830) e o seu impacto nas sociedades da África Central e Ocidental, Lisboa: Vulgata, 2002.
  • Existem ainda algumas obras mais recentes que tratam do século XVII: Linda Newson e Susie Minchin, From Capture to Sale: The Portuguese Slave Trade to Spanish America in the early Seventeenth Century, Leiden/Boston: Brill, 2007;
  • e Filipa R. Silva, "Crossing Empires: Portuguese, Sephardic, and Dutch Business Networks in the Atlantic Slave Trade, 1580-1640", The Americas, v. 68, n. 1 (2011), pp. 7-32.
  • 5 Cf. Carreira, As companhias pombalinas,p. 236.
  • 6 David Eltis et. al "Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database" (2008), www.slavevoyages
  • 8 Miller utilizou, provavelmente, as mesmas fontes e a diferença deve ser resultado de eu não ter contabilizado "as crias", mas apenas os escravos adultos. Cf. Joseph Miller, "The Numbers, Origins, and Destinations of Slaves in the Eighteenth-Century Angolan Slave-Trade", in Joseph Inikori e Stanley L. Engerman (orgs.), The Atlantic Slave Trade: Efects on Economies, Societies and Peoples in Africa, (Durham: Duke University Press, 1992), p. 77-116.
  • 9 Carreira, As companhias pombalinas, p. 8.
  • 13 Kenneth Maxwell, Chocolate, piratas e outros malandros, São Paulo: Paz e Terra, 1999.
  • Ver também José A. França, "Burguesia pombalina, nobreza mariana, fidalguia liberal", in Maria H. C. Santos, Pombal revisitado, v. I (Lisboa: Estampa, 1984), pp. 19-33.
  • 14 Estatuto da Companhia de Pernambuco e Paraíba, artigo 26, apud: Carreira, As companhias pombalinas, p. 223.
  • 15 Ribeiro Jr., Colonização e monopólio, p. 85.
  • 16 Os portugueses possuíam feitorias em Jakin e Ouidah, mas comerciavam também com as feitorias das outras nações europeias: cf. Robin Law e Kristin Mann, "West Africa in the Atlantic Community: The Case of the Slave Coast", The William and Mary Quarterly, Third Series, v. 56, n. 2,
  • African and American Atlantic Worlds (1999), pp. 307-34;
  • Robin Law, The gold trade of Whydah in the seventeen and eighteenth centuries, in David Henige e D. McCaskie (orgs.), West African Economic and Social History. Studies in memory of Marion Johnson (105-118) (Madison: University of Wisconsin, 1990), pp. 105-18.
  • Sobre as diferenças do tráfico em Angola e na Costa da Mina, cf. Gustavo Acioli Lopes e Maximiliano Menz, "Resgate e mercadorias: uma análise comparada do tráfico luso-brasileiro em Angola e na Costa da Mina (século XVIII)". Afro-Ásia,n. 37 (2008), pp. 43-73.
  • Ver também Gustavo Acioli Lopes, "Negócio da Costa da Mina e comércio atlântico - tabaco, açúcar, ouro e tráfico de escravos: Pernambuco (1654-1760)" (Tese de Doutorado, USP, 2008);
  • 21 Curto, Álcool e escravos, quadros IV e VIII; e The Transatlantic Slave Trade Database (http://www.slavevoyages.org/tast/database/search.faces, consultado em 25/05/2011).
  • 22 Outro grande operador no tráfico era o contrato Angola. Como, durante a década de 1760, os contratadores estavam sediados em Portugal (Estevam José de Almeida e Domingos Dias da Silva), é muito provável que suas operações repetissem o padrão da CGPP, remetendo grandes cargas de Lisboa. No momento estou preparando um estudo sobre o contrato de Angola, utilizando para isto os livros contábeis de um dos contratadores. Ver ainda Miller, Way of Death, pp. 535-69.
