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Resistência a hormônios tireóideos: contribuição da transgênese para a compreensão da síndrome

Resumos

A resistência aos hormônios tireóideos (RTH) é uma síndrome de herança dominante, decorrente da hipossensibilidade dos tecidos aos hormônios tireóideos e caracterizada pela elevação dos hormônios tireóideos séricos com TSH normal ou aumentado e bócio. Tem sido atribuída a mutações na isoforma beta do receptor para hormônios tireóideos (TRbeta). Modelos de transgênese têm contribuído para a compreensão da RTH. A ausência da expressão do TRbeta em camundongos TRbeta knockout tornou os tireotrofos parcialmente resistentes aos hormônios tireóideos, o que não ocorreu nos animais knockout para a isoforma a do TR. Entretanto, camundongos que não expressam as duas formas de TR apresentam completa resistência aos hormônios tireóideos, sendo os hormônios tireóideos e TSH séricos elevadíssimos. Mutantes de TRbeta humano expressos em tecidos de Camundongo reproduziram várias manifestações da RTH. A expressão de TRbeta mutado apenas no coração ou apenas na hipófise induziu diminuição dos efeitos de hormônios tireóideos e resistência à administração dos mesmos nestes tecidos. Modelos transgênicos evidenciaram que, além da resistência hipofisária, a resistência nos neurônios hipotalâmicos, de TRH, é imprescindível para que haja aumento de produção de hormônios tireóideos. Camundongos knockout para o coativador SRC-1 também se mostraram parcialmente resistentes aos hormônios tireóideos, sugerindo que outras proteínas envolvidas no mecanismo de ação dos hormônios tireóideos possam causar RTH. Assim, os modelos transgênicos forneceram provas que o mutante TRb, in vivo, interfere com a ação das diferentes isoformas do TR selvagem e causa RHT. Modelos transgênicos são uma valiosa ferramenta para a compreensão da heterogeneidade de apresentação clínica da RTH.

Tireóide; TSH; Hormônios tireóideos; Resistência hormonal; Receptores hormonais


Resistance to thyroid hormone (RTH) is a dominantly inherited syndrome due to hyposensitivity of tissues to thyroid hormones, characterized by elevated serum thyroid hormones and goiter with normal or increased serum TSH. RTH has been associated with mutations in the beta isoform of the TH receptor (TRbeta). Transgenic mouse models of RTH have brought new insights about the syndrome. Absence of TRbeta expression in TRbeta knockout mice led to partial resistance of the thyrotrophs, which was not present in TR alpha knockout mice. However, alpha and beta knockout animals have complete resistance to TH administration and very high serum TSH and thyroid hormones concentrations. Human TRbeta mutants expressed in mouse tissues recapitulated several manifestations of the syndrome. Pituitary or heart specific expression of the TRbeta mutants induced a decrease in thyroid hormone effects on these tissues and resistance to thyroid hormone administration. We also learned from transgenic models that resistance at hypothalamic TRH neurons, in addition to resistance at thyrotropes, is required to generate the increment in serum thyroid hormones. Knockout mice for the coactivator SRC-1 also showed thyrotroph resistance, suggesting that other proteins involved in thyroid hormones genomic actions may be the cause of RTH in humans. Therefore, transgenic models provided in vivo proof that mutants TRbeta exert their dominant negative effect upon all normal isoforms of TR leading to RTH. Further studies using genetic manipulation in mice are expected to bring new information that will help to understand the heterogeneity of clinical presentation in patients with RTH.

Thyroid; TSH; Thyroid hormones; Hormonal resistance; Hormone receptors


revisão

Resistência a Hormônios Tireóideos -Contribuição da Transgênese para a Compreensão da Síndrome

Carmen C. Pazos-Moura

Egberto Gaspar de Moura

Laboratório de Fisiologia Endócrina,

Instituto de Biofísica Carlos Chagas

Filho, Universidade Federal do Rio de

Janeiro (UFRJ) (CCPM) e

Laboratório de Fisiologia Endócrina,

Instituto de Biologia Roberto

Alcantara Gomes, Universidade do

Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

(EGM), Rio de Janeiro, RJ.

