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Enzimas envolvidas na organificação tireoideana do iodo

Enzymes involved in thyroid iodide organification

Resumos

A biossíntese dos hormônios da tireóide depende do funcionamento normal de uma série de proteínas que são necessárias tanto para a captação de iodeto através da membrana basolateral dos tireócitos como para sua incorporação à proteína aceptora, a tireoglobulina (Tg), o que ocorre na superfície apical da célula folicular. O co-transportador sódio-iodeto (NIS) é responsável pela captação tireoideana de iodeto, a primeira etapa da biossíntese hormonal tireoideana. No pólo apical dos tireócitos, o iodeto é transportado através da membrana celular pela pendrina (PDS) e subseqüentemente incorporado à Tg, uma proteína de alto peso molecular secretada no lúmen folicular. A oxidação do iodeto e sua organificação parecem ocorrer principalmente na superfície apical da célula folicular, e estas reações são catalisadas pela tireoperoxidase (TPO) na presença de peróxido de hidrogênio. Assim, a organificação tireoideana do iodo depende da atividade TPO, a qual é modulada pelas concentrações de substrato (tireoglobulina e iodeto) e cofator (peróxido de hidrogênio). A enzima responsável pela geração de peróxido de hidrogênio associada à hormonogênese tireoideana é a NADPH oxidase (ThOx), que encontra-se no pólo apical dos tireócitos, é estimulada pela tireotrofina e inibida pelo iodo. Aparentemente, a geração de peróxido de hidrogênio é o passo limitante da biossíntese dos hormônios da tireóide em condições de suficiência de iodo.

Tireoperoxidase; Oxidase tireoideana; Peróxido de hidrogênio; Iodo


Thyroid hormone biosynthesis depends on iodide uptake and its incorporation into the acceptor protein thyroglobulin (Tg), a high molecular weight protein secreted into the follicular lumen. The sodium-iodide symporter (NIS) is responsible for thyroid iodide uptake, the first step in thyroid hormonogenesis. Iodide is subsequently transported through the cellular membrane by pendrin (PDS) and then incorporated into Tg. Iodide oxidation and organification occur mainly in the thyrocyte apical surface and these reactions are catalyzed by thyroperoxidase (TPO) in the presence of hydrogen peroxide. Thus, thyroid iodide organification depends on TPO activity, which is modulated by the concentration of substrates (thyroglobulin and iodide) and cofactor (hydrogen peroxide). Hydrogen peroxide generation is catalyzed by the thyroid NADPH oxidase (ThOx), which is present in the apical pole of thyrocytes, is stimulated by thyrotropin and is inhibited by iodide. Hydrogen peroxide generation is the limiting step in thyroid hormone biosynthesis under iodine sufficiency conditions.

Thyroperoxidase; Thyroid oxidase; Hydrogen peroxide; Iodide organification; Iodide


ATUALIZAÇÃO

Enzimas envolvidas na organificação tireoideana do iodo

Enzymes involved in thyroid iodide organification

Mário Vaisman; Doris Rosenthal; Denise P. Carvalho

Serviço de Endocrinologia, Hospital Universitário Clementino Fraga Filho/ Faculdade de Medicina (MV); e Laboratório de Fisiologia Endócrina, Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (DR, DPC), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Denise P. Carvalho Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho CCS - Bloco G, Cidade Universitária, Ilha do Fundão 21949-900 Rio de Janeiro, RJ Fax: (21) 2280-8193 e.mail: dencarv@biof.ufrj.br

RESUMO

A biossíntese dos hormônios da tireóide depende do funcionamento normal de uma série de proteínas que são necessárias tanto para a captação de iodeto através da membrana basolateral dos tireócitos como para sua incorporação à proteína aceptora, a tireoglobulina (Tg), o que ocorre na superfície apical da célula folicular. O co-transportador sódio-iodeto (NIS) é responsável pela captação tireoideana de iodeto, a primeira etapa da biossíntese hormonal tireoideana. No pólo apical dos tireócitos, o iodeto é transportado através da membrana celular pela pendrina (PDS) e subseqüentemente incorporado à Tg, uma proteína de alto peso molecular secretada no lúmen folicular. A oxidação do iodeto e sua organificação parecem ocorrer principalmente na superfície apical da célula folicular, e estas reações são catalisadas pela tireoperoxidase (TPO) na presença de peróxido de hidrogênio. Assim, a organificação tireoideana do iodo depende da atividade TPO, a qual é modulada pelas concentrações de substrato (tireoglobulina e iodeto) e cofator (peróxido de hidrogênio). A enzima responsável pela geração de peróxido de hidrogênio associada à hormonogênese tireoideana é a NADPH oxidase (ThOx), que encontra-se no pólo apical dos tireócitos, é estimulada pela tireotrofina e inibida pelo iodo. Aparentemente, a geração de peróxido de hidrogênio é o passo limitante da biossíntese dos hormônios da tireóide em condições de suficiência de iodo.

