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Importância da avaliação da função tireoidiana em pacientes com diabetes mellitus

EDITORIAL

Importância da avaliação da função tireoidiana em pacientes com diabetes mellitus

Regina do Carmo Silva

Doutora em Medicina e Médica da Disciplina de Endocrinologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP / EPM), São Paulo, SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Regina do Carmo Silva Disciplina de Endocrinologia, Departamento de Medicina Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP Rua Botucatu 740 04034-970 São Paulo, SP E-mail: rcarmo@osite.com.br

AS DOENÇAS DA TIREÓDE ACOMETEM cerca de 12% da população geral. Sua prevalência é maior em idosos do sexo feminino e nos indivíduos com anticorpos anti-tireoidianos (AAT) (1,2). Nos Estados Unidos, a prevalência de hipotireoidismo primário é de 4,6%, a de hipertireoidismo de 1,3% e a de anticorpos anti-peroxidase (ATPO) de 13% (1).

A associação entre diabetes mellitus (DM) e doença tireoidiana é amplamente conhecida. Os distúrbios metabólicos observados no DM podem interferir nos níveis sangüíneos de T4 e T3 livres, assim como nos de TSH, e as disfunções tireoidianas também podem influenciar o controle glicêmico (3). A prevalência da disfunção tireoidiana em populações de diabéticos varia entre os estudos, mas é maior que a observada na população geral (1).

O DM do tipo 1A (DM1A) é uma doença auto-imune resultante de uma complexa interação entre fatores genéticos e ambientais, freqüentemente associada à auto-imunidade extra-pancreática, caracterizando síndromes poliglandulares (4). O hipotireoidismo primário está presente em 12% a 24% das mulheres e em 6% dos homens com DM1A. A prevalência de hipertireoidismo é menor (1,7%) (1). Aproximadamente um terço dos pacientes com DM1A tem ATPO e cerca de 50% deles desenvolvem hipotireoidismo num período de 10 anos (5). Os pacientes com DM1A têm maior risco de desenvolver doenças tireoidianas auto-imunes e isso pode ser explicado, em parte, pela presença de genes de suscetibilidade compartilhados tanto para o DM como para as tireopatias (sistema HLA e gene CTLA-4) (4,5).

Neste número dos ABE&M, Souza e cols. (6) avaliaram 101 pacientes com DM do tipo 1 (61% do sexo feminino), residentes em Londrina, Paraná, e observaram que 30,7% deles apresentavam AAT positivos. Destes, 40% apresentavam disfunção tireoidiana (4,4% no grupo sem AAT), sendo 22,5% com hipotireoidismo franco, 9,7% com hipertireoidismo e 6,5% com hipotireoidismo subclínico. Nos pacientes com AAT positivos, a hemoglobina glicosilada foi significantemente menor e o nível médio de TSH significantemente maior, quando comparados àqueles sem AAT. Ramos e cols. (7), em 2003, avaliando 126 pacientes com DM do tipo 1, da região Nordeste, já haviam observado a presença de tireopatia em 20,6% dos casos (8,7% com hipotireoidismo clínico, 4,8% com hipotireoidismo subclínico, 7,1% com tireoidite, sem disfunção tireoidiana e 0,8% com hipertireoidismo).

O mérito do estudo de Souza e cols. (6) está em demonstrar que, apesar da diversidade genética da população brasileira, a prevalência de AAT em pacientes com DM1A, no Brasil, é semelhante à descrita na literatura. Variações étnicas e na ingestão de iodo, além da metodologia empregada para as dosagens hormonais e dos AAT, podem ser responsáveis pelas diferenças encontradas na prevalência de disfunção tireoidiana entre este estudo e os citados anteriormente (1,7).

A disfunção tireoidiana tem sido menos freqüentemente estudada nos pacientes com DM do tipo 2 (DM2). Hipotireoidismo primário e hipertireoidismo foram descritos, respectivamente, em 3 a 6% e em 0,3% dos pacientes com DM2 (1). Sobre este tema, outro estudo publicado neste número dos ABE&M por Pimenta e cols. (8), avaliando 256 pacientes com DM (80% deles com DM2), mostrou que 51,6% deles apresentavam tireopatia (38,7% dos indivíduos do grupo controle). Trinta e quatro por cento dos pacientes com DM1 e 56,5% daqueles com DM2 apresentavam tireopatia, freqüência maior que a descrita em outros estudos e que pode ser justificada pela avaliação tireoidiana mais completa, a qual incluiu a ultra-sonografia (US) da tiróide (além da dosagem de TSH e dos AAT), possibilitando o diagnóstico de nódulos que passariam despercebidos no exame físico. De fato, foi observada alta freqüência de bócios nodulares atóxicos (os quais são mais comuns em idosos, onde também é maior a incidência de DM2). Cabe ressaltar que os bócios nodulares atóxicos foram tão freqüentes quanto a tireoidite de Hashimoto (TH) nos pacientes com DM1 e que a TH foi diagnosticada com freqüência semelhante nos controles e nos pacientes com DM, não havendo diferença significante entre os grupos de DM1 e DM2. O grupo de pacientes com DM e tireopatias constituiu-se, predominantemente, de mulheres com DM2 e com história familiar de tireopatia. Portanto, este estudo é extremamente importante por ter avaliado uma população de pacientes com DM2 e por ter incluído a US da tireóide na avaliação diagnóstica.

