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Avaliação do eixo hipotálamo-hipófise-gônada e prevalência de hipogonadismo central em homens e mulheres com cirrose hepática

Evaluation of the hypothalamic-pituitary-gonadal axis and prevalence of hypogonadism in men and women with liver cirrhosis

Resumos

A cirrose hepática (CH) é uma das doenças crônicas associadas ao hipogonadismo (HG), o qual tem etiologia variada em relação ao órgão-alvo do eixo gonadal que é acometido. Neste estudo avaliamos o HG intercorrente na CH de diferentes etiologias, em 82 pacientes (49 M/33 F). O diagnóstico de HG foi estabelecido em bases clínicas e hormonais e correlacionado com a gravidade da doença hepática. HG não fisiológico foi diagnosticado em 63 casos (76,8%). Nos homens, detectou-se diminuição da libido (68,8%), disfunção erétil (53,8%), pêlos de distribuição ginecóide (53,1%), atrofia testicular (55,3%) e ginecomastia (48%); entre as mulheres, 18 (78,2%) apresentavam amenorréia em idade fértil. HG foi confirmado por níveis baixos de testosterona livre nos homens e de estradiol nas mulheres. Níveis altos de gonadotrofinas basais estabeleceram a etiologia gonadal do HG. O diagnóstico de alteração hipotálamo-hipofisária só foi possível através do teste do GnRH, onde o valor de pico do LH foi significativamente menor nos hipogonádicos. HG central foi predominante: 90,4% dos casos. A duração da hepatopatia não diferiu entre hipo e eugonádicos. A gravidade da CH, avaliada através da classificação de CHILD, mostrou correlação significativa com o HG. Não houve associação significativa entre HG e sintomas isolados como diminuição da libido ou ginecomastia, concomitância de outras doenças, hiperprolactinemia ou uso de drogas. Em conclusão, foram proeminentes os achados em relação à freqüência de HG, especialmente nas mulheres, e a predominância da etiologia central do mesmo, possivelmente em resposta às más condições metabólicas dos pacientes. O diagnóstico de HG nos pacientes com CH demanda atenção médica contínua.

Cirrose hepática; Hipogonadismo; Hipogonadismo central; Testosterona; Amenorréia


Liver cirrhosis (LC) is one of the chronic diseases associated to hypogonadism (HG), which has a varied etiology in relation to the target organ of the gonadal axis affected. We evaluated 82 patients with LC of different etiologies, to ascertain the prevalence of HG. Non-physiological HG was diagnosed in 63 cases (76,8%). This diagnosis was initially established on clinical bases. In men, loss of libido (68,8%), erectile dysfunction (53,8%), female distribution of pubic hair (53,1%), testicular atrophy (55,3%), and gynecomastia (48%) were detected. In women, amenorrhea during fertile age was present in 18 cases (78,2%). Diagnosis of hypothalamus-pituitary alteration was possible only through GnRH testing, where the LH peak was significantly lower in hypogonadal patients. The frequency of central HG predominated: 90,4% of the cases. There was no difference in the duration of liver disease between HG and eugonadal patients. Severity of cirrhosis, evaluated according to CHILD’s classification, significantly correlated to the presence of central HG. There was no significant association between the presence of HG or isolated symptoms, as reduced libido or gynecomastia, and concomitance of acute or chronic illnesses, hyperprolactinemia or the use of drugs. In conclusion, the findings were prominent in relation to the frequency of HG, especially in women, and the predominance of a central etiology, possibly as a response to the poor metabolic conditions of the patients. Diagnosis of HG in patients with LC demands continued medical attention.

Liver cirrhosis; Hypogonadism; Central hypogonadism; Testosterone; Amenorrhea


ARTIGO ORIGINAL

Avaliação do eixo hipotálamo-hipófise-gônada e prevalência de hipogonadismo central em homens e mulheres com cirrose hepática

Evaluation of the hypothalamic-pituitary-gonadal axis and prevalence of hypogonadism in men and women with liver cirrhosis

Miriam C. Oliveira; Alvaro Cassal; Cristina B. Pizarro

Disciplina de Endocrinologia e Programa de Pós-Graduação em Patologia (MCO, CBP) e Programa de Pós-Graduação em Hepatologia (AC), Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas (FFFCMPA) e Complexo Hospitalar Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, Porto Alegre, RS

