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Paralisia periódica hipocalêmica tireotóxica: relato de 3 casos

Hypocalemic periodic paralysis: report of 3 cases

Resumos

Paralisia Periódica Hipocalêmica Tireotóxica (PPHT) é uma complicação rara do hipertireoidismo, mais freqüente em orientais que brancos. Apresentamos três pacientes do sexo masculino, brasileiros, cujas idades eram de 28 anos (caso 1), 29 anos (caso 2) e 60 anos (caso 3) com diagnóstico de PPHT. Foram admitidos com tetraparesia das extremidades, tendo o caso 1 relatado crises recorrentes de paralisia e os casos 2 e 3, apenas um episódio. No caso 1, estavam presentes sinais e sintomas de hipertireoidismo como emagrecimento, sudorese, tremor de extremidades, palpitação e bócio difuso discreto, enquanto no caso 2 manifestou-se apenas oftalmopatia, e o terceiro paciente referia diagnóstico de fibrilação atrial pregressa sem avaliação da função tireoidiana. Exames laboratoriais mostraram hipocalemia, TSH suprimido e T4 livre elevado em todos os pacientes. Foram tratados com potássio intravenoso, propranolol e tiamazol via oral, com remissão dos sintomas. O relato dos casos destaca a freqüente dificuldade diagnóstica desta enfermidade que apresenta evolução favorável quando diagnosticada e tratada adequadamente.

Paralisia; Hipocalemia; Hipertiroidismo


Thyrotoxic hypokalemic periodic paralysis (THPP) is a rare hyperthyroidism complication much more frequent in Asians and Caucasians. We present 3 cases of THPP occurring in Brazilian male patients with 28 years old (y) (Case 1), 29 y (Case 2) and 60 y (Case 3), respectively. They were admitted following an episode of flacid paralysis of extremities. Whereas case 1 reported recurring episodes of paralysis crises, cases 2 and 3 reported only one episode. Signs and symptoms of thyrotoxicosis, such as weigh loss, diaphoresis, extremities tremor, palpitation and mild diffuse goiter were present in the first case; while the second case only presented ophthalmopathy and the third patient referred that 2 years before his admission he presented an episode of cardiac arrhythmia but did not have thyroid function evaluation at that time. Their laboratory findings were hypokalemia, low TSH and raised free T4. They were treated with intravenous potassium, oral propranolol and tiamazol with remission of the symptoms. We report these cases to emphasize the importance of recognizing hyperthyroid periodic paralyses to avoid missing a treatable and curable condition.

Paralysis; Hipokalemia; Hyperthyroidism


APRESENTAÇÃO DE CASOS

Paralisia periódica hipocalêmica tireotóxica: relato de 3 casos

Hypocalemic periodic paralysis: report of 3 cases

José Côdo Albino Dias; Betânia Silva de Moura; Érika Figueiredo Gomes; Guilherme Borim Mirachi; Otto Metzger Filho; Cristina Borim Côdo Dias

Serviço de Endocrinologia e Metabologia do Hospital Belo Horizonte, Belo Horizonte, MG

Endereço para correspondência Endereço para correspondência José Côdo Albino Dias Clínica de Endocrinologia e Metabologia Hospital Belo Horizonte Av. Antônio Carlos 1694, sala 17 31210-000 Belo Horizonte, MG

RESUMO

Paralisia Periódica Hipocalêmica Tireotóxica (PPHT) é uma complicação rara do hipertireoidismo, mais freqüente em orientais que brancos. Apresentamos três pacientes do sexo masculino, brasileiros, cujas idades eram de 28 anos (caso 1), 29 anos (caso 2) e 60 anos (caso 3) com diagnóstico de PPHT. Foram admitidos com tetraparesia das extremidades, tendo o caso 1 relatado crises recorrentes de paralisia e os casos 2 e 3, apenas um episódio. No caso 1, estavam presentes sinais e sintomas de hipertireoidismo como emagrecimento, sudorese, tremor de extremidades, palpitação e bócio difuso discreto, enquanto no caso 2 manifestou-se apenas oftalmopatia, e o terceiro paciente referia diagnóstico de fibrilação atrial pregressa sem avaliação da função tireoidiana. Exames laboratoriais mostraram hipocalemia, TSH suprimido e T4 livre elevado em todos os pacientes. Foram tratados com potássio intravenoso, propranolol e tiamazol via oral, com remissão dos sintomas. O relato dos casos destaca a freqüente dificuldade diagnóstica desta enfermidade que apresenta evolução favorável quando diagnosticada e tratada adequadamente.