Descritores: Tireoperoxidase; Oxidase tireoideana; Peróxido de hidrogênio; Iodo

ABSTRACT

Thyroid hormone biosynthesis depends on iodide uptake and its incorporation into the acceptor protein thyroglobulin (Tg), a high molecular weight protein secreted into the follicular lumen. The sodium-iodide symporter (NIS) is responsible for thyroid iodide uptake, the first step in thyroid hormonogenesis. Iodide is subsequently transported through the cellular membrane by pendrin (PDS) and then incorporated into Tg. Iodide oxidation and organification occur mainly in the thyrocyte apical surface and these reactions are catalyzed by thyroperoxidase (TPO) in the presence of hydrogen peroxide. Thus, thyroid iodide organification depends on TPO activity, which is modulated by the concentration of substrates (thyroglobulin and iodide) and cofactor (hydrogen peroxide). Hydrogen peroxide generation is catalyzed by the thyroid NADPH oxidase (ThOx), which is present in the apical pole of thyrocytes, is stimulated by thyrotropin and is inhibited by iodide. Hydrogen peroxide generation is the limiting step in thyroid hormone biosynthesis under iodine sufficiency conditions.

Keywords: Thyroperoxidase; Thyroid oxidase; Hydrogen peroxide; Iodide organification; Iodide

O IODO É O ELEMENTO ESSENCIAL à biossíntese dos hormônios da tireóide. O iodeto proveniente da dieta é absorvido no trato gastro-intestinal, sendo captado pela tireóide a partir da corrente sangüínea, através de um transportador específico existente na membrana basolateral dos tireócitos, o co-transportador sódio-iodeto (NIS, Na+/I- Symporter) (1,2). Em áreas de deficiência de iodo na dieta, ocorre diminuição do conteúdo de iodo intra-tireoideano e conseqüente diminuição da produção dos hormônios da tireóide, causando graus variados de hipotireoidismo e alta prevalência de bócio. Muitas vezes, a deficiência hormonal já existe no período intra-uterino e permanece durante os primeiros meses ou anos de vida, podendo estar associada, em situações extremas, ao cretinismo.

A biossíntese hormonal é dependente da disponibilidade de iodo na região apical da célula folicular, da síntese adequada de tireoglobulina (Tg) e de enzimas envolvidas na incorporação do iodo a resíduos tirosila (Tyr) da molécula de Tg, etapa denominada organificação do iodo. A principal enzima relacionada à biossíntese hormonal é a peroxidase tireóidea (TPO). Dados da literatura indicam que a TPO é a responsável pela oxidação do iodeto e sua incorporação aos radicais tirosila da molécula de Tg (1,3). O H2O2 é essencial como oxidante na reação de oxidação do iodeto catalisada pela TPO e, quando os níveis intracelulares de iodeto são suficientes, a geração de H2O2 passa a ser o passo limitante na biossíntese dos hormônios tireóideos (4). A enzima responsável pela geração tireóidea de peróxido de hidrogênio foi caracterizada em tireóides humanas e, posteriormente, clonada, tendo sido denominada oxidase tireóidea (ThOx ou DuOx) (5,6). Recentemente, foi demonstrado que outros genes expressos na tireóide originam proteínas importantes para a hormonogênese, como descrito na síndrome de Pendred, na qual há mutação na pendrina (PDS), normalmente expressa na membrana apical da célula folicular tireóidea (7). A PDS seria importante para a passagem do iodeto através da membrana apical, pois o sítio catalítico da TPO, região da enzima que interage com o iodeto, encontra-se na região extra-celular, voltado para o colóide. Portanto, a presença da PDS é importante para que o iodeto possa ser oxidado pela TPO e organificado na molécula de Tg.

