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Ainda em busca do ensaio ideal para a tiroglobulina sérica no seguimento de pacientes com câncer diferenciado da tiróide

EDITORIAL

Ainda em busca do ensaio ideal para a tiroglobulina sérica no seguimento de pacientes com câncer diferenciado da tiróide

Rui M.B. Maciel

Professor Titular, Disciplina de Endocrinologia, Departamento de Medicina, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo. Diretor Médico, Fleury - Centro de Medicina Diagnóstica

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Rui M.B. Maciel Laboratório de Endocrinologia Molecular Disciplina de Endocrinologia, Departamento de Medicina Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo Rua Pedro de Toledo 781, 12º. Andar 04039-032 São Paulo, SP E-mail: rmbmaciel-endo@pesquisa.epm.br

ESTE NÚMERO DOS ARQUIVOS APRESENTA dois artigos da Clínica de Endocrinologia e Metabologia da Santa Casa de Belo Horizonte, com grande casuística clínica, que revisitam e atualizam temas do dia a dia do seguimento de pacientes com câncer diferenciado de tiróide, ou seja, a utilidade da dosagem sérica da tiroglobulina (sTg) como índice de recorrência ou persistência da moléstia (1) e a interferência sofrida pela determinação da sTg na presença de anticorpos endógenos anti-tiroglobulina (Ac-ATg) (2).

No primeiro deles, Rosário e colaboradores (1) apresentam sua experiência com o uso da sTg no seguimento de pacientes com carcinoma diferenciado da tiróide tratados com tiroidectomia total e ablação com radioiodo e confirmam os achados que a literatura vem demonstrando há cerca de 30 anos, isto é, que a determinação da sTg, quando se utiliza teste com boa sensibilidade analítica, é excelente marcador tumoral do câncer diferenciado da tiróide (3-10). Em seu estudo, Rosário e cols. (1), analisando 207 pacientes com Ac-ATg negativos e em hipotiroidismo, evidenciaram que o valor da sTg de 1 ng/mL discriminou os pacientes com e sem doença aparente, apresentando sensibilidade de 100% para metástases distantes e de 88,2% para doença em leito tiroidiano ou linfonodos e especificidade de 88,8% para metástases de qualquer natureza e 74,8% para metástases distantes; apesar da elevada sensibilidade, 2,8% dos pacientes com sTg <1 ng/mL apresentaram metástases cervicais, o que levou os autores a propor no seguimento a necessidade da realização da ultra-sonografia cervical na avaliação desses pacientes, tática que também vem sendo postulada por diversos grupos nos últimos anos (11-15).

É importante ressaltar que Rosário e cols. seguiram as recomendações analíticas para um ensaio adequado de sTg, ou seja, boa sensibilidade funcional (0,8 ng/mL), variação inter e intra-ensaio aceitável (menos de 10% em todas as faixas da curva) e exclusão de pacientes com Ac-ATg (10,16,17); faltou, apenas, do ponto de vista analítico, a menção ao cuidado com a exclusão do efeito "gancho", observado em ensaios imunométricos sensíveis, quando se obtém valores inapropriadamente baixos em pacientes com concentrações de sTg elevadas e que é facilmente bloqueável com a realização do ensaio em duas etapas (17).

Teria sido interessante que Rosário e cols. obtivessem nesse estudo os valores de sTg na vigência da medicação com T4 (com TSH suprimido), assim como observassem a evolução dos valores individuais de sTg nos pacientes em seguimento mais prolongado, o que nos proporcionaria a oportunidade de cotejamento com grandes séries recentes da literatura (18-21). É sabido que a sensibilidade da sTg aumenta com TSH elevado, mas esse incremento é, na maioria das vezes, ocasionado pela secreção de Tg de tecido normal eventualmente presente no leito tiroidiano quando estimulado pela TSH, fato que diminui a especificidade da sTg como marcador tumoral e que leva os pacientes a investigações diagnósticas inúteis e até deletérias, tendo em vista que a exposição repetida a valores altos de TSH pode promover a estimulação de tecido tumoral ou sua desdiferenciação. Desta forma, insistimos que teria sido muito interessante, nessa casuística grande e que utilizou método com boa qualidade analítica, a "revisitação" dos valores de sTg na vigência de T4, tendo em vista a praticidade desse último enfoque. É que acreditamos que, no futuro, à medida que os testes para sTg tornem-se mais sensíveis, será possível que o aumento dos valores de sTg no seguimento dos pacientes durante a terapia com T4 possa ser equivalente ou até superior à obtida com o estímulo com TSH (22), de modo semelhante ao que observamos hoje com a dosagem de TSH de alta sensibilidade, que substituiu com vantagens as determinações de TSH após TRH (hormônio liberador da tirotrofina). Em adição, a informação referente ao laudo evolutivo dos valores de sTg também teria sido muito importante; vários trabalhos recentes indicam que o aumento de sTg nessas circunstâncias é a medida que fornece o melhor valor preditivo positivo no seguimento desses pacientes (19,21).