Descritores: Paralisia; Hipocalemia; Hipertiroidismo

ABSTRACT

Thyrotoxic hypokalemic periodic paralysis (THPP) is a rare hyperthyroidism complication much more frequent in Asians and Caucasians. We present 3 cases of THPP occurring in Brazilian male patients with 28 years old (y) (Case 1), 29 y (Case 2) and 60 y (Case 3), respectively. They were admitted following an episode of flacid paralysis of extremities. Whereas case 1 reported recurring episodes of paralysis crises, cases 2 and 3 reported only one episode. Signs and symptoms of thyrotoxicosis, such as weigh loss, diaphoresis, extremities tremor, palpitation and mild diffuse goiter were present in the first case; while the second case only presented ophthalmopathy and the third patient referred that 2 years before his admission he presented an episode of cardiac arrhythmia but did not have thyroid function evaluation at that time. Their laboratory findings were hypokalemia, low TSH and raised free T4. They were treated with intravenous potassium, oral propranolol and tiamazol with remission of the symptoms. We report these cases to emphasize the importance of recognizing hyperthyroid periodic paralyses to avoid missing a treatable and curable condition.

Keywords: Paralysis; Hipokalemia; Hyperthyroidism

A PARALISIA PERIÓDICA HIPOCALÊMICA tireotóxica (PPHT) é uma complicação usualmente debilitante que pode gerar risco de vida relacionada ao hipertireoidismo clínico ou subclínico, geralmente descrita em pacientes asiáticos, sendo bastante incomum em brancos e negros, acometendo o sexo masculino entre os 20 e 40 anos de idade. É caracterizada por episódios autolimitados e recorrentes de paralisia muscular associados a hipocalemia. Apresentamos três casos de pacientes com PPHT internados no Hospital Belo Horizonte em julho de 2001, abril e setembro de 2002 com posterior acompanhamento ambulatorial.

Caso 1

Paciente com 28 anos, sexo masculino, militar, hígido até julho de 2000 quando acordou no meio da noite com dificuldade de mobilização dos braços e pernas. Procurou serviço médico imediatamente onde foi diagnosticada hipocalemia intensa e foi tratado com potássio intravenoso por três dias. Começou a apresentar crises periódicas de paralisia de intensidade variável acometendo membros inferiores mais freqüentemente que superiores, necessitando de duas internações para a reposição de potássio. O primeiro episódio teve como possível fator desencadeante um estresse emocional intenso. O tratamento ambulatorial realizado consistiu na administração oral de cloreto de potássio na tentativa de prevenir as crises de paralisia e houve discreta melhora na freqüência e intensidade das mesmas. Após um ano de acompanhamento, começou a apresentar quadro de sudorese intensa, taquicardia, palpitações, tremores de extremidades, diarréia e emagrecimento. Foi atendido no Pronto Socorro do Hospital Belo Horizonte em setembro de 2001 queixando-se de fraqueza muscular intensa sem conseguir deambular. A única medicação em uso era o cloreto de potássio. Ao exame físico estava afebril com função cognitiva normal, pares cranianos sem alterações, sensibilidade preservada e diminuição da força muscular nos membros superiores e inferiores. A pressão arterial era de 120 x 80mmHg e a freqüência cardíaca de 84bpm com ausculta cardíaca sem sopros ou bulhas extras. Não apresentava nenhum sinal ou sintoma de hipertireoidismo. Dados laboratoriais de interesse mostraram potássio sérico de 2,1mEq/L (VR: 3,5 a 5,5) e fósforo de 2,1mg/dL (VR: 2,5 a 4,8) com creatinafosfoquinase e cálcio normais. Foi realizada reposição intravenosa de potássio e, durante a internação de seis dias, o paciente apresentou vários episódios de fraqueza muscular. A avaliação clínica mostrou taquicardia freqüente, sem demais alterações ao ECG e, ao exame da tireóide, um bócio difuso discreto. O TSH mensurado foi 0,1mU/ml (VR: 0,28 a 6,82), T4 livre 5,5ng/dl (VR: 0,8 a 2,2) e TRAb de 49% (VR: < 10%). Recebeu alta hospitalar em uso de propranolol 80mg/dia, cloreto de potássio 1800mg (24mEq/dia) e tiamazol 60mg/dia. Usou citrato de potássio devido à perda urinária de potássio durante a internação, que a princípio foi relacionada a acidose tubular renal e posteriormente descartada em propedêutica ambulatorial. O paciente apresentou melhora significativa na intensidade e freqüência das crises de paralisia, tendo procurado o serviço de urgência um mês depois devido a tetraplegia, sendo então tratado com potássio intravenoso. Em abril de 2002 apresentava-se absolutamente assintomático há seis meses utilizando apenas tiamazol caracterizando o diagnóstico de PPHT.

