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Tiróide, tireóide

CARTAS AO EDITOR

Tiróide, tireóide

Joffre M. de Rezende

Professor Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiânia, GO. Membro da Sociedade Brasileira e da Sociedade Internacional de História da Medicina

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Joffre Rezende Av. B, 435 - Setor Oeste Goiânia, GO E-mail: jmrezende@cultura.com.br

Sr. Editor:

LEMOS COM MAIOR INTERESSE o editorial publicado em Arq Bras Endocrinol Metabol, vol. 48, n. 1, fevereiro 2004, no qual se discute a polêmica questão de tiróide e tireóide. Há alguns anos interessamo-nos pela questão e procuramos analisar as razões da controvérsia do ponto de vista histórico e filológico, o que nos anima a dar nossa opinião sobre o assunto.

Na pesquisa que então realizamos, não encontramos nenhuma referência a Aristóteles nas fontes consultadas (1-4), nem qualquer menção à glândula na sua obra , traduzida em latim por Departibus animalium (5).

No século II d.C., Galeno descreveu a cartilagem que recobre a laringe, a que denominou (de , escudo, e , semelhante a), mas não a glândula. "Quando se afastam os músculos que vão da laringe ao esterno, vê-se claramente que aí há uma grande cartilagem cuja forma é semelhante à forma de um escudo na parte anterior" (6). Não há nos escritos de Galeno nenhuma referência à glândula tiróide (7).

Os gregos usavam mais de um tipo de escudo e a forma que inspirou Galeno na descrição da cartilagem é de um escudo longo denominado thyreós.

A palavra grega thyreós é bem antiga na língua grega e é encontrada na narrativa da Odyssea, de Homero, para nomear uma grossa laje de pedra quadrangular que o cíclope Polifemo usava como porta para impedir a entrada em seu esconderijo. Thyreós é um derivado de thyra, porta de casa, batente de porta. O plural de thyra, thyrai, designa uma porta de dois batentes, ou seja, com duas folhas. Para as portas das muralhas que cercavam as cidades, os gregos tinham outro nome – pylai (3,8).

Por metáfora, o escudo longo, cujo formato lembra o de uma porta, passou a ser chamado de thyreós. Skinner observa que este tipo de escudo recobria a frente do soldado, do pescoço aos tornozelos e, possivelmente, o nome que lhe foi dado, de thyreós, se deve ao primitivo costume de utilizar uma porta como escudo (4).

Embora Vesalius tenha dissecado e identificado a glândula, a denominação de glandula tiroide se deve a Warthon, que a redescreveu em 1646, em seu livro Adenographia. Aparentemente, assim a chamou por sua localização topográfica junto à cartilagem descrita por Galeno (ad latera cartilaginum thyroidis) e não pela sua forma. Na publicação original grafou thyroide e não thyreoide (4,9).

Vemos, portanto, que há uma estreita conexão entre thyreós, escudo, e thyra, porta. Certamente por esta razão, o Webster dictionary dá a seguinte etimologia para tiróide:

"Thyroid, from greek thyreoeides, shaped like a shield, from thyreós, shield shaped like a door (from thyra, door)" (10).

O dicionário da Real Academia Española é mais incisivo ao vincular o nome da glândula à thyra, porta:

"Tiroides – do gr. Thyroeides, semejante a una porta" (11).

Em latim, um dos primeiros registros se encontra no Lexicum Medicum, de Blancard, de 1718. Nele se lê: "Thyroidae glandulae sunt numero duae". "Thyroides est scutiformis cartilago larynges. Ex tireós, janua, scutum e eidos, forma" (12).

Vê-se que, mesmo derivando o nome da glândula do gr. thyreós, este autor adota em latim a forma thyro- (sem o e).

Os dicionários da língua portuguesa do século XIX (Constâncio, 1845; Faria, 1856; Lacerda, 1874; Domingos Vieira, 1874; Caldas-Aulete, 1881) averbam thyroide, thyroideo, thyroidea, tanto para a glândula como para a cartilagem, embora derivem a raiz thyro- do gr. thyreós, escudo. Faz exceção o dicionário de Caldas-Aulete que deriva thyro- do gr. thyra, porta, tanto para a cartilagem como para a glândula.

A partir do léxico de Cândido de Figueiredo, de 1899, começa a prosperar a forma thyreo, simplificada posteriormente para tireo- em razão da reforma ortográfica.

Talvez por influência do dicionário de Littré, que teve grande difusão em vários países, inclusive o Brasil, e várias edições (13), os médicos brasileiros passaram a adotar a forma tíreo-

Ramiz Galvão, em 1909, em seu Vocabulário etimológico averba Thyreoide e assinala: "Os livros e os léxicos antigos davam thyroide; mas já Littré advertiu com acerto que isso se deve corrigir" (14).

A lição de Littré e seus seguidores teve maior repercussão em nosso país do que na própria França. Bloch e Wartburg, que atribuem a forma thyroide a um erro de transcrição, declaram em seu Dictionnaire etymologique de la langue française: "Littré a éssayé mais vainement de rectifier le mot fr. en thyreoide" (15).