Desta forma, a triagem de tireopatia em pacientes com DM é justificada por prevenir o desenvolvimento de disfunção tireoidiana clínica. Além disso, o diagnóstico e o tratamento do hipotireoidismo impedem o aparecimento de dislipidemia (a qual ocasiona disfunção endotelial e agravamento das complicações macroangiopáticas) e evitam os efeitos adversos da diminuição dos hormônios tireoidianos sobre o controle glicêmico (maior tendência à hipoglicemia) e o crescimento (em crianças). O diagnóstico e tratamento do hipertireoidismo impedem a piora da intolerância à glicose, o desenvolvimento de osteoporose e fibrilação atrial (1).

Como os pacientes com DM1 desenvolvem disfunção tireoidiana em idade mais precoce que a população geral, recomenda-se que todos sejam investigados, independentemente da idade (1,2). Não existe consenso na literatura sobre os métodos de identificação da disfunção tireoidiana em pacientes com DM. A dosagem dos AAT como única ferramenta diagnóstica pode não detectar 28% dos pacientes com hipotireoidismo subclínico, apesar do seu alto valor preditivo positivo (67%) para o subseqüente desenvolvimento de hipotireoidismo clínico (1). A maioria dos autores concorda que a avaliação dos níveis de TSH, utilizando-se métodos ultra-sensíveis, é a melhor maneira de se diagnosticar disfunção tireoidiana assintomática em pacientes com DM. Os estudos de Souza e cols. (6) e Pimenta e cols. (8) enfatizam a importância da investigação mais ampla, incluindo a dosagem dos AAT e da US da tiróide. A combinação de positividade para ATPO e nível de TSH acima de 5mUI/L é indicativa de alto risco de desenvolvimento de hipotireoidismo clínico (5).

Nos pacientes ATPO negativos, as dosagens de TSH poderão ser repetidas a cada cinco anos, mas naqueles ATPO positivos elas deverão ser reavaliadas anualmente (5). Além disso, é necessário seguimento a longo prazo, com mensuração anual dos AAT nos pacientes com resultados iniciais negativos, devido à possibilidade de seroconversão tardia e devido ao fato de que o início do DM1 precede o diagnóstico da TH de aproximadamente uma década em 70% dos casos (1,9).

Concluindo, as tireopatias são mais freqüentes em pacientes com DM. Portanto, todos os pacientes com DM1 (particularmente aqueles com AAT) deverão ser submetidos a dosagens anuais de TSH, a fim de detectar disfunção tireoidiana assintomática. Dada a alta prevalência de tireopatias no DM2, estes pacientes também deverão ser periodicamente monitorizados com relação aos níveis de TSH (principalmente mulheres com história familiar positiva), mesmo que assintomáticos. A US da tiróide deve ser incluída na avaliação inicial, devido à elevada prevalência de bócios nodulares atóxicos observada em ambos os tipos de DM.

REFERÊNCIAS

1. Umpierrez GE, Latif KA, Murphy MB, Lambert HC, Stentz F, Bush A, et al. Thyroid dysfunction in patients with type 1 diabetes. Diabetes Care 2003;26:1181-5.

2. Gharib H, Tuttle RM, Baskin J, Fish LH, Singer PA, McDermott MT. Consensus Statement. Subclinical thyroid dysfunction: a joint statement on management from the American Association of Clinical Endocrinologists, the American Thyroid Association and The Endocrine Society. J Clin Endocrinol Metab 2005;90:581-5.

3. Mouradian M, Abourizk N. Diabetes mellitus and thyroid disease. Diabetes Care 1983;6:512-20.

4. Silva RC, Sallorenzo C, Kater CE, Dib SA, Falorni A. Autoantibodies against glutamic acid decarboxylase and 21-hydroxylase in Brazilian patients with type 1 diabetes or autoimmune thyroid diseases. Diab Nutr Metab 2003;16:160-8.

5. Eisenbarth GS, Gottlieb PA. Autoimmune polyendocrine syndromes. N Engl J Med 2004;350:2068-79.

6. Souza OLR, Diehl LA, Carleto Jr LD, Garcia V, Carrilho AJF, Oliveira ML, et al. Prevalência de auto-imunidade tireoidiana em um grupo de pacientes com diabetes mellitus tipo 1 em Londrina, PR. Arq Bras Endocrinol Metab 2005;49/2:228-33.

7. Ramos AJS, Costa ADM, Benicio AVL, Ramos ALC, Silva CRA, Carvalho CR, et al. Prevalência de doença tireoidiana em pacientes com diabetes tipo 1. Arq Bras Endocrinol Metab 2003;47:177-82.

8. Pimenta WP, Mazeto GMFS, Callegaro CF, Shibata SA, Marins LV, Yamashita S, et al. Associação de tireopatias em uma população de pacientes com diabetes. Arq Bras Endocrinol Metab 2005;49/2:234-40.

9. Silva RC, Monteagudo PT, Dib SA. Relação cronológica entre o aparecimento do diabetes mellitus do tipo 1 e das tiroidopatias nas síndromes poliglandulares auto-imunes (SPAs). Arq Bras Endocrinol Metab 1996;40:180-6.

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    Regina do Carmo Silva
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    • Publicação nesta coleção
      12 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Abr 2005
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