Caso 2

Paciente com 29 anos, sexo masculino, militar, brasileiro sem descendência asiática foi levado ao Pronto Socorro do Hospital Belo Horizonte em março de 2002 pela manhã sem conseguir deambular, queixando paralisia nas pernas e braços. Relata ter acordado no meio da noite havia dois dias com as "pernas pesadas" sem conseguir movimentá-las e com o retorno da força muscular em poucos minutos. Na manhã seguinte, a paralisia inicialmente nos membros inferiores passou a acometer os braços em episódios periódicos com duração de poucos minutos e melhora espontânea. A freqüência e a intensidade das crises de fraqueza muscular foram aumentando gradativamente durante 48 horas até tetraplegia, quando procurou auxílio médico. Apresentava emagrecimento, sudorese e intolerância ao calor nos últimos três meses. Negou doenças prévias, uso de medicamentos ou álcool nas últimas semanas. Não referia familiares com hipertireoidismo ou paralisia periódica. Ao exame físico estava agitado com função cognitiva normal. Edema periorbital bilateral associado à proptose e discreta limitação nos movimentos oculares eram bem evidentes. Tireóide palpável e sem alterações. A diminuição da força muscular era intensa e mais evidente nos membros inferiores que superiores, sensibilidade preservada e reflexos profundos diminuídos. O restante do exame físico encontrava-se normal. Propedêutica laboratorial revelou hipocalemia severa (2,0mEq/L), TSH de 0,01mU/ml (VR: 0,28 a 6,82) e T4 total de 20,1mg/dL (VR: 5 a 12,5). Foi tratado com cloreto de potássio intravenoso durante a internação e ambulatorialmente por via oral durante 30 dias. A normalização clínica e laboratorial da função tireoidiana foi atingida com tiamazol na dosagem de 30mg/dia. O paciente não apresentou nenhum episódio de paralisia nos cinco meses seguintes com melhora total dos sintomas tirerotóxicos e parcial da oftalmopatia, caracterizando o diagnóstico PPHT secundária à Doença de Graves.

Caso 3

Paciente com 60 anos, sexo masculino, comerciante, casado, leucoderma, admitido no pronto-socorro do hospital Belo Horizonte com quadro de parestesia e paresia em membros inferiores. Internado para realizar a propedêutica, evoluiu com piora do quadro sem conseguir deambular, com queixa de "fraqueza intensa". Apresentava um quadro de extrema ansiedade sem outros sintomas e história anterior de há dois anos ter sido diagnosticada uma fibrilação atrial (sic) sem avaliação da função tireoidiana. Não estava em uso de antiarrítmico. Hipertenso há 20 anos e em uso de 20mg de maleato de enalapril. Irmã hipotireoidiana em uso de 100mcg de levotiroxina.

Ao exame clínico, tireóide aumentada difusamente, consistência firme-elástica, móvel, indolor. As bulhas cardíacas apresentavam-se normorrítmicas, normofonéticas, PA de 170/110mmHg, e freqüência cardíaca de 100bpm. Ao ser atendido no pronto socorro, o potássio estava, inicialmente, em 2mEq/l, e quando da internação em 2,2 e 3mEq/l. O TSH mostrou 0,01mU/ml (0,3-5,0), T4 livre 2,81mg/dl (0,75-1,80) e TRAb 80% (inibição > 10% é considerado positivo). A captação do I131 6a hora 47%, 24a hora 68%, mostrou-se homogênea e a massa estimada em 63g. Foi medicado com propranolol 80mg/dia, tiamazol 40mg/dia e KCl com reversão do quadro.

