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Rastreamento, diagnóstico e revascularização da doença arterial coronariana no diabetes tipo 2: desafios supremos da medicina contemporânea, também no Brasil!

EDITORIAL

Rastreamento, diagnóstico e revascularização da doença arterial coronariana no diabetes tipo 2: desafios supremos da medicina contemporânea, também no Brasil!

Valter C. Lima

Professor Associado, Livre-Docente, Disciplina Cardiologia, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP-EPM. Chefe do Serviço de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista, Hospital São Paulo ­ SPDM e Hospital do Rim e Hipertensão ­ FOR

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Valter C. Lima R. Napoleão de Barros 715, Térreo 04024-002, São Paulo, SP Tel. 011-5576-4014, Fax: 011-5572-1134 E-mail: valterlima.dmed@epm.br / vlima@uol.com.br

ESTA EDIÇÃO DOS ARQUIVOS traz duas contribuições gaúchas que contemplam a doença arterial coronariana (DAC) no diabetes mellitus tipo 2 (DM2). Na primeira delas, Azevedo e cols. (1) analisam a eficácia de testes não invasivos para diagnosticar DAC e prever o risco de eventos cardíacos em pacientes diabéticos. Cento e trinta e cinco pacientes assintomáticos, sem eventos coronarianos nos seis meses precedentes, foram acompanhados a cada 6-12 meses por 3,4 ± 1,4 anos. Os indivíduos foram submetidos a três testes diagnósticos no início do seguimento clínico: questionário de Rose, eletrocardiograma (ECG) de repouso (Códigos de Minesota) e cintilografia miocárdica com dipiridamol. Os autores observaram a ocorrência de 48 eventos cardíacos em 41 pacientes (10 eventos/100 pacientes-ano). Um elegante tratamento estatístico comparando os testes dos pacientes com e sem eventos permitiu observar que o questionário de Rose indicativo de DAC (Risco Relativo [RR]= 2,13; IC 95% 1,11-4,07; p= 0,02) foi o único preditor significativo de eventos cardiovasculares, entre os três testes. O ECG de repouso (RR= 1,34; IC 95% 0,68-2,63; p= 0,39) e a cintilografia miocárdica (RR= 1,69; IC 95% 0,87-3,27; p= 0,12) indicativos de DAC não se mostraram significantes para prever eventos. É possível que este resultado negativo do ECG e da cintilografia se deva a erro estatístico beta, que pode ter sido causado ou acentuado pela perda de seguimento de 18 (12%) pacientes dos 153 da amostra original. Embora caracterizado por dificuldades relativas à coexistência de disfunção microvascular, hipertrofia ventricular esquerda e neuropatia, o rastreamento de DAC em pacientes diabéticos é uma iniciativa comum do clínico, pois a DAC tem prevalência epidêmica, sendo a principal causa de morte destes pacientes. Entretanto, não há diretrizes baseadas em evidências para este rastreamento. As recomendações da Associação Americana de Diabetes (ADA), publicadas em 1998 (2), são baseadas apenas em consenso de especialistas e não foram modificadas pelas recomendações globais de diagnóstico e tratamento do diabetes, revisadas em outubro de 2005, e publicadas em janeiro de 2006 (3). A ADA recomenda que apenas os pacientes com DM2 assintomáticos com dois ou mais fatores de risco para aterosclerose (dislipidemia, tabagismo, hipertensão, antecendente familiar de DAC prematura e micro ou macroalbuminúria), além do próprio diabetes, sejam sistematicamente rastreados para DAC. Entretanto, recente estudo de rastreamento - o DIAD Study (4) -, mostrou que 22% dos pacientes verdadeiramente assintomáticos têm isquemia miocárdica detectada pela cintilografia miocárdica com adenosina. Se apenas as recomendações da ADA fossem consideradas, apenas 41% dos 133 pacientes com isquemia seriam diagnosticados.