  • 26 Entre 1796 e 1807 a participação metropolitana no fornecimento de mercadorias para Angola teria ficado entre 54% e 60%, e as cargas médias com origem em Portugal seriam de 73 contos de réis e as com origem na Bahia de apenas 12 contos de réis. Maximiliano M. Menz, "As 'Geometrias' do tráfico. O comércio metropolitano e o tráfico de escravos em Angola", Revista de História, n. 166 (2012), pp. 185-222.
  • 28 ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, L-290, 25/02/1763. Durante a década de 1760 a Coroa autorizou que as naus da Carreira da Índia tocassem em Luanda e vendessem mercadorias no local. De acordo com os registros alfandegários dos despachos das cargas das Naus da Índia, havia um número muito grande de despachantes de mercadorias, incluindo os administradores da CGPP e do contrato de Angola ligados a mercadores metropolitanos. O maior despachante individual foi Antonio José da Gama e Cia. que despachou 22 contos entre 1766 e 1772 (3,14 contos por ano). AHU, Avulsos, Angola, cx. 50, doc. 16, 14/06/1766, AHU, Avulsos, Angola, cx. 51, doc. 71, 1767 AHU, Avulsos, Angola, cx. 55, doc. 53, 12/08/1772, AHU, Avulsos, Angola, cx. 55, doc. 89, 07/12/1771, AHU, Avulsos, Angola, cx. 56, doc. 70, 16/08/1772. Nas fontes alfandegárias e contábeis com as quais trabalhei não existem indícios que comprovem a tese de Roquinaldo Ferreira ("Transforming Slaving") de que os mercadores do Brasil controlavam o comércio de têxteis indianos em Angola, pelo menos no que se refere à segunda metade do século XVIII. Ademais o acesso dos mercadores do Brasil ao oriente se restringia a Moçambique. Luís Frederico Dias Antunes, "A influência africana e indiana no Brasil na virada do século XVIII: escravos e têxteis, inJoão Fragoso, Jucá Sampaio e Adriana Campos (orgs.), Nas rotas do Impéro: eixos mercantis e relações sociais no mundo português (Vitória: Edufes, 2006), pp. 148-49.
  • Os estudos de Vitorino Magalhães Godinho, Paulo Guinote e Jorge Pedreira mostram a grande vitalidade do comércio metropolitano com a Índia na segunda metade do século XVIII: Vitorino Magalhães Godinho, "Os portugueses e a 'Carreira da Índia' (1497-1810)", in Mito e mercadoria, utopia e prática de navegar, séculos XIII-XVIII (Lisboa: Difel, 1990), p. 344;
  • Paulo Guinote, "India Route Project: Ascensão e declínio da carreira da Índia", in http://nautarch.tamu.edu/shiplab/, Nautical Archaeology Program, Texas A& M University, 2003;
    » link
  • Jorge Pedreira, Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-1822).Diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social, Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1995, pp. 339-41.
  • Deste modo, pela comparação entre os dados das balanças de comércio portuguesas e os registros de importação de Luanda é possível estimar que em torno de 76% das importações angolanas deste tipo de produto tinham origem em Portugal entre 1798 e 1805. Cf. Menz, "As 'Geometrias' do tráfico", p. 197.
  • 32 Ao contrário do que ocorria com o comércio de atanados, açúcar e meios de sola. Cf. Ribeiro Jr., Colonização e monopólio, pp. 137-55.
  • A presunção da baixa importância dos fretes no tráfico baseia-se no pequeno registro de fretes da Companhia do Grão Pará e Maranhão para Angola. ANTT, Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão, Junta de Lisboa, Livro de carga dos navios por saída, L-75; e na comparação entre os valores dos fretes registrados nos livros de demonstrações da CGPP e o número de escravos carregados por algumas das embarcações segundo os mapas do AHU. Carreira afirma que entre 1782 e 1783 a Companhia carregou 2.436 escravos e 7 crias de particulares. Cf. Carreira, As companhias pombalinas, p. 234.
