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Esteatoepatite não alcoólica induzida por rápida perda de peso em uso de balão intragástrico: um relato de caso

Non-alcoholic steatohepatitis induced by fast weight loss during the use of intragastric balloon: a case report

Resumos

A obesidade é uma doença crônica, atualmente considerada uma epidemia global. Está associada a várias co-morbidades clínicas, entre elas a doença esteatótica hepática não alcoólica (DEHNA), e sua complicação, a esteatoepatite não alcoólica (EHNA). Apresentamos um caso de uma paciente de 58 anos com obesidade refratária ao tratamento clínico, submetida à colocação do balão intragástrico (BIG), que evoluiu com um quadro de esteatoepatite não alcoólica, associada a rápida perda de peso.

Obesidade; Balão intragástrico; Esteatoepatite não alcoólica; Perda de peso


Obesity is a chronic disease that has been considered an epidemic nowadays. It is associated to much co-morbidity, such as non-alcoholic fatty liver disease (NAFLD) and its complication, steatohepatitis. We report a case of a 58-year-old obese patient refractory to clinical treatment who was submitted to the use of intragastric balloon (BIB), developing steatohepatitis induced by fast weight loss.

Obesity; Intragastric balloon; Non-alcoholic steatohepatitis; Weight loss


APRESENTAÇÃO DE CASO

Esteatoepatite não alcoólica induzida por rápida perda de peso em uso de balão intragástrico – um relato de caso

Non-alcoholic steatohepatitis induced by fast weight loss during the use of intragastric balloon – a case report

Alexander Koglin Benchimol; Isabella Silva Cardoso; Julia Fandiño; Thalita Bittar; Sílvia Freitas; Walmir Ferreira Coutinho

Grupo de Obesidade e Transtornos Alimentares (GOTA) – Escola Médica de Pós-Graduação PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJ

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Alexander Koglin Benchimol Av. Jornalista Ricardo Marinho 300 / 1204 22631-350 Rio de Janeiro, RJ Fax: (21) 3171-1846 E-mail: alexanderbenchimol@rjnet.com.br

RESUMO

A obesidade é uma doença crônica, atualmente considerada uma epidemia global. Está associada a várias co-morbidades clínicas, entre elas a doença esteatótica hepática não alcoólica (DEHNA), e sua complicação, a esteatoepatite não alcoólica (EHNA). Apresentamos um caso de uma paciente de 58 anos com obesidade refratária ao tratamento clínico, submetida à colocação do balão intragástrico (BIG), que evoluiu com um quadro de esteatoepatite não alcoólica, associada a rápida perda de peso.

Descritores: Obesidade; Balão intragástrico; Esteatoepatite não alcoólica; Perda de peso

ABSTRACT

Obesity is a chronic disease that has been considered an epidemic nowadays. It is associated to much co-morbidity, such as non-alcoholic fatty liver disease (NAFLD) and its complication, steatohepatitis. We report a case of a 58-year-old obese patient refractory to clinical treatment who was submitted to the use of intragastric balloon (BIB), developing steatohepatitis induced by fast weight loss.

Keywords: Obesity; Intragastric balloon; Non-alcoholic steatohepatitis; Weight loss

A OBESIDADE É UMA DOENÇA CRÔNICA atualmente considerada uma epidemia global, está associada a uma série de co-morbidades clínicas, dentre elas a doença esteatótica hepática não alcoólica (DEHNA) (1). Esta é a doença hepática mais comum nos Estados Unidos, acometendo 15 a 20% da população, e tem como complicação a esteatoepatite não alcoólica (EHNA) (2). Normalmente, uma substancial perda de peso tende a evoluir com a melhora significativa da esteatose hepática. Entretanto, apesar de reconhecermos a associação entre a rápida perda de peso e a ocorrência de EHNA (3), seu relato não tem sido freqüente. Reportamos um caso onde essa complicação ocorreu durante a utilização do balão intragástrico (BIG), que é mais uma possibilidade terapêutica no tratamento dos pacientes obesos. A paciente assinou um termo de consentimento livre e esclarecido autorizando a publicação do caso.

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, branca, 58 anos, do lar, com história de obesidade infanto-juvenil e vários tratamentos prévios sem sucesso, IMC de 42,3 kg/m2 (altura 1,60 m e peso 108,5 kg). Apresentava hipertensão arterial (HAS) e transtorno de compulsão alimentar periódico (TCAP), condições que se encontravam compensadas clinicamente com uso de valsartana (160 mg/dia) e fluoxetina (40 mg/dia), respectivamente. Seus exames complementares mostravam esteatose hepática visualizada à ultra-sonografia abdominal, com enzimas hepáticas normais e sorologias negativas para hepatites A, B e C. Após a falência do tratamento clínico para a obesidade e considerando que a paciente não aceitava submeter-se, naquele momento, à cirurgia bariátrica, foi indicada a colocação do BIG, que seria associado ao acompanhamento multidisciplinar já realizado (endocrinologista, gastroenterologista, psiquiatra e nutricionista).