Por outro lado, tem sido demonstrado que diagnóstico precoce de DAC em pacientes diabéticos assintomáticos resulta em marcada redução de eventos cardiovasculares (5). Esta redução de eventos é obtida tanto pela instituição de medidas terapêuticas farmacológicas (drogas anti-trombóticas, antiisquêmicas e anti-ateroscleróticas) e não farmacológicas (modificação do estilo de vida), como pelos procedimentos de revascularização miocárdica (angioplastia e cirurgia).

A prevalência de DAC nos diabéticos é não só 2 a 4 vezes maior do que nos não diabéticos, mas também é mais grave e caracterizada por eficácia menor de todos os tipos de tratamento. Esta observação reveste-se de maior relevância clínica quando se leva em conta que a aterosclerose causa cerca de 80% dos óbitos em diabéticos, e destes, 75% são causados pela DAC (6,7). Recentemente, esta prevalência epidêmica de eventos cardiovasculares em diabéticos foi corroborada pela estimativa do risco de doença cardiovascular no tempo remanescente de vida verificado aos 50 anos (8). Este risco foi de 67,1% e 57,3% para homens e mulheres diabéticos, respectivamente, sendo que para os não diabéticos, este risco foi de 30,2% e 16,3%, respectivamente.

A definição da melhor opção de revascularização miocárdica, angioplastia ou cirurgia, constitui importante controvérsia da cardiologia contemporânea (9). A despeito da menor mortalidade tardia com a cirurgia num importante estudo multicêntrico randomizado (BARI trial) financiado pelo governo americano, a prática clínica não incorporou esta mensagem pelas seguintes razões: grandes registros da prática médica demonstraram não haver diferença de mortalidade, houve aprimoramento técnico e tecnológico da angioplastia e pacientes e clínicos estão cada vez mais resistentes a procedimentos cirúrgicos de grande porte.

Neste sentido, Schaan e cols. (10) relatam a experiência do Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul com a angioplastia coronariana e implante de stent convencional, comparando os resultados, hospitalares e aos 12 meses, obtidos em 221 pacientes diabéticos e 713 não diabéticos no período de 1996-2000. Nesta expressiva casuística, o diabetes foi uma robusta variável preditora de eventos depois da angioplastia (RR= 2,00; IC 95% 1,25-3,24; p= 0,004). Outras variáveis significantemente preditoras de eventos foram a presença de doença em três vasos (RR = 2,42; IC 95% 1,28-4,58; p= 0,007) e o comprimento da lesão tratada (RR= 1,09; IC 95% 1,05-1,14; p= 0,0001). O desfecho composto de eventos cardiovasculares (nova angioplastia, cirurgia, infarto e óbito) foi maior entre os diabéticos (16,3% vs 9,3%, p= 0,003), assim como a revascularização do vaso-alvo por reestenose intra-stent (12,3% vs 8,0%, p= 0,06) e óbito (5,4% vs 2,5%, p= 0,03). Este relato é comparável a outros registros institucionais publicados, exceto por uma taxa de reestenose clínica relativamente baixa em ambos os grupos, mais especialmente para os diabéticos. Isto talvez se deva ao maior diâmetro dos vasos tratados nos dois grupos, 3,29 mm e 3,31 mm, respectivamente.

A melhor modalidade de tratamento da DAC no DM2 está sendo extensivamente investigada no mais importante estudo randomizado, multicêntrico, já realizado, desta vez com a participação de vários centros brasileiros, e financiado pelo governo americano. Este ensaio clínico, denominado FREEDOM (Future REvascularization Evaluation in patients with Diabetes mellitus: Optimal management of Multivessel disease), já iniciado, vai comparar a cirurgia de revascularização miocárdica (com ou sem circulação extra-corpórea) com a angioplastia coronariana com implante de stent farmacológico (CYPHER ou TAXUS) e terapia anti-plaquetária adjunta otimizada (abciximab). Serão randomizados 2.400 pacientes diabéticos e com DAC multiarterial estável, e elegíveis para ambas as modalidades de revascularização. É notável neste ensaio, que os pacientes de ambos os grupos receberão tratamento clínico otimizado (HbA1c alvo < 7%, LDL-colesterol < 70 mg/dL, pressão arterial < 130/80 mm Hg, clopidogrel por um ano e aspirina indefinidamente). O desfecho primário (composto de morte, infarto e acidente vascular cerebral) será analisado após seguimento mínimo de três anos. Enquanto o resultado de estudos como este não está disponível, tem havido recomendações nacionais e internacionais para que pacientes diabéticos submetidos a angioplastia coronariana sejam tratados com implante de stents farmacológicos eluidores de sirolimus (CYPHER) ou paclitaxel (TAXUS) (11).

