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Vasculite leucocitoclástica: uma rara manifestação associada ao metimazol

Leukocytoclastic vasculitis associated with methimazole

Resumos

As tionamidas são drogas freqüentemente utilizadas no tratamento do hipertireoidismo da moléstia de Basedow Graves (MBG), tanto como terapia primária como para o preparo do paciente para cirurgia ou iodo radioativo. Reações adversas com o uso destas drogas ocorrem em cerca de 3 a 12 % dos pacientes, variando desde reações leves e freqüentes até quadros incomuns, graves e potencialmente fatais. Descrevemos o caso de uma paciente, com diagnóstico de hipertireoidismo por MBG, que após cerca de um mês de uso de metimazol, iniciou com poliartralgia acompanhada de lesões úlcero-necrotizantes em terço distal de membros inferiores que à avaliação laboratorial e histológica mostrou-se compatível com vasculite cutânea leucocitoclástica, padrão este encontrado nas vasculites por reação de hipersensibilidade. Após retirada da droga antitireoidiana e tratamento com prednisona a paciente evoluiu com regressão das lesões cutâneas sendo, então, encaminhada para terapia com iodo radioativo.

Vasculite cutânea; Metimazol; Reações adversas; Drogas antitireoidianas; Hipertireoidismo


Thionamides are drugs frequently used for the treatment of hyperthyroidism in Basedow-Graves' disease (BGD), both as primary therapy and for the preparation of patients undergoing surgery or radioiodine therapy. Adverse reactions related to these drugs affect 3-12% of patients, varying from minor and transient reactions, more frequently, to uncommon, severe and potentially fatal ones. We describe a patient diagnosed with hyperthyroidism due to BGD, who developed polyarthralgia followed by ulcer-necrotizing cutaneous lesions in the distal extremities of the legs, after use of methimazole for about a month, with laboratory and histologic evaluation compatible with cutaneous leukocytoclastic vasculitis, a pattern found in hypersensitivity vasculitis. After withdrawal of the anti-thyroid drug and following prednisone treatment, patient’s skin lesions improved, with radioiodine therapy being performed thereafter.

Cutaneous vasculitis; Methimazole; Adverse reactions; Anti-thyroid drugs; Hyperthyroidism


APRESENTAÇÃ0 DE CASOS

Vasculite leucocitoclástica: uma rara manifestação associada ao metimazol

Leukocytoclastic vasculitis associated with methimazole

Ricardo Rodrigues; Paulo T. Jorge

Serviço de Endocrinologia e Metabologia do Hospital de Clínicas, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Ricardo Rodrigues Rua das Rosas, 503, Cidade Jardim 38412-134 Uberlândia, MG

RESUMO

As tionamidas são drogas freqüentemente utilizadas no tratamento do hipertireoidismo da moléstia de Basedow Graves (MBG), tanto como terapia primária como para o preparo do paciente para cirurgia ou iodo radioativo. Reações adversas com o uso destas drogas ocorrem em cerca de 3 a 12 % dos pacientes, variando desde reações leves e freqüentes até quadros incomuns, graves e potencialmente fatais. Descrevemos o caso de uma paciente, com diagnóstico de hipertireoidismo por MBG, que após cerca de um mês de uso de metimazol, iniciou com poliartralgia acompanhada de lesões úlcero-necrotizantes em terço distal de membros inferiores que à avaliação laboratorial e histológica mostrou-se compatível com vasculite cutânea leucocitoclástica, padrão este encontrado nas vasculites por reação de hipersensibilidade. Após retirada da droga antitireoidiana e tratamento com prednisona a paciente evoluiu com regressão das lesões cutâneas sendo, então, encaminhada para terapia com iodo radioativo. (Arq Bras Endocrinol Metab 2002;46/6:716-719)

Descritores: Vasculite cutânea; Metimazol; Reações adversas; Drogas antitireoidianas; Hipertireoidismo