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Miriam da Costa Oliveira Rua Dona Mimi Moro 40 90480-050 Porto Alegre, RS Fax: (051) 3328-6761 e.mail: mco@portoweb.com.br

RESUMO

A cirrose hepática (CH) é uma das doenças crônicas associadas ao hipogonadismo (HG), o qual tem etiologia variada em relação ao órgão-alvo do eixo gonadal que é acometido. Neste estudo avaliamos o HG intercorrente na CH de diferentes etiologias, em 82 pacientes (49 M/33 F). O diagnóstico de HG foi estabelecido em bases clínicas e hormonais e correlacionado com a gravidade da doença hepática. HG não fisiológico foi diagnosticado em 63 casos (76,8%). Nos homens, detectou-se diminuição da libido (68,8%), disfunção erétil (53,8%), pêlos de distribuição ginecóide (53,1%), atrofia testicular (55,3%) e ginecomastia (48%); entre as mulheres, 18 (78,2%) apresentavam amenorréia em idade fértil. HG foi confirmado por níveis baixos de testosterona livre nos homens e de estradiol nas mulheres. Níveis altos de gonadotrofinas basais estabeleceram a etiologia gonadal do HG. O diagnóstico de alteração hipotálamo-hipofisária só foi possível através do teste do GnRH, onde o valor de pico do LH foi significativamente menor nos hipogonádicos. HG central foi predominante: 90,4% dos casos. A duração da hepatopatia não diferiu entre hipo e eugonádicos. A gravidade da CH, avaliada através da classificação de CHILD, mostrou correlação significativa com o HG. Não houve associação significativa entre HG e sintomas isolados como diminuição da libido ou ginecomastia, concomitância de outras doenças, hiperprolactinemia ou uso de drogas. Em conclusão, foram proeminentes os achados em relação à freqüência de HG, especialmente nas mulheres, e a predominância da etiologia central do mesmo, possivelmente em resposta às más condições metabólicas dos pacientes. O diagnóstico de HG nos pacientes com CH demanda atenção médica contínua.

Descritores: Cirrose hepática; Hipogonadismo; Hipogonadismo central; Testosterona; Amenorréia

ABSTRACT

Liver cirrhosis (LC) is one of the chronic diseases associated to hypogonadism (HG), which has a varied etiology in relation to the target organ of the gonadal axis affected. We evaluated 82 patients with LC of different etiologies, to ascertain the prevalence of HG. Non-physiological HG was diagnosed in 63 cases (76,8%). This diagnosis was initially established on clinical bases. In men, loss of libido (68,8%), erectile dysfunction (53,8%), female distribution of pubic hair (53,1%), testicular atrophy (55,3%), and gynecomastia (48%) were detected. In women, amenorrhea during fertile age was present in 18 cases (78,2%). Diagnosis of hypothalamus-pituitary alteration was possible only through GnRH testing, where the LH peak was significantly lower in hypogonadal patients. The frequency of central HG predominated: 90,4% of the cases. There was no difference in the duration of liver disease between HG and eugonadal patients. Severity of cirrhosis, evaluated according to CHILD’s classification, significantly correlated to the presence of central HG. There was no significant association between the presence of HG or isolated symptoms, as reduced libido or gynecomastia, and concomitance of acute or chronic illnesses, hyperprolactinemia or the use of drugs. In conclusion, the findings were prominent in relation to the frequency of HG, especially in women, and the predominance of a central etiology, possibly as a response to the poor metabolic conditions of the patients. Diagnosis of HG in patients with LC demands continued medical attention.

Keywords: Liver cirrhosis; Hypogonadism; Central hypogonadism; Testosterone; Amenorrhea

TANTO DOENÇAS AGUDAS GRAVES como doenças crônicas podem se associar à supressão da secreção de gonadotrofinas ou desordem gonadal, resultando em hipogonadismo (1).

O hipogonadismo que acompanha a cirrose, embora de prevalência controversa, é freqüente. Ele independe da etiologia da cirrose, embora aparentemente seja maior na etiologia alcoólica, e incide em ambos os sexos (2). Esse hipogonadismo pode resultar de dano gonadal secundário ao álcool, da sobrecarga de ferro quando a etiologia da cirrose é a hemocromatose, da deficiência de zinco associada à cirrose, do mau estado metabólico induzido pela falência hepática e por causas independentes, como o uso de drogas ou presença de outras doenças.

