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Resistência insulínica imunológica: apresentação de caso

Immunologic insulin resistance: case report

Resumos

Resistência insulínica imunológica é uma entidade reconhecida na prática clínica há muitos anos. Sua patogênese está relacionada ao aparecimento de anticorpos anti-insulina, e o tratamento baseia-se em imunossupressão. Apresentamos aqui o caso de uma paciente de 33 anos, com diagnóstico de diabetes desde a infância, que referia uso de hipoglicemiantes orais durante a adolescência. Durante o acompanhamento em nosso serviço, a dose de insulina foi progressivamente reduzida até ser substituída por hipoglicemiantes orais. Permaneceu 11 meses com esquema de glibenclamida, metformina e acarbose até ser internada em coma hiperosmolar não-cetótico. Após internação prolongada, recebeu alta usando insulina NPH, sendo necessário o aumento da dose nos meses subseqüentes. Quando atingiu a dose de 2,7U/Kg/dia, foi investigada e excluída a possibilidade de diabetes secundário, sendo diagnosticada resistência insulínica imunológica. Foram tentados diversos esquemas imunossupressores sem sucesso. A paciente está atualmente em uso de bomba de infusão subcutânea de insulina Lispro, micofenolato mofetil e prednisona com melhora do controle glicêmico.

Anticorpo anti-insulina; Resistência insulínica; Imunossupressão; Imunologia


Immunologic insulin resistance is an entity recognized in the clinical practice for many years. Its pathogenesis is related to the presence of anti-insulin antibodies and treatment is based upon immunossuppression. We hereby present a case of a 33-year-old patient with the diagnosis of diabetes since the childhood that reported using oral hypoglicemic drugs during adolescence. During follow up, the insulin dose was gradually reduced until she was switched to oral hypoglicemic agents. She remained for 11 months in a regimen of glyburide, metformin and acarbose when she was admitted in a hyperosmolar non-ketotic coma. At discharge she was using insulin NPH and in the following months the dose needed to be gradually increased, as she remained hyperglycemic, until we reached 2.7U/Kg/day. Secondary diabetes was investigated and discarded, and she was diagnosed with immunologic insulin resistance. Several immunossuppressive regimens were tried with disappointing results. She is actually using a continuous subcutaneous infusion pump with insulin lispro, micophenolate mophetil and prednisone with improving glycemic control.

Anti-insulin antibody; Insulin resistance; Immunossuppression; Immunology


APRESENTAÇÃO DE CASOS

Resistência insulínica imunológica - apresentação de caso

Immunologic insulin resistance - case report

Giselle F. Taboada; Fernanda H.S. Corrêa; Carlos R.M.A. Junior; Marília de B. Gomes

Disciplina de Diabetes e Metabologia, Departamento de Medicina Interna da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, RJ

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Giselle Fernandes Taboada Praia de Botafogo 528, bl. B, ap. 1101 22250-040 Rio de Janeiro, RJ e.mail: giselletaboada@mls.com.br

RESUMO

Resistência insulínica imunológica é uma entidade reconhecida na prática clínica há muitos anos. Sua patogênese está relacionada ao aparecimento de anticorpos anti-insulina, e o tratamento baseia-se em imunossupressão. Apresentamos aqui o caso de uma paciente de 33 anos, com diagnóstico de diabetes desde a infância, que referia uso de hipoglicemiantes orais durante a adolescência. Durante o acompanhamento em nosso serviço, a dose de insulina foi progressivamente reduzida até ser substituída por hipoglicemiantes orais. Permaneceu 11 meses com esquema de glibenclamida, metformina e acarbose até ser internada em coma hiperosmolar não-cetótico. Após internação prolongada, recebeu alta usando insulina NPH, sendo necessário o aumento da dose nos meses subseqüentes. Quando atingiu a dose de 2,7U/Kg/dia, foi investigada e excluída a possibilidade de diabetes secundário, sendo diagnosticada resistência insulínica imunológica. Foram tentados diversos esquemas imunossupressores sem sucesso. A paciente está atualmente em uso de bomba de infusão subcutânea de insulina Lispro, micofenolato mofetil e prednisona com melhora do controle glicêmico.