DISCUSSÃO

Relatos de pacientes com paralisia periódica (PP) são encontrados na literatura, especialmente a partir de 1930. Provavelmente, o primeiro caso de PP documentado foi na Inglaterra em 1727 com diagnóstico provável de histeria (1). Em 1882, um paciente inglês apresentou episódios de paralisia durante 25 anos e seu pai, que tinha um quadro clínico semelhante, faleceu aos 54 anos (2). A associação de PP ao hipertireoidismo foi realizada pela primeira vez por Rosenfeld na Alemanha em 1902 (3) e, na língua inglesa, o primeiro relato foi feito por Dunlap e Kepler em 1931 (4). Por volta de 1957, trinta casos de paralisia periódica associada ao hipertireoidismo tinham sido descritos na literatura inglesa e norte americana e 70 casos na japonesa (5). A distribuição geográfica da doença é característica, pois mais de 90% dos casos relatados de PPHT são de asiáticos, sobretudo japoneses e chineses (7). Casos esporádicos são descritos no ocidente, podendo estar relacionados à descendência oriental (5,8-10). Na literatura norte-americana, foram descritos 96 pacientes com PPHT até o ano de 1992, dos quais 40% moravam no Havaí (provavelmente relacionado à alta prevalência de japoneses neste estado). No restante da amostra de casos de PPHT, 45% eram brancos, 24% asiáticos, 15,5% hispânicos, 7% negros, 7% índios e 1% de outras etnias (8). Nos pacientes com hipertireoidismo, a prevalência de PPHT varia de acordo com a população estudada, sendo aproximadamente 1,9% no Japão (5) e 1,8% na China (11,12). Já nos Estados Unidos da América, a prevalência é bem menor, variando de 0,1% a 0,2% dos hipertireoidianos (9). No Brasil, a prevalência da PPHT é desconhecida, com quatorze casos estudados no estado de São Paulo sob o ponto de vista genético (13). Há uma nítida predominância no sexo masculino em relação ao feminino com proporções de 17:1 a 20:1 no Japão (5,14,15), 33:1 a 48:1 nos EUA (8) e 76:1 no sul da China (12). A distribuição de acordo com a idade é bem típica, pois 79% dos pacientes norte-americanos (8) e 85% dos japoneses (5) com PPHT têm idade entre 20 e 39 anos quando feito o diagnóstico.

O quadro clínico típico da PPHT caracteriza-se pela recorrência de episódios súbitos de paralisia flácida nos membros inferiores, podendo simultaneamente acometer os superiores. As crises de fraqueza muscular variam de leve intensidade a tetraplegia com duração de poucos minutos a dias. A musculatura proximal é afetada mais intensamente que a distal e há simetria entre os grupos musculares acometidos, podendo haver assimetria especialmente quando músculos específicos foram submetidos a exercício físico intenso (9). Os músculos responsáveis pela respiração, fonação, movimentos oculares e faciais são raramente envolvidos. Há um caso relatado de paralisia periódica de neurônio motor superior que foi resolvido com o tratamento do hipertireoidismo (16). Os reflexos tendinosos profundos ficam abolidos ou diminuídos na maioria das vezes. Outras características marcantes são a sensibilidade preservada e pares cranianos com função normal. Apresentam atividade cognitiva inalterada, exceto quando há alterações secundárias à tireotoxicose (coma, confusão ou psicose). Raramente apresentam sintomas prodrômicos como cãimbras, dor ou rigidez muscular (9,17).

A avaliação laboratorial da PPHT revela TSH diminuído e hipocalemia (média de 1,9mEq/l) em todos os pacientes (18). Não há perda de potássio urinário, pois esta é resultado do influxo de íons para dentro do compartimento intracelular e não pela perda renal, já que a quantidade total de potássio do organismo fica inalterada (19). Hipofosfatemia está presente em 80% dos casos de PPHT agravando a fraqueza muscular, tendo seus valores normalizados com o controle do hipertireoidismo (18). O cálcio sérico é normal, a creatinafosfoquinase pode estar elevada pela própria miopatia tireotóxica, assim como a fosfatase alcalina, podendo haver hipomagnesemia em alguns casos (18). Alterações no ECG, como arritmias cardíacas secundárias ao hipertireoidismo e à hipocalemia, podem ser observadas em pacientes com PPHT. As mais freqüentes são taquicardia sinusal, alterações difusas do segmento ST, achatamento da onda T, prolongamento do intervalo QT e ondas U (18). Outras alterações descritas são bloqueio atrioventricular, aumento do tempo do QRS e fibrilação ventricular (10,13,18,20).