A biossíntese hormonal requer a produção das proteínas envolvidas na organificação do iodo que são produzidas especificamente no tireócito. A expressão dessas proteínas é considerada marcador de diferenciação tecidual da tireóide e pode ser controlada por fatores de transcrição específicos como TTF-1, TTF-2 e Pax-8 (8-10). Esses fatores de transcrição são expressos simultaneamente apenas na célula tireóidea. As regiões promotoras dos genes da Tg e da TPO são controladas pelo hormônio tireoestimulante (TSH) (11,12), e a expressão da Tg e da TPO se segue à interação dos fatores de transcrição TTF-1, TTF-2 e Pax-8 com a região promotora destes genes (8). Há interação de Pax 8 com a região promotora do gene do NIS. Entretanto, a combinação do fator Pax 8 com o TTF-1 não parece ser importante para a regulação da transcrição deste gene (13). As regiões promotoras dos genes da PDS e das ThOxs 1 e 2, assim como a sua regulação, ainda não foram estudadas.

O hipotireoidismo congênito permanente ocorre em cerca de 1:3000 a 1:4000 recém-natos. A principal causa está relacionada à disgenesia tireoideana (85%), que corresponde às agenesias, hipoplasias ou ectopias da tireóide (14,15). Mutações no gene do fator de transcrição tireoideano Pax 8 foram relacionadas a alguns casos de hipoplasia tireoideana (16), assim como mutações inativadoras no gene do receptor de TSH (17). Os demais casos de hipotireoidismo congênito estão relacionados a mutações que causam perda de função de proteínas envolvidas na biossíntese dos hormônios, como o NIS, a TPO, a ThOx2, a Tg e a PDS. Nesses casos, denomina-se dis-hormonogênese e há bócio, o qual pode estar presente ao nascimento ou se desenvolver durante a infância ou adolescência (14,15).

ORGANIFICAÇÃO DO IODO

Os tireócitos são capazes de captar iodeto do plasma, através da sua membrana basolateral, contra gradiente eletro-químico.

O iodo entra na célula folicular tireóidea como iodeto, sendo transportado junto com o sódio por uma proteína transportadora de membrana - o NIS. O cDNA para o NIS foi clonado e codifica uma proteína transportadora clássica com treze domínios transmembrana (18). A atividade do NIS é eletrogênica e dependente do gradiente de Na+ gerado pela bomba Na+/K+ ATPase; a estequiometria do co-transporte realizado pelo NIS é de 2 Na+: 1 I- (19). Como o interior da célula mantém um potencial elétrico negativo em relação ao interstício e à luz folicular, o iodeto é transportado para dentro da célula contra este potencial eletronegativo, mas a favor do gradiente eletroquímico gerado pelo Na+. Portanto, a atividade do NIS está intimamente relacionada à bomba Na+/K+ ATPase. Desta maneira, a captação de iodeto pela célula folicular ocorre por um mecanismo de transporte ativo secundário (2). O transporte de iodeto através do NIS é estimulado pelo hormônio adeno-hipofisário tireotrofina (TSH). Além da concentração sérica de TSH, o transporte de iodeto é também regulado pelo mecanismo de auto-regulação do tireócito, no qual a atividade do NIS varia inversamente com o conteúdo glandular de iodo (21). No interior celular, o iodeto se difunde, segundo gradiente eletroquímico, em direção ao espaço luminal.

O iodeto é transportado através da membrana apical da célular folicular pela pendrina (PDS), uma proteína que se encontra mutada em pacientes com síndrome de Pendred, os quais apresentam bócio por defeito da biossíntese hormonal e surdez devido à malformação coclear (7,20).

A organificação do iodo à molécula de Tg depende da oxidação prévia do iodeto catalisada pela TPO na presença de peróxido de hidrogênio (figura 1).


TIREOGLOBULINA

A Tg é a principal proteína produzida pela tireóide, correspondendo a 70-80% do conteúdo protéico da glândula, sintetizada no retículo endoplasmático e exportada para a luz folicular. Logo após a tradução do mRNA da Tg, ainda no retículo endoplasmático, resíduos glicídicos são adicionados à proteína. A Tg madura, presente no complexo de Golgi, contém 10% de carboidratos e o grau de glicosilação está associado à funcionalidade da proteína (22).

A Tg é uma glicoproteína dimérica de 660kDa e coeficiente de sedimentação de 19 S, quando normalmente iodada, que serve de suporte para a biossíntese dos hormônios tireóideos (23). O iodo é incorporado em regiões específicas da Tg - resíduos tirosil hormonogênicos - e a proteína é clivada após endocitose, permitindo a liberação dos hormônios tireóideos formados (1,3,24).

O gene humano da Tg, possui 260kb (22) e se localiza no cromossomo 8. O mRNA da Tg possui 8-8,5kb e codifica uma sub-unidade com 330kDa e coeficiente de sedimentação 12 S (1,3).