Recebido em 11/09/1999

Revisado em 18/02/2000

Aceito em 10/04/2000

RESUMO

A resistência aos hormônios tireóideos (RTH) é uma síndrome de herança dominante, decorrente da hipossensibilidade dos tecidos aos hormônios tireóideos e caracterizada pela elevação dos hormônios tireóideos séricos com TSH normal ou aumentado e bócio. Tem sido atribuída a mutações na isoforma b do receptor para hormônios tireóideos (TRb). Modelos de transgênese têm contribuído para a compreensão da RTH. A ausência da expressão do TRb em camundongos TRb knockout tornou os tireotrofos parcialmente resistentes aos hormônios tireóideos, o que não ocorreu nos animais knockout para a isoforma a do TR. Entretanto, camundongos que não expressam as duas formas de TR apresentam completa resistência aos hormônios tireóideos, sendo os hormônios tireóideos e TSH séricos elevadíssimos. Mutantes de TRb humano expressos em tecidos de Camundongo reproduziram várias manifestações da RTH. A expressão de TRb mutado apenas no coração ou apenas na hipófise induziu diminuição dos efeitos de hormônios tireóideos e resistência à administração dos mesmos nestes tecidos. Modelos transgênicos evidenciaram que, além da resistência hipofisária, a resistência nos neurônios hipotalâmicos, de TRH, é imprescindível para que haja aumento de produção de hormônios tireóideos. Camundongos knockout para o coativador SRC-1 também se mostraram parcialmente resistentes aos hormônios tireóideos, sugerindo que outras proteínas envolvidas no mecanismo de ação dos hormônios tireóideos possam causar RTH. Assim, os modelos transgênicos forneceram provas que o mutante TRb, in vivo, interfere com a ação das diferentes isoformas do TR selvagem e causa RHT. Modelos transgênicos são uma valiosa ferramenta para a compreensão da heterogeneidade de apresentação clínica da RTH. (Arq Bras Endocrinol Metab 2000;44/4: 300-305)

Unitermos: Tireóide; TSH; Hormônios tireóideos; Resistência hormonal; Receptores hormonais

ABSTRACT

Resistance to thyroid hormone (RTH) is a dominantly inherited syndrome due to hyposensitivity of tissues to thyroid hormones, characterized by elevated serum thyroid hormones and goiter with normal or increased serum TSH. RTH has been associated with mutations in the b isoform of the TH receptor (TRb). Transgenic mouse models of RTH have brought new insights about the syndrome. Absence of TRb expression in TRb knockout mice led to partial resistance of the thyrotrophs, which was not present in TR a knockout mice. However, a and b knockout animals have complete resistance to TH administration and very high serum TSH and thyroid hormones concentrations. Human TRb mutants expressed in mouse tissues recapitulated several manifestations of the syndrome. Pituitary or heart specific expression of the TRb mutants induced a decrease in thyroid hormone effects on these tissues and resistance to thyroid hormone administration. We also learned from transgenic models that resistance at hypothalamic TRH neurons, in addition to resistance at thyrotropes, is required to generate the increment in serum thyroid hormones. Knockout mice for the coactivator SRC-1 also showed thyrotroph resistance, suggesting that other proteins involved in thyroid hormones genomic actions may be the cause of RTH in humans. Therefore, transgenic models provided in vivo proof that mutants TRb exert their dominant negative effect upon all normal isoforms of TR leading to RTH. Further studies using genetic manipulation in mice are expected to bring new information that will help to understand the heterogeneity of clinical presentation in patients with RTH. (Arq Bras Endocrinol Metab 2000;44/4: 300-305)

Keywords: Thyroid; TSH; Thyroid hormones; Hormonal resistance; Hormone receptors

A RESISTÊNCIA AOS HORMÔNIOS TIREÓIDEOS (RTH) uma síndrome decorrente da menor sensibilidade dos tecidos à atuação desses hormônios. O diagnóstico geralmente baseia-se na presença de concentrações séricas elevadas de hormônios tireóideos, com tireotrofina (TSH) sérica normal ou aumentada, decorrente da resistência hipofisária à ação dos hormônios tireóideos (1). O grau de insensibilidade dos tireotrofos à ação inibitória dos hormônios tireóideos sobre o TSH é variável e, portanto, também é variável a magnitude do aumento do TSH sérico e, em conseqüência, dos hormônios tireóideos circulantes.