Alguns estímulos podem ser considerados possíveis fatores desencadeantes de paralisia. Os principais são alimentação rica em carboidratos e exercício físico rigoroso seguido de sono prolongado. Outros fatores discutidos são estresse emocional, ingestão aguda de álcool, exposição ao frio, infecções, período menstrual e traumatismo (21). O aumento nos níveis circulantes dos hormônios tireoidianos, independente da sua etiologia, é capaz de desencadear a PPHT. A Doença de Graves é o diagnóstico mais comum, mas já foram documentados adenoma tóxico (9), bócio nodular tóxico (22), tireoidite linfocítica (15), efeito Jodbasedow (8) ou tireotoxicose via exógena (23). Independente da causa inicial, caso o tratamento seja inadequado ou descontinuado e o paciente voltar a apresentar elevação dos hormônios tireoidianos, os sintomas típicos da paralisia periódica reaparecem e tendem a desaparecer novamente ao atingir o estado eutireoidiano, sem relação ao período assintomático (24). Não há correlação entre a intensidade dos sinais e sintomas do hipertireoidismo com os ataques de paralisia. Na maioria dos casos relatados em asiáticos, a tireotoxicose é bem evidente clínicamente quando o doente procura o serviço de urgência. Na população chinesa, 80% dos pacientes apresentam sinais e sintomas típicos do excesso de hormônios tireoideanos entre três meses e 9 anos que precedem o primeiro episódio de paralisia (13). Dados semelhantes no Japão mostram que apenas 17% dos pacientes desenvolvem o hipertireoidismo clínicamente evidente após uma crise de paralisia (5). Entretanto, esses dados são obtidos, em sua maioria, de estudos retrospectivos que podem ter subestimado os casos com evidência apenas laboratorial no momento da primeira crise de fraqueza muscular (25). Os ataques de paralisia ocorrem preferencialmente à noite ou no começo da manhã em 74,5% a 84% dos casos (18,25-27).

O equilíbrio do potássio depende de fatores externos como a ingestão, absorção e secreção intestinal e renal, além de mecanismos internos que mantêm a distribuição desigual deste cátion nos compartimentos corpóreos. A predominância do potássio no meio intracelular é fundamentalmente controlada pelo gradiente elétrico transmembrana e pela condutância (permeabilidade da membrana ao potássio), embora haja influência de diversos outros fatores. Nos distúrbios da regulação interna, alterações nos mecanismos reguladores da bomba Na+K+ATPase e dos canais iônicos modificam o gradiente elétrico transmembrana e a condutância, caracterizando a base fisiopatológica desta alteração (28). Independente da etiologia da tireotoxicose, há um aumento da atividade e do número de bombas Na+K+ATPase nas células musculares e leucócitos (5,10,19). A análise de pacientes com diagnóstico de PPHT mostrou que, neste grupo, a atividade desta bomba é 80% maior comparada a indivíduos com hipertireoidismo e sem paralisia, resultando em maior influxo de potássio para o meio intracelular. Uma possível explicação para a diferença relatada seria uma predisposição gênica para o desenvolvimento de PPHT (19).

Os fatores predisponentes para PPHT, como alimentação rica em carboidratos, exercício físico intenso e estresse emocional, também podem ser em parte compreendidos pela análise desta homeostase. O aumento da insulina após grande ingestão de carboidratos facilita a entrada de potássio para o meio intracelular através da ativação do antitransporte Na+H+ na membrana, levando à alcalinização intracelular e conseqüente estimulação da bomba Na+K+ATPase (29,30). Após atividades físicas intensas e estresse emocional há maior quantidade de catecolaminas circulantes que, ao atuarem nos receptores adrenérgicos b2, estimulam a bomba via AMPc.

A maior prevalência de PPHT em grupos populacionais específicos, sobretudo em asiáticos, estimulou a busca por marcadores genéticos através de vários estudos. A pesquisa de determinantes imunogenéticos determinou maior prevalência de antígenos HLA DRw8 em pacientes com PPHT ao comparar com indivíduos normais e pacientes com hipertireoidismo sem paralisia (30). Mutações em genes que transcrevem canais iônicos voltagem-dependentes, como canais de sódio, cálcio e potássio, foram descritas na paralisia periódica hipocalêmica familiar (PPHF), entidade clínica muito semelhante à PPHT (13,30-34). Em pacientes com PPHF, na sub-unidade a1 dos canais de cálcio foram identificadas três mutações (R528H, R1239H, R1239G) no quarto segmento transmembrana voltagem-dependente, entretanto a pesquisa das mesmas mutações foi negativa em pacientes com PPHT. Polimorfismos de nucleotídeos adjacentes às regiões das mutações anteriormente descritas foram relatados em pacientes com PPHT, evidenciando um possível marcador gênico novo nesta doença (13).