ABSTRACT

Thionamides are drugs frequently used for the treatment of hyperthyroidism in Basedow-Graves' disease (BGD), both as primary therapy and for the preparation of patients undergoing surgery or radioiodine therapy. Adverse reactions related to these drugs affect 3-12% of patients, varying from minor and transient reactions, more frequently, to uncommon, severe and potentially fatal ones. We describe a patient diagnosed with hyperthyroidism due to BGD, who developed polyarthralgia followed by ulcer-necrotizing cutaneous lesions in the distal extremities of the legs, after use of methimazole for about a month, with laboratory and histologic evaluation compatible with cutaneous leukocytoclastic vasculitis, a pattern found in hypersensitivity vasculitis. After withdrawal of the anti-thyroid drug and following prednisone treatment, patient’s skin lesions improved, with radioiodine therapy being performed thereafter. (Arq Bras Endocrinol Metab 2002;46/6:716-719)

Keywords: Cutaneous vasculitis; Methimazole; Adverse reactions; Anti-thyroid drugs; Hyperthyroidism

AS TIONOMIDAS (PROPILTIOURACIL, METIMAZOL e carbimazol) são drogas freqüentemente utilizadas no tratamento do hipertireoidismo da moléstia de Basedow Graves (MBG) como terapia primária ou no preparo do paciente para cirurgia ou iodo radioativo. Reações adversas ocorrem em cerca de 3 a 12% dos pacientes em uso destas drogas (1,2,6), variando desde reações leves e frequentes (erupções cutâneas, prurido, intolerância gástrica, leucopenia e anemia) até quadros incomuns, graves e potencialmente fatais (agranulocitose, trombocitopenia, hepatite colestática, necrose hepatocelular, vasculites e síndrome lupus-like). Entre os efeitos colaterais mais graves, a agranulocitose é o mais freqüente, com incidência entre 0,1 e 1,2% (1,2,6,8), e pode ocorrer independente do tipo de tionamida utilizada, enquanto as outras reações adversas graves, como hepatites e vasculites tem sido relacionadas mais freqüentemente ao uso do propiltiouracil do que com o metimazol e o carbimazol. A vasculite, em específico, é considerada uma complicação muito rara com apenas um caso relacionado ao uso do metimazol descrito na literatura médica (4). geralmente limita-se ao acometimento cutâneo, apresentando-se como lesões nodulares ou em placas em região acral, muitas vezes associadas a lesões bolhosas hemorrágicas que evoluem com necrose central. Pode eventualmente acometer diversos órgãos como pulmões e rins e ser potencialmente fatal. Complicações graves devem ser diagnosticadas precocemente, e exigem a descontinuidade do uso da droga para que ocorra uma evolução favorável do quadro, sendo, então, necessária a escolha de uma terapia definitiva (cirurgia ou iodo radioativo).

RELATO DO CASO

Paciente de 32 anos, do sexo feminino, com diagnóstico de hipertireoidismo por MBG, apresentando na época, quadro clínico com dois meses de evolução de taquicardia, emagrecimento, tremores de extremidades, bócio e exoftalmia. A função tireoidiana, ao diagnóstico, mostrava os seguintes valores : TSH= 0,005 mUI/ml (VR= 0,3-4,2); T4 total >24 mg/dl (VR= 4,5-13); T3 >600ng/dl (VR= 82-200); anticorpos anti-tireoglobulina = 20,7 UI/ml (VR= <40) e anti-tireoperoxidase >1.000 UI/ml (VR= <35) e a cintilografia de tireóide com iodo radioativo mostrando bócio difuso hipercaptante (captação de 24h com 131I= 84%). A paciente iniciou o uso de Metimazol, 40mg ao dia, e após cerca de um mês apresentou artralgia em joelhos e tornozelos, acompanhadas de lesões úlcero-necrotizantes em terço distal de membros inferiores (figura 1). A biópsia da lesão evidenciou focos de hemorragia nas camadas córnea e espinhosa da epiderme e em todos os níveis da derme; exsudato composto por grande quantidade de neutrófilos, alguns linfócitos e histiócitos na parede vascular; focos de necrose na epiderme, derme superficial e intermediária com ulceração, achados compatíveis com vasculite leucocitoclástica, padrão este encontrado nas vasculites por reação de hipersensibilidade. A avaliação laboratorial (tabela 1) afastou outras causas de síndromes vasculíticas específicas (poliarterite nodosa, vasculites associadas a doenças infecciosas, doenças do tecido conjuntivo). Após retirada da droga antitireoidiana e instituição do tratamento com prednisona (30mg/dia), a paciente evoluiu com melhora progressiva do quadro álgico e regressão das lesões cutâneas, sendo então encaminhada para terapia com iodo radioativo na dose de 10mCi. Após 8 semanas apresentou quando laboratorial de hipotireoidismo (TSH= 11,0 mUI/ml [VR= 0,3-4,2] e T4 livre= 0,64ng/dl [VR= 0,8-1,9]) tendo sido iniciado tratamento com 50mg/dia de levotiroxina sódica. Neste momento, encontrava-se com as lesões dermatológicas cicatrizadas, sem uso de corticóide.