A RTH pode se apresentar, fundamentalmente, de duas formas: generalizada ou hipofisária. Na primeira, todos os tecidos mostram-se resistentes. No entanto, a magnitude de resistência, num mesmo indivíduo, varia entre os tecidos. Portanto, em resposta às elevadas concentrações de hormônios tireóideos circulantes, esses tecidos poderão estar eu-, hipo- ou hipertireóideos, de acordo com o grau de sensibilidade que ainda têm aos hormônios tireóideos. Já na resistência hipofisária, os demais tecidos não são resistentes aos hormônios tireóideos e o indivíduo tem sinais e sintomas de hipertireoidismo. Assim sendo, a apresentação clínica da RHT é bastante heterogênea.

A doença é de natureza genética, de incidência familiar, apresentando herança autossômica, dominante. É uma doença rara e, até o momento, pouco mais de 400 casos foram descritos (2). Entretanto, suspeita-se que sua incidência seja subestimada, sendo os pacientes freqüentemente diagnosticados como hipertireóideos, portadores da doença de Basedow-Graves. Nos últimos 10 anos tem triplicado o número de casos diagnosticados, devido à maior divulgação desta condição patológica (2).

A sua etiopatogenia está relacionada, na maioria dos casos, a mutações pontuais no gene da isoforma b do receptor para hormônio tireóideo (TRb). A grande maioria dos TRb mutados descritos até o momento, tem afinidade diminuída ou nenhuma afinidade pelo T3, e exerce efeito dominante negativo sobre o receptor selvagem, inibindo a função deste (1). Em sua maioria os pacientes são heterozigotos para o mutante e os homozigotos apresentam quadro de resistência mais exuberante. No entanto, pacientes com deleção de somente um dos alelos para o TRb são normais e a síndrome se manifesta apenas nos homozigotos para esta deleção. Portanto, a doença se origina, basicamente, não da ausência de um alelo do TRb normal, mas sim da presença do mutante que inibe a função do receptor normal (tabela 1).

As bases moleculares para o efeito dominante negativo do TRb mutado foram investigadas in vitro, em modelos de transfecção transitória em linhagem celulares e, mais recentemente, em modelos in vivo, usando camundongos transgênicos.

RECEPTORES PARA HORMÔNIOS TIREÓIDEOS

Os hormônios tireóideos atuam nas células, predominantemente através de receptores nucleares (TRs) induzindo ou reprimindo a expressão de genes específicos (3). Os TRs são proteínas firmemente aderidas à cromatina que, ao se ligarem a seqüências específicas na região promotora de genes específicos (TREs), modificam a atividade transcricional do gene. Os genes podem ser regulados positiva ou negativamente pelos hormônios tireóideos e, nestes casos, os TREs são denominados positivos ou negativos, respectivamente. No entanto, recentemente, vários pesquisadores demonstraram que os TRs têm atividade independente de ligante, ou seja, modulam a atividade transcricional quando não estão ligados aos hormônios tireóideos. Esta modulação se dá de forma contrária àquela que ocorre na presença dos hormônios tireóideos, ou seja, os TRs não ligados aos hormônios tireóideos, atuando em TREs positivos, inibem a transcrição do gene e nos TREs negativos, ativam a transcrição. Esta atividade independente de ligante dos TRs ainda não tem sua relevância fisiológica estabelecida.

Os TRs ligam-se ao DNA na forma de homodímeros ou heterodímeros e nos TRE negativos também se ligam na forma monomérica (4). Os heterodímeros mais comuns são formados com o receptor do ácido retinóico, RXR. No entanto, múltiplos estudos têm demonstrado que a atuação dos TRs na regulação transcricional depende de sua associação com outras proteínas nucleares, coativadoras e correpressoras (3). A importância destas proteínas em sistemas biológicos complexos ainda não está definida; no entanto, existem evidências que sugerem terem as mesmas um papel relevante na mediação da ação dos hormônios tireóideos.