  • 33 Vale acrescentar que em 1770, ao ser encerrado o contrato de Angola, a Junta de Fazenda do governo de Angola, preocupada com a diminuição no fornecimento de mercadorias para o resgate, elaborou um cálculo sobre a quantidade de importações necessárias para financiar as exportações de escravos. Segundo os membros da Junta, o produto anual das embarcações com origem nos portos brasileiros era de 160 contos (28%), restando 404 contos que deveriam ser completados por embarcações vindas de Lisboa. AHU, cx. 54, doc. 28, Avulsos, Angola, 03/06/1770, anexada à correspondência de D. Francisco de Souza Coutinho. Luiz Felipe Alencastro é um dos que argumentam pelo domínio brasílico a partir da maior frequência de embarcações com origem no Brasil: O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, São Paulo: Companhia das Letras, 2000,pp. 323-24.
  • Também Mariana Candido conclui que os mercadores do Brasil dominavam o negócio em Benguela pelo mesmo argumento: "Merchants and the Business of the Slave Trade at Benguela, 1750-1850", African Economic History, n. 35 (2007), p. 8.
  • Já Acioli Lopes demonstra que as poucas naus metropolitanas que frequentavam a Costa da Mina também levavam cargas mais valiosas que as embarcações com origem no Brasil: "Negócio da Costa da Mina", pp. 44-5.
  • 34 ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, L-290, 21/05/1773. As palavras são de autoria da Junta de Lisboa que comentava uma resposta da administração de Angola. Sobre o uso do crédito em Benguela ver Mariana Candido, " Merchants and the Business", pp. 13-7.
  • 35 Cf. Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), Coleção Lamego, Códice 82, Francisco Inocencio Coutinho , 03/02/1770 e Joseph Miller,
  • 37 ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, L-290, 21/05/1773. Ver, por exemplo, Manolo Florentino, Em costas negras São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
  • 38 Miller tem uma opinião parecida sobre o crédito: Miller, "The Numbers, Origins", pp. 85-6.
  • Naturalmente, as outras nações também faziam uso do crédito, por exemplo, as grandes firmas traficantes inglesas mantinham feitorias na costa da África que forneciam, mas creio que a baixa frequência de embarcações metropolitanas no tráfico angolano tornava mais comum o uso do crédito em Angola. Sobre o uso do crédito pelos ingleses, cf. Joseph Inikori, African and the Industrial Revolution in England: A study in international trade and economic development, Cambridge: Cambridge University Press, 2002, pp. 323-24.
  • 41 Estatuto da Companhia de Pernambuco e Paraíba, artigo 27, apud: Carreira, As companhias pombalinas, p. 291.
  • 45 Cf. Acioli Lopes, "Negócio da Costa da Mina", pp. 163-8.
  • 46 Acioli Lopes, "Negócio da Costa da Mina", p. 169.
  • 50 Acioli Lopes, "Negócio da Costa da Mina", p. 166.
  • 55
    55 São muitas as reclamações sobre as condições do negócio de escravos no Brasil durante as décadas de 1760 e 1770, por exemplo, AHU, Angola, cx. 54, doc. 20, Francisco Inocencio Coutinho, 15/03/1770 e, de fato, as exportações de escravos para o Brasil caíram bastante durante a década de 1770. Ver Manolo Florentino, Alexandre Vieira Ribeiro, Daniel Domingues da Silva. "Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX)", Afro-Ásia, n. 31 (2004), pp. 83 126,
  • 59 Leonor Costa, O transporte no Atlântico e a Companhia Geral do Comércio do Brasil, 1580-1663, Lisboa: CNCDP, 2002.
  • 60 José R. Lapa, A Bahia e Carreira da Índia, São Paulo/Campinas: Hucitec/Editora da Unicamp, 2000.
  • 61 Cf. Stwart Schwartz, Segredos internos, p. 204;
  • e Helen Osório, "Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da extremadura portuguesa na América: Rio Grande de São Pedro, 1737-1822" (Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense, 1999), pp. 223-6.
  • Acioli Lopes, "Negócio da Costa da Mina", p. 26.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Abr 2014
  • Data do Fascículo
    Dez 2013

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2011
  • Aceito
    16 Out 2012
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