A fisiopatogênese da disfunção hormonal é complexa e envolve vários níveis do eixo hipotálamo-hipófise-gônada. Na maior parte das vezes, apesar de insuficiência gonadal acentuada, os níveis séricos de gonadotrofinas são baixos, indicando envolvimento do eixo hipotálamo-hipofisário a partir de desordem hipotalâmica (3).

Independente do órgão-alvo desencadeador do hipogonadismo, os homens cirróticos hipogonádicos podem apresentar uma síndrome clínica decorrente de feminização (ginecomastia) ou associada à própria deficiência da testosterona (diminuição da libido, disfunção erétil, redução da fertilidade, atrofia testicular, rarefação dos pêlos sexuais e alterações comportamentais). Poucos autores investigaram o hipogonadismo nas mulheres cirróticas.

Os principais objetivos desse estudo foram avaliar a freqüência de hipogonadismo clínico e laboratorial numa amostra de pacientes cirróticos de ambos os sexos, estabelecer a etiologia primária ou central do hipogonadismo e relacionar a presença do hipogonadismo com a gravidade da doença hepática.

PACIENTES E MÉTODOS

Fazem parte do estudo 82 pacientes com cirrose hepática, com idade entre 18 e 76 anos, 49 do sexo masculino e 33 do feminino, provenientes do Serviço de Gastroenterologia da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. O diagnóstico de cirrose hepática foi estabelecido em bases clínicas (N= 34) ou através de biópsia hepática (N= 48). Os pacientes foram informados do objetivo do estudo e consentiram em participar do mesmo.

Dois médicos, um endocrinologista e um gastroenterologista, entrevistaram e examinaram, num mesmo momento, cada um dos pacientes.

Foi considerado como tempo de diagnóstico da cirrose o intervalo entre os primeiros sinais e sintomas compatíveis com a doença e o momento de entrada no protocolo. A avaliação da gravidade da cirrose foi estimada através da classificação modificada de CHILD, que varia de A a C conforme pontuação que leva em conta o grau de encefalopatia e ascite, níveis de bilirrubina e albumina e tempo de protrombina (4). Dados sobre a libido e a função sexual não foram coletados nos pacientes com encefalopatia. Informações sobre a função sexual não foram valorizadas naqueles que não mantiveram relações sexuais no último ano. Nas mulheres, o critério de amenorréia foi a ausência de menstruação durante os últimos 6 meses ou mais (5), excluída a informação de histerectomia ou outra doença endócrina ou ginecológica que a justificasse. Nenhuma das mulheres em idade de menopausa usava reposição hormonal. O exame testicular foi realizado com o orquidômetro de Prader, considerando-se atrofia testicular volume inferior a 15ml (6). Foi considerada ginecomastia a presença de tecido areolar palpável com, no mínimo, 2cm de diâmetro (7).

A avaliação bioquímica foi realizada no laboratório da instituição, constando de hemograma, provas de função hepática e renal, glicemia e dosagens pertinentes à caracterização etiológica da cirrose. Os exames hormonais foram realizados através de kits comerciais (Chiron Diagnostics®, USA) e incluíram, nos homens, a testosterona total e livre e, em todos os pacientes, LH e FSH basais e aos 30, 60, 90 e 120min pós-estímulo com GnRH (100mg IV), estradiol e prolactina. Todas as amostras basais foram coletadas às 8 horas. Nas mulheres que apresentavam ciclos menstruais regulares as coletas foram feitas na primeira fase do ciclo. Estradiol (VN para homens: até 40pg/mL; para mulheres: 30-150), prolactina (VN para homens: 3-30ng/mL; para mulheres: 3-24), LH (VN para homens: 1,3-19,8mUI/mL; para mulheres: 0.7-35,2) e FSH (VN para homens: 2,0-12,8mUI/mL; para mulheres: 3,1-15,7) foram dosados por quimioluminescência; testosterona total (VN: 2,8-9,8ng/dL) e livre (VN: 12,4-40,0pg/mL) foram dosadas por RIE.

A interpretação da resposta das gonadotrofinas ao GnRH utilizou como parâmetros os valores de pico (LHp e FSHp), o aumento do pico em relação ao basal, expresso em número de vezes (LHx e FSHx), e o delta, isto é, a diferença entre o pico e o basal (LHdel e FSHdel).