CONTRIBUIÇÕES DA TRANSGÊNESE PARA COMPREENSÃO DA RHT

Os modelos animais criados através da manipulação genética têm se tornado uma ferramenta poderosa para ajudar a esclarecer a etiopatogenia e fisiopatologia de doenças genéticas humanas. O estudo das mutações do TRb in vitro gerou informações relevantes para a compreensão do mecanismo de ação nuclear dos hormônios tireóideos. No entanto, ainda faltava a confirmação destes mecanismos em sistemas complexos in vivo. Recentemente, modelos de transgênicos ampliaram nosso conhecimento da etiopatogenia e fisiopatologia da RTH.

Os receptores para os hormônios tireóideos são codificados por dois genes, a e b, localizados nos cromossomas humanos 17 e 3, respectivamente (5). O gene a dá origem a duas isoformas do receptor, a1 e a2, e o gene b, às isoformas b1 e b2. A função específica destas isoformas de TR in vivo tem sido estudada e foi melhor compreendida a partir de modelos transgênicos, nos quais a manipulação genética permitiu a geração de camundongos que não expressam o gene a e/ou b.

Os camundongos knockout para a isoforma b dos TRs apresentam, como fenótipo principal, surdez por anomalias severas no desenvolvimento da cóclea e resistência hipofisária à ação dos hormônios tireóideos, com TSH e hormônios tireóideos séricos aumentados em 3-4 vezes, além de bócio (6). Este achado revela que o TRb é essencial para o efeito dos hormônios tireóideos na inibição do TSH, uma vez que sua falta não pode ser totalmente compensada pela presença da isoforma a. O grupo do Dr. Wondisford (7) revelou, entretanto, que a resistência hipofisária se dá nos animais que não expressam a isoforma b2, tendo expressão normal do b1 (TRb2knockout), confirmando in vivo o postulado defendido por eles, a partir de dados in vitro, de que a isoforma b2 seria a principal responsável pela mediação da supressão da transcrição gênica do TSH exercida pelos hormônios tireóideos. Além disto, os animais TRb2knockout não apresentavam alterações no aparelho auditivo, revelando que existem funções diferenciais de b1 e b2 no sistema auditivo e nos tireotrofos.

O quadro de resistência hipofisária não ocorre nos animais TRa knockout (8), o que indica que a isoforma b é capaz de compensar a falta da a. Esta talvez seja a explicação para a inexistência, até o momento, de diagnóstico de resistência por mutações nos receptores a, já que o diagnóstico não pode ser feito pelos sinais laboratoriais clássicos da síndrome, quais sejam: aumento de hormônios tireóideos séricos, com TSH normal ou aumentado. Entretanto, nos animais transgênicos que não expressam as isoformas a e b de TR (9,10), os tireotrofos se tornam totalmente resistentes à ação dos hormônios tireóideos e as concentrações séricas de TSH e de hormônios tireóideos são altíssimas. Este achado indica que tanto as isoformas b quanto as formas a do TR intermediam o efeito dos hormônios tireóideos na supressão do TSH.

A comprovação da relação causal entre presença do receptor mutado e indução de resistência aos hormônios tireóideos em modelos in vivo foi obtida recentemente por alguns grupos. O receptor TRb mutado natural, G345R, identificado em uma família com RTH, foi transferido para tecido hepático de camundongos adultos e induziu diminuição dos efeitos dos hormônios tireóideos neste tecido (11). A seguir, um outro grupo gerou um camundongo em cujo genoma foi introduzido um mutante natural humano do TRb1 (mutante PV), que se expressou em todos os tecidos (12). Este modelo reproduziu aspectos da síndrome de resistência aos hormônios tireóideos, tais como hiperatividade, baixo peso corporal e moderada elevação dos hormônios tireóideos séricos.