DISCUSSÃO

A vasculite, como reação adversa às drogas antitireoidianas, é muito rara, porém potencialmente grave. Na maioria dos casos descritos, tal reação foi relacionada ao uso do propiltiouracil. Em extensa revisão da literatura médica, encontramos apenas um caso relacionado ao uso do metimazol, no qual o paciente desenvolveu uma síndrome lupus-like acompanhada do quadro de vasculite cutânea (4). No caso que relatamos, a paciente era portadora de hipertireoidismo decorrente de MBG e cerca de um mês após início do tratamento com metimazol desenvolveu poliartralgia e lesões cutâneas sugestivas de vasculite, em extremidade de membros inferiores. A apresentação mais comum de vasculites relacionadas ao uso de tionamidas é o desenvolvimento de lesões cutâneas, caracterizadas como púrpuras, acometendo principalmente região distal de membros, face, mamas, lobos e hélices das orelhas (4,5). Formas graves com padrão de vasculite disseminada, acometendo rins e pulmões também são descritas (5). A análise histológica das lesões cutâneas geralmente mostra um padrão de vasculite por hipersensibilidade do tipo leucocitoclástico, envolvendo vasos superficiais e profundos da derme, freqüentemente encontrando-se trombos de fibrina ocluíndo os vasos e necrose franca associada. Embora haja um predomínio de infiltrado neutrofílico na fase aguda, células mononucleares ou infiltrados eosinofílicos são freqüentemente vistos nos estágios subagudos ou crônicos. No caso relatado, as biópsias das lesões demonstraram focos de necrose da epiderme, derme superficial e intermediária com ulceração; exsudato composto por grande quantidade de neutrófilos, alguns linfócitos e histiócitos; caracterizando o achado de vasculite leucocitoclástica típico das reações de hipersensibilidade. O mecanismo etiopatogênico através do qual ocorre a lesão vascular não está claramente estabelecido, porém, um mecanismo imunológico tem sido fortemente implicado (4,5). A presença de anticorpos antineutrófilos citoplasmáticos ou pericitoplasmáticos descritos em alguns casos de vasculite relacionadas ao uso de propiltiouracil (7) e no único caso, até então, relacionado ao metimazol, reforçam à hipótese das alterações imunológicas em sua etiologia (4,5). A resolução do quadro após suspensão do uso da droga e breve tratamento com corticóide, depois de cuidadosa investigação clínica e laboratorial, excluindo-se outras etiologias, somados ao padrão histológico encontrado, fortalecem o diagnóstico de vasculite associada ao uso do metimazol. Mesmo sendo pouco freqüente o desenvolvimento de reações adversas às tionamidas, deve-se informar ao paciente os possíveis efeitos colaterais e orientá-los sobre a conduta diante do aparecimento destes. Em decorrência da potencial gravidade destas reações é de fundamental importância o diagnóstico precoce e a escolha de uma outra alternativa terapêutica como 131I ou tratamento cirúrgico, para uma evolução favorável do quadro.

Recebido em 15/03/02

Revisado em 12/07/02

Aceito em 26/09/02

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  • Endereço para correspondência
    Ricardo Rodrigues
    Rua das Rosas, 503, Cidade Jardim
    38412-134 Uberlândia, MG
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Out 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2002

    Histórico

    • Aceito
      26 Set 2002
    • Revisado
      12 Jul 2002
    • Recebido
      15 Mar 2002
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