Descritores: Anticorpo anti-insulina; Resistência insulínica; Imunossupressão; Imunologia

ABSTRACT

Immunologic insulin resistance is an entity recognized in the clinical practice for many years. Its pathogenesis is related to the presence of anti-insulin antibodies and treatment is based upon immunossuppression. We hereby present a case of a 33-year-old patient with the diagnosis of diabetes since the childhood that reported using oral hypoglicemic drugs during adolescence. During follow up, the insulin dose was gradually reduced until she was switched to oral hypoglicemic agents. She remained for 11 months in a regimen of glyburide, metformin and acarbose when she was admitted in a hyperosmolar non-ketotic coma. At discharge she was using insulin NPH and in the following months the dose needed to be gradually increased, as she remained hyperglycemic, until we reached 2.7U/Kg/day. Secondary diabetes was investigated and discarded, and she was diagnosed with immunologic insulin resistance. Several immunossuppressive regimens were tried with disappointing results. She is actually using a continuous subcutaneous infusion pump with insulin lispro, micophenolate mophetil and prednisone with improving glycemic control.

Keywords: Anti-insulin antibody; Insulin resistance; Immunossuppression; Immunology

A RESISTÊNCIA INSULÍNICA imunológica é uma entidade presente na prática clínica há muitos anos (1,2). Entretanto, por tratar-se de uma doença rara, até o presente momento não existem normatizações para o seu diagnóstico e tratamento. Alguns autores a definem pela quantidade absoluta de insulina utilizada pelo paciente diariamente (>200U/dia) (3), mas parece mais razoável defini-la pela quantidade relativa ao peso do indivíduo (>2,5U/kg/dia, tomando-se um adulto de 75kg com dose >200U/dia).

Sua patogênese é relacionada à presença de anticorpos anti-insulina, diferente das síndromes de resistência dos tipos A, onde o defeito é do receptor de insulina e da cascata de sinalização pós-receptor; ou tipo B, que ocorre pelo desenvolvimento de imunoglobulinas policlonais (IgG) contra o receptor de insulina (4).

Os pacientes de maior risco para o desenvolvimento de resistência insulínica imunológica são aqueles que fizeram uso de insulina não-humana, ou que tiveram uma história de uso intermitente de insulina (5). A interrupção do tratamento e a reintrodução da insulina funcionam como "booster", efeito muito conhecido nas práticas de imunização por determinar uma resposta mais eficaz do sistema imune a determinado antígeno apresentado diversas vezes. Outros pacientes com risco aumentado para o desenvolvimento de anticorpos anti-insulina são aqueles com história alérgica importante ou com doenças auto-imunes, havendo pelo menos uma descrição de caso de uma paciente lúpica sem diabetes ou uso prévio de insulina, com clínica de repetidas hipoglicemias por desenvolvimento de anticorpos anti-insulina com ação estimulatória sobre o receptor (6).

Após exclusão da resistência à via subcutânea de administração de insulina pela aplicação intra-venosa (4) e/ou uso de insulina Lispro (7), o tratamento consiste em imunossupressão. Diferentes esquemas que resultaram em respostas clínica e laboratorial satisfatórias já foram propostos, sem haver um consenso na literatura sobre qual seria o ideal (3-6).

Temos acompanhado uma paciente, cuja história sugere fortemente o desenvolvimento de resistência insulínica imunológica, que, no entanto, não respondeu aos diversos esquemas imunossupressores já descritos. Além desta "comorbidade", esta paciente é ainda portadora de neuropatia dolorosa grave e amiotrofia diabética com importante perda de massa e força muscular. Segue o relato do caso.

RELATO DE CASO

Identificação: R.O.S., 33 anos, feminina, negra, auxiliar de enfermagem.

Iniciou o acompanhamento em nosso serviço em Dezembro 1994, na época com 26 anos. Referia ser diabética desde os 8 anos de idade, porém havia feito uso de hipoglicemiantes orais por pelo menos 4 anos durante a adolescência. Estava em uso de Insulina 0,77U/kg/dia (NPH 40U + regular 20U) e apresentava queixas compatíveis com neuropatia diabética, já estando medicada com amitriptilina.

