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Hiperparatireoidismo primário familiar isolado: análise e descrição de uma família com seis casos índices

Familial isolated primary hyperparathyroidism: description and analyses of six cases

Resumos

Objetivamos descrever e analisar uma família com seis casos de hiperparatireoidismo familiar isolado (HFI), uma rara doença hereditária de padrão autossômico dominante, caracterizada por hiperparatireoidismo primário sem associação com outras doenças ou tumores endocrinológicos. O diagnóstico foi realizado através da demonstração de hipercalcemia, aumento dos níveis de paratormônio e tumores de paratireóide à histopatologia, excluindo-se neoplasias endócrinas múltiplas do tipo 1 (NEM 1) e do tipo 2a (NEM 2a), além da síndrome hiperparatireoidismo/tumor de mandíbula (HPT/TM). Analisamos a descrição dos exames diagnósticos iniciais, a abordagem cirúrgica, os laudos histopatológicos pós-operatórios e suas evoluções. A primeira paciente operada neste instituto há 20 anos, recidivou onze anos após, e possuía uma irmã com diagnóstico prévio, o que motivou a investigação de outros familiares. A observação do caráter familial nesses pacientes contribuiu para a facilitação diagnóstica e encaminhamento terapêutico dos mesmos, assim como a orientação clínica e genética à família.

Hiperparatireoidismo primário; Neoplasias endócrinas múltiplas do tipo 1; Neoplasias endócrinas múltiplas do tipo 2a; Hipercalcemia


Our objective is to evaluate and describe one family with six cases of familial isolated primary hyperparathyroidism (HFI), a rare hereditable disorder with an autossomal dominant mode of inheritance. It is characterized by a primary hyperparathyroidism without association with other endocrine tumors or diseases. The HFI diagnosis relied on the demonstration of hypercalcemia, inappropriately high levels of parathyroid hormone, and parathyroid adenomas, plus exclusion of NEM 1/2a and HPT/TM syndrome in this family. We analyzed the description of the first diagnosis, surgical approach, postoperative histopathological results and their development process. The first patient, treated in our institute twenty years ago, has recidivated eleven years after the treatment. Her sister had had the same diagnosis, which motivated us to investigate theirs relatives. The analysis of the characteristics that run in these patients' family has contributed to facilitate their diagnosis and therapeutic treatment, including clinical and genetic orientation of this family.

Primary hyperparathyroidism; Multiple endocrine neoplasia type 1; Multiple endocrine neoplasia type 2a; Hypercalcemia


APRESENTAÇÃO DE CASO

Hiperparatireoidismo primário familiar isolado - análise e descrição de uma família com seis casos índices

Familial isolated primary hyperparathyroidism - description and analyses of six cases

Lívia Xavier Moulin; Joyce Cantoni; Rosino Baccarini Neto; Patrícia Lavatori Corrêa; Cláudio Tinoco Mesquita; João Guilherme de Figueiredo; Maurício Barbosa Lima

Serviço de Doenças Osteometabólicas do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia – IEDE, Rio de Janeiro, RJ

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Lívia Xavier Moulin Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia – IEDE Rua Moncorvo Filho 90 20211-340 Rio de Janeiro, RJ E-mail: liviamoulin@yahoo.com.br

RESUMO

Objetivamos descrever e analisar uma família com seis casos de hiperparatireoidismo familiar isolado (HFI), uma rara doença hereditária de padrão autossômico dominante, caracterizada por hiperparatireoidismo primário sem associação com outras doenças ou tumores endocrinológicos. O diagnóstico foi realizado através da demonstração de hipercalcemia, aumento dos níveis de paratormônio e tumores de paratireóide à histopatologia, excluindo-se neoplasias endócrinas múltiplas do tipo 1 (NEM 1) e do tipo 2a (NEM 2a), além da síndrome hiperparatireoidismo/tumor de mandíbula (HPT/TM). Analisamos a descrição dos exames diagnósticos iniciais, a abordagem cirúrgica, os laudos histopatológicos pós-operatórios e suas evoluções. A primeira paciente operada neste instituto há 20 anos, recidivou onze anos após, e possuía uma irmã com diagnóstico prévio, o que motivou a investigação de outros familiares. A observação do caráter familial nesses pacientes contribuiu para a facilitação diagnóstica e encaminhamento terapêutico dos mesmos, assim como a orientação clínica e genética à família.

Descritores: Hiperparatireoidismo primário; Neoplasias endócrinas múltiplas do tipo 1; Neoplasias endócrinas múltiplas do tipo 2a; Hipercalcemia

ABSTRACT

Our objective is to evaluate and describe one family with six cases of familial isolated primary hyperparathyroidism (HFI), a rare hereditable disorder with an autossomal dominant mode of inheritance. It is characterized by a primary hyperparathyroidism without association with other endocrine tumors or diseases. The HFI diagnosis relied on the demonstration of hypercalcemia, inappropriately high levels of parathyroid hormone, and parathyroid adenomas, plus exclusion of NEM 1/2a and HPT/TM syndrome in this family. We analyzed the description of the first diagnosis, surgical approach, postoperative histopathological results and their development process. The first patient, treated in our institute twenty years ago, has recidivated eleven years after the treatment. Her sister had had the same diagnosis, which motivated us to investigate theirs relatives. The analysis of the characteristics that run in these patients' family has contributed to facilitate their diagnosis and therapeutic treatment, including clinical and genetic orientation of this family.