O diagnóstico de hipogonadismo baseou-se na presença de amenorréia nas mulheres e, nos homens, em níveis de testosterona livre abaixo do limite inferior da normalidade. O hipogonadismo foi considerado primário quando uma ou ambas as gonadotrofinas basais se encontravam aumentadas; considerou-se como menopausa normal o achado de gonadotrofinas basais aumentadas em mulheres amenorréicas com idade igual ou superior a 45 anos. Na ausência de elevação basal das gonadotrofinas, o hipogonadismo foi considerado de origem central. Para efeito de análise, foram considerados 4 grupos de pacientes: grupo 1, eugonádicos; grupo 2, mulheres em menopausa normal; grupo 3, hipogonadismo central e grupo 4, hipogonadismo primário.

Especial atenção foi dada às drogas utilizadas pelos pacientes, com ênfase aos medicamentos potencialmente causadores de alteração na secreção de LH e FSH e os associados à ginecomastia e/ou impotência (8,9) ou associados à hiperprolactinemia (10).

A comparação entre dois grupos foi feita através do teste do Qui-quadrado (dados percentuais) ou do teste de Mann-Whitney (dados sem distribuição normal). Para comparação entre um número maior de grupos, utilizou-se ANOVA para os dados paramétricos e Kruskal-Wallis para os demais. Em todas as análises considerou-se como significativo p<0,05. Os dados foram analisados através do programa estatístico SPSS. Especificamente com relação à interferência das drogas utilizadas nos dados avaliados, utilizou-se o teste do Qui-quadrado com correção de Yates, através do programa PEPI (Program for Epidemiologists).

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição.

RESULTADOS

Detectou-se como etiologia da cirrose o álcool em 16 casos, vírus C em 29, álcool e vírus C em 19, vírus B em 3, vírus B e C em dois, colangite esclerosante e vírus C em um, álcool, vírus C e B e hemocromatose secundária em um, cirrose biliar primária em um, cirrose biliar secundária em um e cirrose criptogênica em 9 casos. O tempo de diagnóstico da cirrose quando da entrada no protocolo variou de 1 a 450 meses, mediana 19. O escore de CHILD foi igual a A em 19 casos, B em 41 e C em 22.

Na avaliação clínica do estado gonadal, informação sobre a libido foi disponibilizada em 45 homens, distribuição dos pêlos pubianos e volume testicular em 47 e presença de parênquima mamário em 48; a informação sobre função sexual foi valorizada em 39 casos. A libido estava diminuída em 31 homens (68,8%). A função sexual era compatível com o esperado para a faixa etária em 18 e inadequada (incapacidade de manter relação sexual) em 21 (53,8%). Dos pacientes com impotência, 6 eram portadores de diabete melito e nenhum apresentava hiperprolactinemia. A distribuição dos pêlos genitais era ginecóide em 25 (53,1%). Atrofia testicular unilateral foi caracterizada em 7 casos e bilateral em 19 (55,3%). Ginecomastia, em todos os casos bilateral, foi diagnosticada em 24 homens (48%). A medida do maior eixo da mama variou entre 2 e 9cm.

Amenorréia estava presente em 28 mulheres (84,8%), enquanto 5 menstruavam regularmente. A libido, avaliada em 32, estava diminuída em 26 (81,2%). Vida sexual ativa, também avaliada em 32 casos, estava ausente em 22 mulheres.

Nos homens, a concentração de testosterona total variou de 0,1 a 14,0ng/dL (1,9±2,5; média±DP) e a testosterona livre entre 0,2 e 21pg/mL (5,0±4,4). O nível de testosterona total, analisado de acordo com a faixa etária, estava inferior à faixa normal em 39 casos e o de testosterona livre em 45. O nível de estradiol estava aumentado em 6 homens (43 a 55pg/mL), três dos quais apresentavam ginecomastia, e diminuído em 12 mulheres.

Entre 81 pacientes avaliados, foi constatada hiperprolactinemia em 4 homens e 5 mulheres. Os valores elevados variaram entre 25 e 201ng/mL.