TIREOPEROXIDASE

A TPO é uma hemoglicoproteína com 933 aminoácidos e peso molecular de 103kDa, que se encontra na membrana plasmática apical da célula folicular com o seu domínio catalítico voltado para o colóide (1,25). A proteína está distribuída em diferentes localizações subcelulares, como retículo endoplasmático, aparelho de Golgi e vesículas próximas à membrana apical da célula folicular, na interface citoplasma-colóide. O gene da TPO humana, localiza-se no braço curto do cromossoma 2, está clonado e a seqüência completa possui 3048 nucleotídeos (26). A expressão da TPO é controlada pelo TSH através de um sistema dependente de 3', 5'-adenosina monofosfato cíclico (AMPc)/proteína cinase A (PKA) (12). A atividade TPO está aumentada no adenoma tóxico e no bócio difuso tóxico e é bastante variável em nódulos hipofuncionantes (26).

A TPO é o principal componente do antígeno microssomal que corresponde ao alvo dos auto-anticorpos presentes na tireoidite auto-imune, causando destruição da glândula, particularmente na tireoidite de Hashimoto (27).

Há outras isoformas de TPO em tireóides normais e na doença de Graves, como a TPO 2, que apresenta 876 aminoácidos, e a TPOzanelli, que tem 929 aminoácidos (28,29). O papel dessas TPOs menores, possivelmente produtos de clivagem da proteína ou de splicing alternativo do mRNA da TPO 1, ainda não foi elucidado.

Atualmente, acredita-se que a TPO seja responsável pela catálise de 3 reações da biossíntese hormonal: a oxidação de íons I-, a iodação da tireoglobulina e o acoplamento de iodotirosinas, formando iodotironinas (1,3).

Foi proposta a existência de dois sítios catalíticos na TPO, um para ligar-se ao I- e outro para ligar-se à tirosina, aminoácido presente na tireoglobulina. Esses dois substratos irão sofrer oxidação pela TPO, produzindo radicais livres a partir do iodeto e da tirosila, que se ligam formando monoiodotirosina (MIT). A MIT, ainda ligada à TPO, pode sofrer nova oxidação e reagir com outro radical do iodeto, produzindo diiodotirosina (DIT). As iodotirosinas formadas são acopladas, formando os hormônios tireóideos tetraiodotironina (T4) ou 3,5,3'-triiodotironina (T3) (1,3).

SISTEMA GERADOR DE PERÓXIDO DE HIDROGÊNIO

O H2O2 é essencial nas reações catalisadas pela TPO, agindo como cofator enzimático na reação de oxidação do I-. Há alguns anos, o estudo dos possíveis sistemas envolvidos na geração de H2O2 na tireóide tem sido de especial interesse em tireoidologia. A geração de H2O2 foi detectada na região apical da célula folicular tireóidea, e mostrou-se dependente de NADPH (30). Além disto, foi demonstrado que o aumento da produção de H2O2 na tireóide parece ser mediado, pelo menos em algumas espécies, pelo aumento dos níveis de cálcio intracelular (31). In vitro, vários estudos foram feitos com o intuito de caracterizar a enzima responsável pela geração tireóidea de H2O2. Utilizando-se técnicas bioquímicas, os resultados obtidos in vivo foram confirmados, tendo sido determinado que o sistema gerador de peróxido de hidrogênio na tireóide é dependente de NADPH e de cálcio em concentrações micromolares. A enzima, denominada NADPH oxidase tireóidea, encontra-se nas frações microssomais e de membrana citoplasmática de tireóides (32-34).

Nos últimos anos, mostrou-se que a indução da geração de H2O2 em culturas primárias de tireócitos caninos era modulada pelo hormônio tireotrófico (TSH) (35), e que a atividade NADPH oxidase era induzida por TSH, assim como os outros marcadores de diferenciação celular tireóideos, a Tg e a TPO. Além disto, assim como ocorre na regulação da expressão da TPO e da Tg, os efeitos do TSH sobre a atividade NADPH oxidase são dependentes de síntese protéica e reproduzidos por análogos do AMP cíclico (36). Dando prosseguimento a estes estudos, a sub-unidade dessa enzima responsável pela oxidação do NADPH foi solubilizada e foi demonstrado que a síntese desta porção, flavoprotéica, era induzida pelo TSH (37). Esses dados foram fundamentais para que a NADPH oxidase fosse finalmente considerada a enzima responsável pela geração de H2O2, sendo de extrema relevância para a biossíntese dos hormônios tireóideos, assim como a TPO, a Tg e o iodeto. Entretanto, apesar da relevância do H2O2 na biossíntese dos hormônios tireóideos, a NADPH oxidase foi apenas recentemente caracterizada em glândulas humanas (33,34). Ainda mais recentemente, o cDNA da porção flavoprotéica relacionada à atividade NADPH oxidase foi clonado em tireócitos porcinos e humanos, permitindo estudos futuros de expressão do mRNA para esta enzima em doenças tireoideanas e diversos modelos experimentais. Dois genes que codificam flavoproteínas possivelmente relacionados à atividade NADPH oxidase foram clonados (5,6) e correspondem a enzimas denominadas oxidases tireoideanas 1 e 2 (ThOx 1 e ThOx 2). As ThOx foram também denominadas dual oxidases (DuOx), pois apresentam um domínio ectoperoxidase na sua região extracelular (38,39) (figura 2).