Na história patológica pregressa, a paciente referia uma atopia importante com episódios de rash cutâneo ao manuseio de comprimidos de penicilina e sulfas. Apresentava história familiar de diabetes e hipertensão (mãe). Ao exame, era normotensa com fácies cushingóide e IMC= 28,3kg/m2.

Teve uma freqüência irregular ao ambulatório até 1998, quando a partir de Julho passou a controlar o diabetes com dieta, atividade física e hipoglicemiantes orais (Glibenclamida 15mg/dia, Metformina 2550mg/dia e Acarbose 150mg/dia), permanecendo com tal esquema terapêutico por 11 meses.

Em maio de 1999, foi internada em coma hiperosmolar não-cetótico, sendo instituída terapia com insulina e metformina. A partir desta época evoluiu com necessidades crescentes de insulina e sem controle glicêmico adequado (figura 1). Foi investigada para resistência insulínica secundária, excluindo-se doenças tireoidiana e supra-renal. Resultados dos principais exames realizados: cortisol livre urinário: 267µg/dl (VR: 21-85); cortisol sérico basal: 18,3µg/dl (VR: <20), teste de supressão com dexametasona 1mg: 1,3µg/dl (VR: <5); TSH: 0,572mUI/ml (0,4 - 6,5); T4livre: 1,3ng/dl (0,8 - 1,9); Ultrassonografia e tomografia computadorizada de abdomen normais; Tomografia Computadorizada de sela túrcica normal.


Em agosto do mesmo ano, estava em uso de 2,7U/kg/dia de insulina NPH, além de Lispro conforme glicemia capilar. Uma dosagem de anticorpos anti-insulina por radioimunoensaio (RIE) foi pouco compatível com resistência insulínica imunomediada (titulação 83nU/ml ­ VR: até 40), porém, como havia uma importante suspeição clínica, optou-se por terapia imunossupressora, conforme literatura consultada.

A estratégia adotada foi de pulsoterapia com metilprednisolona 1g/dia por 3 dias, seguida de manutenção com prednisona 0,5mg/kg/dia, associada a ciclofosfamida (CFF) mensal 10mg/kg em 3 doses. Duas semanas após a dose inicial de CFF, mantinha hiperglicemias significativas (glicemias capilares >250mg/dl) e dose de insulina semelhante à do início do tratamento. Optou-se então por realizar 5 sessões de plasmaférese em dias alternados para acelerar o clearance de auto-anticorpos, no entanto, a paciente evoluiu com sepse por cateter, (Stenotrophomonas maltophilia em hemoculturas) sendo interrompida a terapêutica em curso.

Nesta internação, foi instalada uma bomba de infusão subcutânea de Lispro numa tentativa de melhorar o controle glicêmico e a qualidade de vida da paciente, já que a mesma fazia aplicações de insulina a cada 3 horas, conforme glicemia capilar. A paciente apresentou uma reação de hipersensibilidade à tentativa de re-introdução da insulina NPH humana, sendo necessária a manutenção do análogo sintético.

A paciente permaneceu com altas doses de insulina, sem assegurar um controle glicêmico adequado (glicemias capilares entre 300-600).

Em Março de 2000, a paciente foi internada para nova tentativa de imunossupressão. Foram programados 5 ciclos de imunoglobulina IV 6g/dia por 5 dias seguidos de CFF por 3 dias. Os ciclos teriam intervalo de 2 dias entre eles. Durante o 4o ciclo, apresentou furunculose glútea que evoluiu para abscesso da região com extensão para coxa, sendo necessária a interrupção do esquema imunossupressor e abordagem cirúrgica do foco em complementação à antibioticoterapia venosa. Além disso, não se obteve resposta satisfatória a tal esquema imunossupressor. (Média da glicemia antes: 468mg/dl; Dose de insulina: 490U/dia; Média da glicemia pós: 450mg/dl; Dose de insulina: 450U/dia).