Com base nos dados acima relacionados, foram diagnosticados 9 casos de eugonadismo (5 mulheres e 4 homens, 10,9% da amostra) e 73 de hipogonadismo (28 mulheres e 45 homens, 89,1%). As dosagens de LH e FSH basais, elevadas à luz dos dados clínicos e nível sérico de esteróides gonadais, definiu dois grupos de hipogonádicos: mulheres em menopausa normal (idade compatível, amenorréia, estradiol baixo, gonadotrofinas basais aumentadas), n= 10, média de idade de 61,8 anos, e pacientes com hipogonadismo primário (hipogonadismo com níveis basais de gonadotrofinas aumentados), n= 6, uma mulher e 5 homens, com média de idade de 53,1 anos. A mulher com hipogonadismo primário apresentava amenorréia desde os 28 anos, após 4 gestações normais; relatava história de tuberculose peritoneal. Em 4 homens a causa do hipogonadismo primário não foi identificada e, no restante, havia relato de orquite pós-caxumba.

A separação entre os eugonádicos e os pacientes com hipogonadismo central foi feita com base nos resultados dos esteróides gonadais. O grupo com hipogonadismo central compreendeu 57 pacientes, 17 mulheres e 40 homens, com média de idade de 50,3 anos. A etiologia da cirrose nestes pacientes foi: vírus C (n= 21), álcool e vírus C (n= 14), álcool (n= 11), criptogênica (n= 4), vírus B (n= 3), vírus B e C (n= 2) e nos casos de colangite esclerosante e vírus C e de cirrose biliar secundária. Não se observou diferença estatística nos dados de função sexual, libido ou presença de ginecomastia entre este grupo e o dos eugonádicos. Também não houve diferença significativa quanto à duração da hepatopatia (mediana de 18 meses nos com hipogonadismo central e de 24 meses nos eugonádicos). A gravidade da cirrose se correlacionou significativamente (p= 0,01) com a presença de hipogonadismo central. Enquanto 33,3% dos hipogonádicos apresentavam CHILD C, nenhum dos eugonádicos apresentava esse grau de gravidade da cirrose. Os níveis basais de gonadotrofinas não foram diferentes entre os dois grupos. Entre as variáveis exploradas no teste do GnRH, observou-se diferença significativa no pico de LH, que foi menor no grupo com hipogonadismo. As demais variáveis no teste do GnRH não apresentaram diferença significativa entre os dois grupos.

A discriminação do estado gonadal dos pacientes encontra-se na tabela 1. Os valores dos esteróides gonadais e da prolactina em cada um dos grupos constam na tabela 2. Os valores de LH basal, pico, vezes e delta constam na tabela 3, enquanto as mesmas variáveis do FSH estão na tabela 4.

Nenhum dos pacientes apresentava doença aguda grave extra-hepática no momento da avaliação. Dezessete pacientes apresentavam diabete melito, 9 deles com hipogonadismo. Cinco pacientes (entre eles, dois diabéticos) apresentavam insuficiência renal crônica; todos estavam hipogonádicos. Nove pacientes apresentavam neoplasias (três com diabete associado): 5 casos de hepatocarcinoma e os restantes com câncer de esôfago, de vesícula, de mesentério e colangiocarcinoma; destes, 6 tinham hipogonadismo.

Com relação ao uso de medicações com potencial de interferência nos diagnósticos realizados, foi constatado o uso de propranolol em 15 homens e carbamazepina em um, ambas drogas associadas à impotência. Desses, 7/13 relatavam impotência (53,8%). Estatisticamente não houve interferência significativa do uso destas medicações na ocorrência de impotência (p= 0,703) (tabela 5). Trinta e sete homens usavam drogas associadas à ginecomastia: 5 usavam ranitidina, dois omeprazol, um nifedipina, um verapamil e 32 espironolactona. Desses, 19/36 apresentavam ginecomastia (52,7%). Embora tenha se observado uma maior ocorrência de ginecomastia nos expostos (usuários das drogas), a diferença entre os grupos também não atingiu diferença estatística (p= 0,391) (tabela 5). Os três homens que usavam drogas associadas à diminuição do nível de gonadotrofinas (verapamil, betametasona e digoxina) eram hipogonádicos, com valores de gonadotrofinas dentro da faixa referencial dos ensaios. Finalmente, 15 pacientes usavam drogas que elevam a prolactina: haloperidol (1 caso), ranitidina (12), cimetidina (1), verapamil (1). Desses, 3 apresentavam hiperprolactinemia, em valores de, respectivamente, 47, 69 e 201ng/mL.