Os estudos evoluíram no sentido de melhor compreender os diversos aspectos tecido-específicos envolvidos na resistência à ação dos hormônios tireóideos. Acredita-se que a resistência hipofisária seja a causa da elevação do hormônios tireóideos séricos, decorrente da hipersecreção de TSH ou do aumento de sua bioatividade (2). Recentemente, Dale e cols. (14), geraram um animal transgênico que expressava o mutante natural D337T, somente no tecido hipofisário. Este mutante está associado a forte efeito dominante negativo; um paciente homozigoto para esta mutação apresentou quadro grave de resistência. Esses animais transgênicos apresentavam resistência parcial à administração de T4, com redução do efeito supressivo sobre o RNA mensageiro para TSH e sobre o TSH sérico. Entretanto, inesperadamente, apesar do aumento de 2 a 3 vezes do TSH sérico, o T4 sérico não se alterou ou apresentou apenas ligeira elevação, dependendo da linhagem de camundongos estudadas. Este fato foi intrigante, pois a síndrome clínica sempre cursa com T4 elevado. Postulou-se, então, que o TSH, apesar de aumentado, teria menor atividade biológica. Sabe-se que o TRH é essencial para a correta glicosilação das subunidades do TSH e, portanto, para a sua atividade biológica máxima. Além disto, camundongos knockout para TRH apresentam diminuição de hormônios tireóideos séricos, apesar de aumento em torno de 2 vezes no TSH sérico (15). Portanto, postulou-se que, nos animais transgênicos expressando o receptor mutante somente na hipófise, haveria diminuição de TRH, uma vez que não haveria resistência no hipotálamo e que esta seria a causa da não elevação dos hormônios tireóideos séricos. Esta hipótese foi corroborada pela comprovação do menor conteúdo hipotalâmico de TRH nestes animais e pelo desenvolvimento de hipertiroxinemia após administração crônica de TRH. Assim, com este modelo transgênico, o grupo introduziu a idéia de que a resistência hipotalâmica, além da hipofisária, é essencial para gerar o aumento do TSH sérico biologicamente ativo, levando, então, ao quadro de hipersecreção de hormônios tireóideos. Para o futuro, será importante a geração de camundongos que expressem o receptor b mutante a nível hipotalâmico e hipofisário, procurando reproduzir o que, provavelmente, ocorre na doença humana.

Dados clínicos e de experimentos in vitro sugerem que o TRb mutante exerce efeito dominante negativo também sobre a isoforma a do TR. Através de cruzamento das linhagens de transgênicos com o mutante TRb D337T hipofisário com os transgênicos b knockout, produziu-se um grupo de camundongos híbridos, com mutante TRb hipofisário e ausência de receptores TRb em todos os tecidos. Portanto, na hipófise destes animais, havia apenas o b mutante e a isoforma a normal. Nesta situação, o TSH e os hormônios tireóideos séricos encontravam-se extremamente elevados (9-10 vezes acima do controle) e o TSH não respondeu à administração de hormônios tireóideos, demonstrando total ausência da retroalimentação negativa normalmente exercida por esses hormônios (16). Considerando, como descrito anteriormente, que a elevação do TSH sérico nos animais TRb knockout é bem menor (2-3 vezes), estes achados demonstram que a isoforma a normal contribui para o efeito dos hormônios tireóideos na supressão do TSH e compensa em grande parte a falta da isoforma b. Além disto, comprova que o receptor b mutante é capaz de, in vivo, exercer efeito dominante negativo sob a isoforma a. Na tabela 2, resume-se os achados do comportamento do eixo hipófise-tireóide nos modelos de transgênicos acima descritos.

Assim, postulou-se que a gravidade da síndrome de resistência associada aos mutantes de TRb é diretamente dependente da intensidade do efeito dominante negativo mutante sobre todas as isoformas do TR no tecido hipofisário, além de ser essencial a existência da resistência hipotalâmica, nos neurônios de TRH.