O principal diagnóstico diferencial deve ser feito com a paralisia periódica hipocalêmica familiar, entidade que se apresenta clínica e laboratorialmente de forma semelhante à tireotóxica. Na PPHF e na PPHT, as características da paralisia são as mesmas, assim como os fatores desencadeantes e o grau de hipocalemia. Além da ausência de sintomas tireotóxicos, a forma familiar apresenta padrão de transmissão autossômico dominante, acometimento predominante no sexo masculino de forma menos marcante (3:1), pico de incidência coincidente com a puberdade e não há resposta terapêutica aos agentes beta-bloqueadores, fatores que a diferenciam da forma tireotóxica (13). Entre as diversas causas de fraqueza muscular aguda que devem ser consideradas como diagnóstico diferencial, podemos citar as alterações hidroeletrolíticas, distúrbios do sistema nervoso central, miastenia gravis, distrofia muscular, síndrome de Guillain Barré, acidose tubular renal, síndrome de Bartter, distúrbios psíquicos entre outros.

O tratamento definitivo da PPHT baseia-se na correção do hipertireoidismo. Apesar de não existirem estudos comparativos quanto ao método de tratamento, a conduta mais freqüente na literatura é o controle rápido da tireotoxicose com tiamazol ou propiltiouracil associado ao propranolol e seguido pela terapia com iodo radioativo. Após atingir o estado eutireoidiano clínico e laboratorial, um período de até seis meses pode ser necessário para o completo desaparecimento das crises de paralisia, que vão diminuindo em freqüência e intensidade (35). A grande maioria dos episódios de paralisia tireotóxica melhora espontaneamente em algumas horas sem qualquer tratamento específico. Esquemas empíricos têm sido propostos para a rápida reposição de potássio durante as crises agudas devido ao risco de arritmias cardíacas graves secundárias à hipocalemia severa e para a melhora mais rápida da fraqueza muscular. Uma das possibilidades terapêuticas é a administração de 2g (27mEq) de cloreto de potássio via oral a cada duas horas durante seis horas e, em seguida, aumentar o intervalo entre as doses para quatro horas. A melhora clínica e laboratorial é geralmente atingida em torno de 5 horas (18,36). Outro esquema sugerido é o cloreto de potássio 130mEq via oral ou 20mEq intravenoso em 100ml de solução salina 0,9% (35). A avaliação do potássio deve ser freqüente, pois hipercalemia rebote é descrita em aproximadamente 42% dos casos devido à administração exógena de potássio associado ao retorno do íon ao meio extracelular, o que pode levar à compensação renal e sua eliminação (18). Para prevenção da elevação do potássio não se deve ultrapassar a dose máxima de 90mEq de potássio em 24 horas (18). O propranolol intravenoso pode ser usado nos episódios agudos de PPHT para o controle dos sintomas tireotóxicos, mas é preciso cautela quando associado à administração de potássio exógeno devido à possibilidade do beta bloqueador facilitar a hipercalemia rebote (37). O tratamento profilático das crises de paralisia secundárias ao hipertireoidismo até a normalização da função tireoidiana foi tentado sem benefícios com drogas como reserpina (38) e acetazolamida, apesar da eficácia da última na PPHF (8,39). Já o propranolol apresenta resultados significativos na prevenção, provavelmente ao diminuir a sensibilidade da bomba de Na+K+ATPase ao hormônio tireoidiano (40,41). A administração de potássio profilática é motivo de discussão na literatura, pois alguns pacientes são beneficiados com altas doses (4 a 12g/dia) no período assintomático, enquanto em outros não há modificação importante no padrão das crises de paralisia (13,17).

O prognóstico dos pacientes com PPHT é excelente quando o diagnóstico é correto, pois, controlado o hipertireoidismo, as crises periódicas de paralisia desaparecem. Foram descritos apenas três óbitos relacionados à doença entre 1940 e 1990 (6).

O resultado do relato destes três casos demonstra que o diagnóstico da PPHT é freqüentemente retardado, parcialmente pelos sintomas muitas vezes pouco evidentes de tireotoxicose e pela raridade da doença em ocidentais.

Recebido em 11/04/03

Revisado em 17/03/04 e 16/09/04

Aceito em 19/09/04

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  • Endereço para correspondência
    José Côdo Albino Dias
    Clínica de Endocrinologia e Metabologia
    Hospital Belo Horizonte
    Av. Antônio Carlos 1694, sala 17
    31210-000 Belo Horizonte, MG
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Mar 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2004

    Histórico

    • Aceito
      19 Set 2004
    • Revisado
      16 Set 2004
    • Recebido
      11 Abr 2003
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