A caracterização deste sistema enzimático contribuiu para o melhor entendimento dos vários aspectos da regulação da biossíntese hormonal tireóidea e para o estudo do seu possível papel em alguns casos de disfunção glandular. Foram previamente descritos casos de bócios dis-hormonogênicos com defeito de organificação do iodo (teste do perclorato positivo), nos quais a atividade TPO in vitro encontrava-se normal. Desta maneira, suspeitava-se que o defeito genético nestes bócios seria a deficiência na geração de peróxido de hidrogênio in vivo (40-42). Entretanto, como o sistema gerador de H2O2 não estava caracterizado em humanos, o estudo da possível alteração enzimática que seria a causa da dis-hormonogênese não pôde ser feito. Em 2001 (43), foi publicado um estudo pioneiro em uma família com dois irmãos afetados com bócio dis-hormonogênico, no qual se demonstrou pela primeira vez defeito na geração de peróxido de hidrogênio secundário à diminuição da atividade NADPH oxidase como a causa destes bócios. Posteriormente, após a clonagem do cDNA das ThOX 1 e 2, Moreno e cols. (44) descreveram as primeiras mutações no gene da NADPH oxidase, a ThOX 2.

O aumento do pool de iodo intratireóideo diminui o transporte de iodeto, a resposta da célula tireóidea ao TSH e a organificação do iodo. O excesso de iodeto intracelular também bloqueia a secreção hormonal e inibe a síntese da TPO (21). O bloqueio da organificação do iodo ocorre na presença de altas concentrações de iodo e corresponde ao efeito Wolff-Chaikoff (45). A diminuição da captação de iodeto e da resposta tireóidea ao TSH parecem ser dependentes da formação de um intermediário iodado, ou seja, da organificação prévia do iodo. Há evidências de que este intermediário iodado seja um derivado lipídico, entretanto, existem controvérsias na literatura. O iodolipídeo pode ser derivado de plasmalogênios, como o 2-iodohexadecanal que representa o iodolipídeo mais abundante na tireóide (46), ou do ácido aracdônico, como os iodoaracdonatos (47). Anteriormente, demonstrou-se que os iodoaldeídos inibem a geração de H2O2 na tireóide, e que a atividade NADPH oxidase é inibida pelo iodo-hexadecanal (48,49).

Como a organificação do iodo encontra-se bloqueada durante o efeito Wolff-Chaikoff, a regulação das atividades TPO e NADPH oxidase pelo iodo in vivo mereceu uma investigação mais cuidadosa. Cardoso e cols. (50,51) demonstraram que a atividade geradora de H2O2 pela NADPH oxidase encontrava-se inibida em pacientes com bócio difuso tóxico que receberam iodo no período pré-operatório. Todavia, nesses pacientes, a atividade TPO não estava inibida. Assim, a inibição da biossíntese hormonal provocada pelo aumento de iodo no tireócito é devida à inibição da geração de H2O2 e não da atividade TPO, como anteriormente sugerido (figura 3). Estudos em culturas primárias de tireócitos suínos corroboraram os achados em humanos, demonstrando, inequívocamente, que a atividade NADPH oxidase está bloqueada na presença de iodo em altas concentrações (52).


Portanto, os dados mais recentes da literatura indicam ser a ThOx a enzima bloqueada durante o efeito Wolff-Chaikoff, e não a TPO, conforme anteriormente sugerido na literatura.

Recebido em 05/11/03

Aceito em 20/11/03

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  • Endereço para correspondência

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Maio 2004
    • Data do Fascículo
      Fev 2004

    Histórico

    • Aceito
      20 Nov 2003
    • Recebido
      05 Nov 2003
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