DISCUSSÃO

O percentual de apresentação clínica e laboratorial de hipogonadismo no atual estudo com pacientes cirróticos é elevado, de aproximadamente 90%. O hipogonadismo incidiu em pacientes com cirrose das mais variadas etiologias. O primeiro dado a ser discutido é a ligação hipogonadismo/cirrose na amostra. Um terço dos homens com hipogonadismo tinha 60 anos ou mais. Embora com o aumento da idade, especialmente após os 60 anos, todos os componentes da testosterona sérica declinem, principalmente a testosterona livre, o que poderia justificar os achados clínicos relacionados à deficiência deste esteróide, essa redução oscila grandemente e não se associa necessariamente ao reconhecimento clínico de hipogonadismo (11). Assim, está afastada na população masculina da amostra a possibilidade de ter na "andropausa" a justificativa para o hipogonadismo clínico apresentado, incluindo a diminuição da libido, da ordem de 70%. Os níveis baixos de testosterona nestes pacientes caracterizam a presença de hipogonadismo orgânico ou de outra causa funcional.

Considerando as etiologias da cirrose, há que analisar casos em que o hipogonadismo poderia derivar diretamente do fator causal da cirrose e não do dano hepático per se. O álcool pode interferir com a função normal do testículo, da hipófise, do hipotálamo e da glândula supra-renal, seja por toxicidade gonadal ou por supressão da secreção de gonadotrofinas, conseqüente à hiporresponsividade hipofisária e diminuição na secreção de GnRH. Insuficiência gonadal primária pode resultar de uma ação tóxica direta do etanol e do acetaldeído nas gônadas (12). Em humanos, a ingesta moderada de bebidas alcoólicas aparentemente não afeta a função testicular (13).

Hemocromatose, presente num paciente do grupo, pode ter entre suas complicações o hipogonadismo hipogonadotrófico (14,15), diagnóstico que não foi confirmado nesse paciente.

Já a deficiência de zinco, tanto na doença hepática alcoólica como na não-alcoólica, é uma situação freqüente, seja por conseqüência de ingestão inadequada, por diminuição na absorção ou aumento na depuração, e está associada à presença de hipogonadismo. Em estudo recente, que incluiu parte da amostra deste estudo, observamos concentrações séricas baixas de zinco em 48,5% de pacientes cirróticos avaliados, decréscimo esse relacionado diretamente à progressão da disfunção hepatocelular (16). Ao contrário de outros autores (17), apenas observamos redução significativa na média de zinco sérico dos hipogonádicos em relação aos não-hipogonádicos no grupo das mulheres cirróticas.

Do total da amostra, 27 pacientes apresentavam doenças crônicas associadas. Nestas doenças, a interferência poderia ser o próprio mau estado metabólico gerando hipogonadismo. Dezessete pacientes com doença crônica tinham esse diagnóstico, o que representa apenas 23,2% do total de hipogonádicos. Maior significado poderia ter a presença de diabete melito e de hiperprolactinemia, especialmente em relação à disfunção erétil no primeiro caso e diminuição da libido no segundo. A freqüência destas alterações nos cirróticos aqui afetados por hipogonadismo não justifica considerá-las como viéses. Ainda com relação à libido, poderia ser questionada a presença de depressão que acompanha indivíduos com doença crônica, diagnóstico esse que não foi testado objetivamente. No entanto, a literatura relata depressão em indivíduos hospitalizados por doença orgânica na ordem de 20% (18), dado esse que, mesmo confirmado, não justificaria a acentuada ocorrência de diminuição da libido nesses pacientes.

O percentual de disfunção erétil aqui detectado (53,8%) está de acordo com o descrito por Cornely e cols. (19), numa amostra de 60 homens com cirrose, da ordem de 40%. Esses autores observaram maior prevalência de impotência na cirrose alcoólica (70%) que na não-alcoólica (25%). Do mesmo modo, a atrofia testicular (em 55,3% dos pacientes) está de acordo com a faixa de variação descrita na literatura, que varia entre 30 e 75% (2).