A paciente foi submetida à colocação do BIG por via endoscópica, em regime de hospital-dia, sob anestesia geral. Apresentou boa tolerância ao balão e, já no primeiro mês, obteve uma perda de 11 kg. Nesse período, apresentou sintomas referentes ao uso do balão (pirose, náuseas e plenitude pós-prandial). Esses sintomas foram bem controlados com medicamentos sintomáticos – pró-cinético (bromoprida), inibidor da bomba de prótons (omeprazol) e antiespasmódico (hioscina). Ao final do primeiro mês, apresentou queixa importante de astenia de evolução contínua e progressiva; entretanto, seu exame físico mostrava-se semelhante ao exame prévio à colocação do balão. Tendo em vista a queixa de astenia, uma nova rotina laboratorial foi solicitada, incluindo enzimas hepáticas. Os resultados evidenciaram uma elevação isolada de transaminases, sem outras alterações laboratoriais (tabela 1). A conduta tomada foi a suspensão da atividade física e a redução da dose de fluoxetina para 20 mg/dia, com solicitação de novos exames complementares para prosseguimento da investigação diagnóstica.

No mês subseqüente, voltou para uma nova avaliação clínica com peso de 95,5 kg (perda de 2 kg) e referindo melhora da astenia. Os resultados da avaliação laboratorial demonstraram uma diminuição das transaminases (porém ainda se mantinham discretamente elevadas) e excluíram hepatopatias virais, auto-imunes e por depósito de substâncias como ferro e cobre. A paciente não apresentava história de uso de álcool, sendo então considerada a hipótese diagnóstica de EHNA induzida pela rápida perda de peso.

Nos quatro meses subseqüentes, a paciente permaneceu em acompanhamento clínico e laboratorial, evoluindo com a normalização das enzimas hepáticas. Uma nova ultrassongrafia abdominal evidenciou o fígado com aspecto normal (regressão da esteatose). Tendo em vista a sua melhora tanto clínica como laboratorial, a paciente foi liberada para reiniciar a atividade física de forma progressiva, e retornar com a dose inicial de fluoxetina (40 mg/dia).

O BIG foi retirado após 6 meses, quando a paciente apresentava peso corporal de 94 kg (uma perda total de 14,5 kg). Desde então, apresenta-se assintomática, com exames laboratoriais normais e manutenção da perda de peso.

DISCUSSÃO

O uso do BIG é mais uma opção de tratamento da obesidade e, se bem indicado, otimiza os resultados do tratamento clínico, diminuindo os riscos e complicações da cirurgia da bariátrica (4-6). Como em todo procedimento médico, existem indicações para seu emprego, assim como limitações, contra-indicações e complicações associadas à colocação do balão (tabela 2) (4,7).

O BIG foi inicialmente utilizado em 1986, mas apresentou resultados desastrosos, em grande parte relacionados à desinsuflação precoce e a obstrução intestinal, o que restringiu seu uso a centros de pesquisa. O balão foi aperfeiçoado desde então, já sendo aplicado na Europa desde 1992, levando a melhores resultados em relação à perda de peso e a um número menor de complicações (4,8). O atual balão de silicone é introduzido no estômago por endoscopia digestiva alta, onde é insuflado até atingir o volume médio de 500 ml (490 ml de solução salina e 10 ml de azul de metileno – a presença da coloração azul nas fezes ou urina mostra que houve perfuração e desinsuflação do balão). O seu objetivo é promover uma sensação de saciedade precoce, diminuindo o consumo de alimentos e facilitando a adaptação a uma dieta hipocalórica associada a uma atividade física regular. O tempo de permanência com o BIG é de, no máximo, 6 meses e durante todo esse período deve ser feito um acompanhamento do paciente por uma equipe multidisciplinar. Após a retirada do balão, pode ocorrer ganho de peso, principalmente se não forem preservadas as mudanças dietéticas e atividade física (4).

No caso descrito, a paciente apresentava as seguintes indicações para o uso do BIG: IMC > 35 kg/m2 e doenças associadas, além da falência ao tratamento clínico da obesidade. A paciente não apresentava contra-indicações ao tratamento cirúrgico, porém não desejava, naquele momento, submeter-se à cirurgia bariátrica. Cabe a ressalva de que a paciente apresentava HAS e TCAP, muito comum na obesidade grau III. O TCAP não contra-indica o procedimento, e a paciente apresentava-se em remissão dos episódios de compulsão e em uso de fluoxetina (9).

Na literatura, há relatos de inúmeras séries de tratamento da obesidade com balão intragástrico por períodos de 4 a 6 meses. Há uma perda de, em média, 14 kg no peso corporal e de 5 kg/m2 no IMC. O peso tende a estabilizar-se após os dois primeiros meses, quando a perda passa a ser mais lenta, e isto foi exatamente o observado no caso descrito (4,5,10). A recidiva da obesidade descrita após 18 meses do procedimento está em torno de 45% (11).