Em Agosto de 2000, foi realizada outra dosagem de anticorpos anti-insulina ­ 8074nU/ml por RIE, em laboratório diferente da dosagem inicial. A paciente foi mantida em bomba de infusão subcutânea de Lispro (360U/dia + bolus de 4/4h conforme glicemia capilar; em média 500U/dia), sem controle glicêmico adequado (glicemias capilares >300; hemoglobina glicosilada >14% - referência: 2,6 - 6,2) e mantendo importantes queixas neuropáticas com progressiva perda de massa e força musculares, além de dor intratável, apesar de acompanhamento no ambulatório de Clínica de Dor do Hospital Universitário Pedro Ernesto.

Ao exame oftalmológico, não apresenta alterações de fundo de olho, no entanto tem importante redução do campo visual (visão tubular) por mecanismo neuro-isquêmico, semelhante ao do glaucoma (isquemia dos vasa nervorum com comprometimento das fibras periféricas do nervo óptico).

Em Julho de 2001, foi iniciada terapia imunossupressora ambulatorial com Micofenolato Mofetil 1g vo de 12/12h com acompanhamento quinzenal de hemograma e provas de função hepática. Após o primeiro mês de uso sem intercorrências, foi associada prednisona 0,5mg/kg/dia ao esquema terapêutico. A resposta metabólica é avaliada pelo mapa de glicemias capilares e dose de insulina em uso (figuras 2 e 3). Após 1 ano de tratamento, observamos uma melhora importante do controle glicêmico e redução da dose de insulina.



DISCUSSÃO

Num primeiro momento, ressaltamos que se trata de uma paciente com diabetes mellitus não-classificado. Apesar do início da doença na infância, há relato de uso de hipoglicemiantes orais por longo período na adolescência, além da suspensão da insulina por quase um ano em nosso ambulatório.

Algumas características da história e evolução da paciente são condizentes com o diagnóstico proposto, como a importante história de alergias, inclusive com reação de hipersensibilidade à tentativa de re-introdução de insulina humana, além do uso intermitente de insulina, possivelmente insulina não-humana, desde o diagnóstico de diabetes na infância.

Foram excluídas, após investigação laboratorial específica, algumas causas de resistência insulínica secundária, como síndrome de Cushing.

As titulações iniciais de anticorpos anti-insulina foram incompatíveis com o grau de insulino-resistência apresentado. Uma dosagem posterior, realizada pelo mesmo método de RIE, em laboratório diferente, foi mais fidedigna. Ainda assim, tal titulação não parece ser a única responsável pela magnitude da resistência insulínica.

Os diversos esquemas imunossupressores tentados, assim como a plasmaférese, foram baseados em relatos de casos bem-sucedidos na literatura (3-6,8). A plasmaférese resultou em intercorrência infecciosa grave, tendo que ser interrompida. O esquema atualmente em vigência tem sido feito com acompanhamento rigoroso da função hepática e do leucograma para o maior grau de segurança possível. O tempo necessário para se atingir nível adequado de imunossupressão com micofenolato mofetil e prednisona é de, pelo menos, 2 meses. Após 1 ano de tratamento, observamos melhora do controle glicêmico que se estabeleceu de maneira lenta e gradual, o que foi muito importante neste caso, uma vez que a paciente permaneceu durante muitos anos com glicemias elevadas e teve diversos episódios de hipoglicemia relativa com glicemias capilares entre 150 ­ 200mg/dl. A dose de insulina também foi gradualmente reduzida.

O caso torna-se mais complexo pela concomitância de comprometimento neurológico grave. É importante destacarmos a ausência de retinopatia e nefropatia, provavelmente explicada por uma ausência de predisposição genética para estas complicações, já que a paciente apresenta uma grave neuropatia periférica sensitivo-motora.

AGRADECIMENTOS

Ao Professor Sérgio Atala Dib, da Escola Paulista de Medicina, pela 2ª determinação de anticorpos anti-insulina.

Recebido em 22/10/02

Revisado em 16/05/03

Aceito em 21/05/03

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  • Endereço para correspondência
    Giselle Fernandes Taboada
    Praia de Botafogo 528, bl. B, ap. 1101
    22250-040 Rio de Janeiro, RJ
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Ago 2003
    • Data do Fascículo
      Jun 2003

    Histórico

    • Aceito
      21 Maio 2003
    • Revisado
      16 Maio 2003
    • Recebido
      22 Out 2002
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