Em seu segundo estudo publicado neste número dos Arquivos, Rosário e cols. (2) evidenciaram que a medida de sTg é influenciada pela presença de Ac-ATg, de modo semelhante a diversos trabalhos anteriores (23-26). Além disso, comprovaram também, que essa interferência pode acontecer não apenas com títulos altos de Ac-ATg, mas também com títulos baixos e que o teste de recuperação não exclui a interferência (10,17,23-26). Finalmente, em consonância com trabalhos de Spencer, mostraram que o radioimunoensaio de sTg sofre menos interferência dos Ac-ATg do que o ensaio imunométrico (10,25).

A magnitude e a direção (desvios para mais ou para menos) da interferência dos Ac-ATg na mensuração da sTg depende da afinidade e da capacidade dos anticorpos endógenos anti-Tg e do tipo de ensaio utilizado; habitualmente, quando empregamos ensaios imunométricos, subestimamos a quantidade de Tg, ao passo que os radioimunoensaios causam desvios para cima ou para baixo, na dependência dos reagentes empregados (28). Considera-se que a medida da sTg por radioimunoensaio sofre menos interferência dos Ac-ATg, mas não está livre da mesma; além disso, é importante observar que o uso de radioimunoensaios não é prático, tendo em vista a necessidade de cuidados com a radioatividade e que emprego dos ensaios imunométricos sem reagentes radioativos facilitou muito a sua rotina dos laboratórios nos últimos anos.

Desta forma, Rosário e cols. (1,2) confirmam, em nosso meio, que a interferência com Ac-ATg é o problema técnico mais importante no uso da sTg como marcador tumoral para os pacientes com carcinoma diferenciado da tiróide, o que pode prejudicar a avaliação em até 25% dos pacientes (10,25,27). Além disso, essa interferência também acontece na análise de sTg após o emprego do TSH recombinante e em ensaios mais sensíveis (16,22). Nessas circunstâncias, desde que se eliminem alguns problemas metodológicos que têm dificultado sua implementação, a determinação do RNA mensageiro da tiroglobulina poderia ser uma solução (29-31).

REFERÊNCIAS

1. Rosário PWS, Cardoso LD, Fagundes TA, Barroso AL, Padrão EL, Rezende LL, et al. Revisitando a tiroglobulina sérica no seguimento de pacientes com carcinoma diferenciado de tiróide. Arq Bras Endocrinol Metab 2004;48/4:480-6.

2. Rosário PWS, Maia FFR, Fagundes TA, Vasconcelos FP, Cardoso LD, Purisch S. Antithyroglobulin antibodies in patients with differentiated thyroid carcinoma: methods of detection, interference with serum thyroglobulin measurement and clinical significance. Arq Bras Endocrinol Metab 2004;48/4:487-92.

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5. Maciel RMB. Desenvolvimento de um método radioimunológico para a dosagem de tiroglobulina sérica e sua aplicação no seguimento de pacientes portadores de câncer diferenciado da tiróide. Escola Paulista de Medicina - Universidade Federal de São Paulo (Tese de Doutorado). 1983. 134 pgs.

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7. Maciel RMB, Vieira JGH, Fonseca RMG, Russo EMK, Oliveira MAD, Rocca A. Desenvolvimento de um método radioimunológico para a dosagem de tiroglobulina sérica. Arq Bras Endocrinol Metab 1986;30:31-9.

8. Maciel RMB, Segreto C, Buchala C, da Rosa JC, Romão LA, Aoyama EM, et al. Aplicação da dosagem da tiroglobulina sérica no seguimento de pacientes portadores de câncer diferenciado da tiróide. Arq Bras Endocrinol Metab 1986;30:60-3.

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  • Endereço para correspondência

    Rui M.B. Maciel
    Laboratório de Endocrinologia Molecular
    Disciplina de Endocrinologia, Departamento de Medicina
    Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo
    Rua Pedro de Toledo 781, 12º. Andar
    04039-032 São Paulo, SP
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Mar 2005
    • Data do Fascículo
      Ago 2004
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