Ainda com relação aos homens, aproximadamente a metade dos cirróticos apresentou ginecomastia. Pacientes com cirrose alcoólica apresentam feminização devido à aromatização da testosterona e subseqüente redução da testosterona e aumento nos níveis séricos de estradiol (20). Apesar da grande freqüência de ginecomastia, poucos homens desta série apresentaram níveis elevados de estradiol; sabe-se, no entanto, que a ginecomastia está na dependência do desequilíbrio da razão entre hormônios "femininos" e "masculinos", mais que em seus níveis absolutos. O aumento da razão estrógeno/testosterona em pacientes com cirrose hepática está associado à gravidade da disfunção hepática (21). Segundo Martinez-Riera (22), os níveis de estradiol mais elevados foram observados em cirróticos com ascite ou ginecomastia.

Já nas mulheres, a presença de amenorréia em aproximadamente 85% dos casos é excepcional. Amenorréia é dado pouco relatado em trabalhos anteriores. Em alcoólatras não-cirróticas, Seki e cols. (23) relacionaram o álcool aos achados de hiperprolactinemia, dispareunia, amenorréia, secura vaginal, disfunção ovariana e síndrome álcool-fetal. Outro estudo, avaliando 75 mulheres com cirrose de diversas etiologias, observou a presença de amenorréia em 6,7% daquelas em idade reprodutiva (24). Já Bell e cols. (25) observaram disfunção do eixo gonadal em metade de uma amostra de mulheres com cirrose hepática.

Outro ponto a ser comentado é a determinação do nível do eixo gonadal afetado. Apenas cinco hipogonádicos apresentaram quadro compatível com hipogonadismo primário. Nos homens, a orquite no passado, presente em um caso, poderia ser uma justificativa; nos demais, nenhum dado de história foi esclarecedor. Trata-se, provavelmente, de dano gonadal primário pelo álcool, utilizado por três dos pacientes, ou pela própria doença crônica, como sugerido por Backer (1). Um dos pacientes em uso de álcool, do sexo feminino, igualmente estava sujeita ao efeito deletério direto do mesmo, que também ocorre sobre os ovários (1).

Hipogonadismo central foi diagnosticado em 90,4% dos hipogonádicos. Chama a atenção que não houve diferença estatisticamente significativa nas manifestações clínicas de hipogonadismo entre esses e os eugonádicos. Essa foi a única e fundamental contribuição do teste de estímulo com o fator liberador de gonadotrofinas, que mostrou pico do LH significativamente menor no grupo com hipogonadismo central.

Outros autores apontaram na direção de um componente dominante de interferência com o segmento hipotálamo-hipofisário do eixo gonadal (3,25-27). O sítio desencadeante da desordem é o hipotálamo, uma vez que os pacientes não apresentam a pulsatilidade normal do LH (3), que o GnRH estimula o LH e o FSH (25-27) e que o quadro de disfunção hormonal é revertido após transplante hepático (26,27-29). A sugestão de desordem hipotalâmica secundária ao meio-ambiente adverso (26) não invalida, todavia, a presença de lesão gonadal em alguns pacientes.

No atual estudo, a gravidade da cirrose se correlaciona com a presença de hipogonadismo central. Observações semelhantes foram feitas por Monegal e cols. (30) em 58 cirróticos e por Kaymakaglu e cols. (31) em 56 cirróticos. Segundo esses autores, os indivíduos com CHILD C tinham estradiol mais alto e testosterona livre mais baixa que os com CHILD A e B, atestando que hipogonadismo e feminização se correlacionam positivamente com a gravidade da falência hepática.

Conclui-se pela necessidade de atenção contínua quanto à presença de hipogonadismo em pacientes com cirrose, tendo em vista a alta prevalência de disfunção gonadal, especialmente no sexo feminino e, na maior parte das vezes, pela dificuldade da confirmação do mecanismo fisiopatológico desencadeante do quadro. Esta dificuldade se relaciona à etiologia central, predominante nesses casos de hipogonadismo, ser diagnosticada definitivamente apenas pela resposta ao teste de estímulo ao hormônio liberador de gonadotrofinas. A única intervenção terapêutica já descrita que se associa à reversão do quadro é a normalização metabólica alcançada através do transplante hepático. Dúvidas e controvérsias que ainda cercam o tema serão esclarecidas com o prosseguimento dos estudos na área.

Recebido em 13/02/03

Revisado em 12/06/03

Aceito em 06/07/03

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2004
    • Data do Fascículo
      Out 2003

    Histórico

    • Aceito
      06 Jul 2003
    • Revisado
      12 Jun 2003
    • Recebido
      13 Fev 2003
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