No Brasil, ao contrário, a forma tireo- encontrou muitos adeptos, dentre os quais cumpre destacar, por seus conhecimentos lingüísticos, além de Ramiz Galvão, Pedro Pinto e Mangabeira-Albernaz.

São de Pedro Pinto as seguintes palavras: "Foi usual a forma errada tiróide, hoje mais ou menos em abandono" (16). E Mangabeira-Albernaz interroga: "Por que haveremos de dizer tiróide, vocábulo errado, sòmente porque o fazem franceses, ingleses e espanhois?" (17).

Desde então, as duas formas passaram a conviver lado a lado, constituindo fonte de interminável controvérsia. Os dicionários modernos, como o Aurélio, 3ª edição, e o Houaiss, registram ambas as formas, porém, com preferência para tireóide.

A Nomina Anatomica, que é redigida em latim e tem validade internacional, nas suas primeiras edições usou a raiz thyreo-. A partir da edição de 1960 (Nomina de Nova York) (9) mudou para thyro-, que foi mantida até a edição mais recente, publicada em 1998 com o título de Terminologia Anatomica (18).

Apesar disso, na tradução oficial para a língua portuguesa, a raiz thyro- foi mudada para tireo- pela Comissão de Terminologia da Sociedade Brasileira de Anatomia (19).

Em face de quanto foi exposto neste comentário, parece-nos que se pode defender, do ponto de vista histórico-filológico, ambas as formas, considerando o vínculo existente entre thyreós, escudo, e thyra, porta.

Em outros idiomas (inglês, francês, espanhol, italiano) prevalece a raiz thyro-. Em alemão, em que a glândula tiróide é chamada schilddrüse, de schild, escudo, e drüse, glândula, usa-se de preferência thyreo-. Contudo, modernamente já se emprega a raiz thyro- para designar a própria glândula (Thyroidea) e em alguns cognatos como thyroxin, thyronin, thyrogen, thyroidektomie, thyroideus (20).

Seria desejável a opção por thyro- também em português, em benefício da uniformidade internacional da terminologia científica.

REFERÊNCIAS

1. Bailly A. Dictionnaire grec-français. 16. ed. Paris, Lib. Hachette, 1950.

2. Liddell HG, Scott R. A greek-english lexicon. 9.ed., Oxford, Claredon Press, 1983.

3. Marcovecchio E. Dizionario etimologico storico dei termini medici. Firenze, Ed. Festina Lente, 1993.

4. Skinner HA. The origin of medical terms. 2.ed. Baltimore, Williams & Wilkins, 1961. p.404.

5. Aristóteles. Parts of animals. The Loeb Classical Library. Cambridge, Harvard Univ. Press, 1983.

6. Galeno C. Procedimenti anatomici. (Trad. italiana por Garofalo, I.). Libro XI.1, Milano, Biblioteca Universale Rizzoli, 1991. p.905.

7. Durling RJ. A dictionary of medical terms in Galen. Leiden, E.J.Brill, 1993. p.181.

8. Chantraine P. Dictionnaire étymologique de la languegrecque. Histoire des mots. Paris, Ed. Klincksieck, 1984. p.446.

9. Becker I. Nomenclatura biomédica no idioma português do Brasil. São Paulo, Liv. Nobel, 1968. p.314-29.

10. Webster's Third New International Dictionary. Chicago, Enciclopedia Britanica Inc., 1966.

11. Real Academia Española. Diccionario de la lengua española. 19.ed. Madrid, 1970.

12. Blancard S. Lexicon medicum graeco-latino-germanicum. 5.ed., Hallae Magdeburgicae, 1718. p.321.

13. Littré E. Dictionnaire de médecine, de chirurgie, de pharmacie et l'art vétérinaire et des sciences qui s'y rapportent. 18. ed. Paris, Librarie J.-B. Baillière et Fils, 1898.

14. Galvão BFR. Vocabulário etymologico, ortographico e prosodico das palavras portuguesas derivadas da língua grega. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves, 1909.

15. Bloch O, Von Wartburg W. Dictionnaire étymologique de la langue française. 7.ed. Paris, Presses Universitaires de France, 1986.

16. Pinto PA. Dicionário de termos médicos. 2.ed. Rio de Janeiro, 1938.

17. Mangabeira-Albernaz P. Questões de linguagem médica. Rio de Janeiro, Liv. Atheneu, 1944. p.9-20

18. Federative Committee on Anatomical Terminology. Terminologia anatomica. Stuttgart, Georg Thieme Verlag, 1998. p.74.

19. Sociedade Brasileira de Anatomia. Terminologia anatômica. São Paulo, Ed. Manole Ltda., 2001. p.90.

20. Zatkin M, Schaldach H. Wörterbuch der Medizin. Berlin, Ullstein Mosby, 1992.

  • Endereço para correspondência

    Joffre Rezende
    Av. B, 435 - Setor Oeste
    Goiânia, GO
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Ago 2004
    • Data do Fascículo
      Jun 2004
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