Finalmente, é interessante que num mesmo número dos "Arquivos" haja duas contribuições brasileiras relevantes contemplando o tema da doença cardiovascular no diabetes mellitus. Isto contrasta com a observação que pude fazer ao buscar eletronicamente neste importante periódico, através do Scientific Electronic Library Online (SciELO), a freqüência de artigos com este tema. Procurando, sem restrição de campo, os termos "cardiovascular" e "aterosclerose" constatei a publicação de apenas 16 artigos nos 36 números disponíveis eletronicamente desde 2.000. A despeito da escassez de artigos com tema tão prolífico em investigação clínica, a qualidade editorial dos Arquivos, recentemente reconhecida oficialmente com sua indexação no PubMed deve atrair bastante pesquisa cardiovascular relacionada às doenças endocrinológicas, especialmente ao diabetes. Até então os pesquisadores cardiovasculares tinham os Arquivos Brasileiros de Cardiologia, como uma das raras e preferida opção de periódico nacional com indexação internacional.

REFERÊNCIAS

1. Azevedo MJ, Neto AFR, Caramori MLA, Beck MO, Moreira JSR, Ludwig R, et al. Value of diagnostic tools for myocardial ischemia used in routine clinical practice to predict cardiac events in patients with type 2 diabetes mellitus: a prospective study. Arq Bras Endocrinol Metab 2006;50(1): 46-52.

2. American Diabetes Association: Consensus development conference on the diagnosis of coronary heart disease in people with diabetes: 10­11 February 1998, Miami, Florida. Diabetes Care 1998;21:1551-59.

3. Standards of Medical Care in Diabetes - 2006. Position statement. American Diabetes Association. Diabetes Care 2006;29(suppl 1):S4-S42.

4. Wackers FJT, Young LH, Inzucchi SE et al for Detection of Ischemia in Asymptomatic Diabetics (DIAD) Investigators. Detection of silent myocardial ischemia in asymptomatic diabetic subjects (The DIAD study). Diabetes Care 2004;27:1954-61.

5. Faglia E, Manuela M, Antonella Q, Michela G, Vincenzo C, Maurizio C, et al. Risk reduction of cardiac events by screening of unknown asymptomatic coronary artery disease in subjects with type 2 diabetes mellitus at high cardiovascular risk: an open-label randomized pilot study. Am Heart J 2005;149:e1-6.

6. American Heart Association: Prevention conference VI: Diabetes and cardiovascular disease. Circulation 2002;105:2231-39.

7. Heart disease and stroke statistics - 2006 update. A report from the American Heart Association statistics committee and stroke statistics subcommittee. Circulation 2006;113:1-67.

8. Lloyd-Jones DM, Leip EP, Larson MG, D'Agostino RB, Beiser A, Wilson PWF, et al. Prediction of lifetime risk for cardiovascular disease by risk factor burden at 50 years of age. Circulation 2006;113:791-98.

9. King III SB, Dangas G, Moses JW. Is surgery preferred for the diabetic with multivessel disease? Circulation 2005;112:1500-15.

10. Schaan BD, Quadros A, Sarmento-Leite R, Gottschall CAM. Diabetes e implante de stents coronarianos: experiência de um centro de referência em cardiologia intervencionista. Arq Bras Endocrinol Metab 2006;50(1): 38-45.

11. Lima VC, Mattos LAPM, Caramori PRA, Perin MA, Mangione JA, Machado BM, et al. Intervenção coronária percutânea na prática clinica: do cateter-balão aos stents farmacológicos. Recomendações da Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista ao Sistema Único de Saúde. Arq Bras Cardiol (no prelo).

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    • Publicação nesta coleção
      17 Abr 2006
    • Data do Fascículo
      Fev 2006
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