Como anteriormente comentado, os tecidos têm graus distintos de sensibilidade aos hormônios tireóideos. Assim, alguns tecidos, como o osso e o fígado, geralmente apresentam sinais de hipotireoidismo apesar do aumento das concentrações séricas dos hormônios tireóideos, enquanto a taquicardia presente em grande parte dos pacientes, sugere que o tecido cardíaco não apresente grave resistência. Além disso, existem diferenças individuais entre familiares portadores da mesma mutação. O mecanismo determinante destas diferenças não é conhecido. Recentemente, demonstramos que camundongos transgênicos com expressão do mutante D337T exclusivamente nos miócitos cardíacos apresentaram sinais de um coração "hipotireóideo" (17). A expressão de genes cardíacos regulados por hormônios tireóideos apresentou padrão típico de hipotireoidismo, o eletrocardiograma evidenciou diminuição da velocidade de propagação da onda elétrica cardíaca, com aumento de todos os intervalos no ECG. Já do ponto de vista da contratilidade, os corações isolados apresentavam clara redução de contratilidade, com disfunções sistólica e diastólica. No entanto, in vivo, os parâmetros funcionais cardíacos ainda se mantinham comparáveis ao controle, apesar de tendência a anormalidades, sugerindo que mecanismos in vivo compensam o efeito deletério do mutante sobre a contratilidade intrínseca do músculo cardíaco. Portanto, na síndrome de RTH humana, uma possível explicação para que o tecido seja pouco resistente à ação dos hormônios tireóideos esteja relacionada a potentes mecanismos de compensação da função cardíaca in vivo.

RTH NÃO ASSOCIADA A MUTAÇÕES NO TR

Existem pacientes com RTH nos quais a mutação de TR não pode ser evidenciada, como em um caso relatado por Weiss e cols., 1996 (18). Neste paciente, os autores obtiveram evidências sugestivas de que alterações de outras proteínas nucleares poderiam ser o agente causador da síndrome. Animais knockout para a proteína SRC-1 (steroid coactivator-1),um coativador para os receptores da superfamília dos esteróides, apresentam quadros de resistência à ação dos hormônios tireóideos, como evidenciado pelo TSH sérico elevado (2 a 3 vezes), apesar de aumento de 50% das concentrações séricas de hormônios tireóideos (19). Este resultado experimental concorda com a hipótese de que um defeito no gene do SRC-1 ou de outro cofator pode causar a síndrome de resistência aos hormônios tireóideos em seres humanos.

Recentemente, foi descrito uma mutação de leucina para valina no codon 454 do TRb em um paciente com RTH (20). Este mutante mostrou reduzida atividade transcricional in vitro, apesar de manter a afinidade por T3 e ser capaz de formar homo- e heterodímeros nos TREs; no entanto, o TR mutante apresentava reduzida interação com os coativadores SRC-1 e RIP 140. Assim, é possível que a interação com estas proteínas nucleares seja essencial para a regulação negativa do TSH, dependente de T3. Portanto, mutações em proteínas coativadoras e correpressoras de TR podem, potencialmente, ser causas da RTH humana.

CONCLUSÃO

Os modelos transgênicos, comprovaram in vivo a relação causal entre mutações do TRb e resistência tecidual aos hormônios tireóideos, evidenciaram a extrema importância da resistência hipotalâmica para o fenótipo da síndrome e mostraram, ainda, que o mutante b tem efeito dominante negativo sobre as isoformas a e b do TR. No entanto, modelos transgênicos também sugerem que alterações genéticas em coativadores e correpressores associados aos receptores nucleares de hormônios tireóideos, potencialmente, podem ser causadores da síndrome humana. Os modelos de animais transgênicos têm trazido novas perspectivas ao entendimento da síndrome, mas certamente ainda temos muito o que explorar, principalmente no que concerne a participação de coativadores e correpressores, como determinantes da RHT e da heterogeneidade de sua apresentação clínica. Cabe ainda ressaltar que estes modelos animais da RHT serão instrumentos essenciais para o desenvolvimento de novas abordagens terapêuticas da RHT.

Endereço para correspondência:

Carmen Cabanelas Pazos de Moura

Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, UFRJ

CCS, Bloco G - Ilha do Fundão

21.949-900 Rio de Janeiro, RJ

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Out 2005
  • Data do Fascículo
    Ago 2000

Histórico

  • Aceito
    10 Abr 2000
  • Recebido
    11 Set 1999
  • Revisado
    18 Fev 2000
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