A DEHNA corresponde à doença metabólica que cursa com esteatose hepatocelular predominantemente macrovesicular. A EHNA é o nome dado às formas de DEHNA onde há a presença de esteatose associada a graus variados de atividade necroinflamatória e fibrose, condição que possui potencial evolutivo para doença hepática avançada (cirrose) e suas complicações (12). Nos EUA, a DEHNA corresponde à doença hepática mais prevalente (em torno de 20%), com a EHNA apresentando prevalência de 2 a 3%, com evolução para cirrose em quase 20% dos casos, no período de 10 anos. A esteatose pura ocorre em 70% dos pacientes que se apresentam 10% acima do peso ideal e em praticamente 100% dos obesos mórbidos (2).

A DEHNA está associada à obesidade, diabetes melito tipo 2 (DM2), dislipidemia, hipotireoidismo, uso de medicamentos (corticóides, amiodarona, diltiazem, nifedipina, tamoxifeno), nutrição parenteral total e situações de rápida perda de peso: cirurgias para obesidade, caquexia, bulimia e anorexia nervosa, entre outras (2,12,13).

A patogênese da EHNA ainda não é totalmente conhecida, mas há evidências de que a resistência insulínica (RI) e peroxidação lipídica façam parte deste processo. A obesidade e o DM2 (ou mesmo a RI) contribuem aumentando a síntese e reduzindo a oxidação dos ácidos graxos livres, além de estimular a lipólise tecidual, resultando em um acúmulo progressivo de lipídios nos hepatócitos. Esse estoque pode atingir níveis tóxicos, o que gera um aumento do estresse oxidativo com formação de radicais livres, associado a uma lesão mitocondrial. A peroxidação lipídica anormal resultará em dano hepático direto, com inflamação e até mesmo fibrose (2,12,14,15).

O diagnóstico clínico da EHNA nesta paciente foi baseado na queixa de astenia durante o período de rápida perda de peso, no aumento em 5 vezes das enzimas hepáticas, na presença de componentes da síndrome metabólica (HAS, obesidade e RI), na exclusão do consumo de álcool, e de hepatopatias virais, autoimunes, genéticas ou induzidas por drogas. Isso vai de acordo com os dados de literatura (2,12,13,16).

A intervenção proposta para esta paciente foi o acompanhamento clínico, suspensão da atividade física e a avaliação seriada das transaminases. Foi feita diminuição da dose de fluoxetina – visto a metabolização hepática desta droga, mas sem promover descompensação do quadro de TCAP. Houve redução progressiva das transaminases, coincidindo com a perda de peso mais lenta nos meses subseqüentes em uso do balão, até a normalização dos exames laboratoriais e melhora da astenia. Um mês após a retirada do balão, a paciente encontrava-se assintomática, com exames normais e perda de peso mantida.

A distinção entre DEHNA e EHNA não pode ser feita apenas baseada em critérios clínicos ou laboratoriais, porém o papel da biópsia hepática continua controverso (2,13). A biópsia pode excluir outras causas de hepatopatias, distinguir DEHNA de EHNA, além de avaliar o grau de fibrose, podendo determinar o prognóstico da doença. Na prática clínica, a biópsia é indicada nos pacientes com fatores de risco para DEHNA/EHNA que apresentam TGP persistentemente elevada (> 1,5 vezes o limite superior da normalidade) após tentativa de controle metabólico e/ou retirada dos fatores desencadeantes por um período máximo de 6 meses (2,12). É preciso ressaltar que a biópsia hepática é um procedimento invasivo com riscos associados ao método e custos de internação, constituindo mais um argumento contra a realização da biópsia de forma rotineira. Portanto, a decisão de sua realização deve ser individualizada, baseada caso a caso (13). Sendo assim, optamos por não biopsiar esta paciente, visto a evolução benigna do caso, mantendo-a em acompanhamento clínico e laboratorial.

A esteatose hepática com alterações inflamatórias e fibrose em pacientes obesos já é conhecida há décadas. Porém, passou a ser observada como entidade clínica após os relatos de insuficiência hepática em alguns pacientes submetidos à cirurgia bariátrica com bypass jejunoileal (13,16). Atualmente, novas técnicas, cirúrgicas e não cirúrgicas, para o tratamento da obesidade vêm sendo desenvolvidas. Tendo em vista a alta prevalência da obesidade na população e maior facilidade de acesso às técnicas para tratamento da mesma, é preciso atenção a essa complicação hepática, principalmente quando a intervenção proposta pode levar a uma perda de peso muito rápida, conforme observado por Andersen e cols. (17). Ressaltamos que essa complicação também pode se desenvolver com o uso do BIG, como relatado. É preciso identificar com que freqüência isso vem ocorrendo, e qual a sua conseqüência a longo prazo, já que é um método que vem se firmando como mais uma opção no tratamento da obesidade.

Recebido em 06/12/06

Revisado em 26/02/07

Aceito em 29/03/07

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  • Endereço para correspondência:

    Alexander Koglin Benchimol
    Av. Jornalista Ricardo Marinho 300 / 1204
    22631-350 Rio de Janeiro, RJ
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Jul 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2007

    Histórico

    • Aceito
      29 Mar 2007
    • Revisado
      26 Fev 2007
    • Recebido
      06 Dez 2006
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