Keywords: Primary hyperparathyroidism; Multiple endocrine neoplasia type 1; Multiple endocrine neoplasia type 2a; Hypercalcemia

HIPERPARATIREOIDISMO FAMILIAR ISOLADO

O HIPERPARATIREOIDISMO FAMILIAR ISOLADO (HFI) é uma rara doença hereditária, de padrão autossômico dominante, caracterizado por um hiperparatireoidismo primário sem associação com outras doenças ou tumores endocrinológicos (1).

O diagnóstico é realizado através da demonstração de hipercalcemia, aumento inapropriado dos níveis de paratormônio (PTH) e presença de tumores de paratireóide à histopatologia, excluindo-se neoplasias endócrinas múltiplas do tipo 1 (NEM 1) e do tipo 2a (NEM 2a), além da síndrome hiperparatireoidismo/tumor de mandíbula (HPT/TM) (1,2).

A predisposição hereditária do HFI foi inicialmente descrita em 1936 por Goldman e cols. (3). Posteriormente, Goldsmith e cols. relataram a ocorrência familiar de hiperparatireoidismo primário em aproximadamente 30 famílias (4). Atualmente, acima de cem famílias já foram descritas (5), sendo o modo de transmissão autossômico dominante (1,2).

Alguns autores têm sugerido que o HFI seja uma variante de síndromes tumorais familiares nas quais o hiperparatireoidismo primário seja a característica principal, como, por exemplo, a NEM 1 e a síndrome HPT/TM (6-8). Enquanto isso, outros autores sugerem que este seja uma entidade geneticamente distinta, observando-se um risco maior de transformação maligna nesses tumores de paratireóide (2).

O objetivo deste trabalho é descrever uma família com seis casos de hiperparatireoidismo primário e analisá-los quanto à descrição dos exames diagnósticos iniciais, as abordagens cirúrgicas e laudos histopatológicos pós-operatórios.

A identificação precisa de uma família com HFI é de fundamental importância no tratamento, acompanhamento, avaliação prognóstica e orientação genética dos pacientes envolvidos e seus familiares.

PACIENTES E MÉTODOS

Desde o primeiro diagnóstico de hiperparatireoidismo primário, há cerca de 20 anos, até a presente data, seis casos de uma mesma família foram identificados como portadores dessa patologia.

Os casos II.1 e III.3, descritos a seguir, tiveram os seus diagnósticos iniciais sugeridos há cerca de 20 anos, através de dosagens seriadas de cálcio e fósforo no sangue, utilizando-se o método de Clark Collip (31) e Gomori (32), respectivamente. O caso II.1 foi confirmado através de biópsia óssea. A dosagem de PTH molécula intacta por método imunoenzimático e quimioluminescência (33) foi realizada na recidiva tardia. Os demais pacientes foram avaliados com dosagem de cálcio (método complexona 0-cresoftalleína) e fósforo (método fosfomolibdato directo) séricos e na urina de 24 horas, assim como com a dosagem de PTH sérico pelo método acima descrito.

Os pacientes que fizeram ultrassonografias cervicais tiveram estas realizadas sempre pelo mesmo médico radiologista, utilizando-se sondas 7,5 MHz.

As cintilografias de paratireóide com 99mTc-sestamibi foram realizadas em convênio com o Hospital Pró-Cardíaco/RJ. Foram adquiridas imagens planares aos 20, 60 e 120 minutos e imagens tomográficas aos 120 minutos, com colimador de alta resolução, 64 paradas de 20 segundos, matriz 128 x 128 da região cérvico-torácica. O exame foi considerado positivo quando houve um foco de acúmulo anômalo do radiotraçador nas imagens tardias.

Todos os pacientes foram operados pelo mesmo cirurgião, à exceção do paciente IV.6. Os laudos histopatológicos foram confirmados pelo mesmo patologista.

RESULTADOS

Realizada a descrição e análise de uma família com seis casos diagnosticados de hiperparatireoidismo primário familiar isolado de acordo com o heredograma da figura 1.


Observa-se pelo heredograma o padrão de transmissão autossômico dominante com acometimento de três gerações, sendo duas consecutivas (III, IV). Os exames laboratoriais diagnósticos dos seis pacientes encontram-se na tabela 1.

A paciente II.1, feminina, branca, atualmente com 52 anos, foi o primeiro caso de hiperparatireoidismo primário diagnosticado na família, com a idade de 30 anos. Iniciou o quadro com fraqueza muscular, adinamia, emagrecimento e dor óssea em articulação coxo-femoral bilateral, evoluindo com dificuldade de deambulação e impotência funcional. Foi realizada biópsia óssea com diagnóstico histopatológico de osteíte fibrosa cística.

Durante a internação, a paciente evoluiu com fratura espontânea do fêmur esquerdo, com posterior correção cirúrgica. A paratireoidectomia foi indicada, sendo retirada a paratireóide inferior esquerda que media 4 cm no seu maior diâmetro. A paratireóide inferior direita apresentava aspecto normal e as paratireóides superiores não foram visualizadas. A histopatologia evidenciou adenoma de paratireóide. A paciente apresentou hipocalcemia e hipofosfatemia no pós-operatório, confirmando a resolução do quadro. Não realizou seguimento posterior, pois abandonou o acompanhamento ambulatorial.

A recidiva ocorreu onze anos após a primeira cirurgia, revelando hipercalcemia sérica e nefrolitíase. A ultrassonografia de paratireóide evidenciou nódulo hipoecóico, de contornos regulares, medindo 1,8 x 1,4 x 1,2 cm, localizado no terço médio do lobo esquerdo da tireóide. Não realizou cintilografia de paratireóide com sestamibi. Realizada nova abordagem cirúrgica, tendo sido retirada a paratireóide superior esquerda com 2 x 2 cm e realizada lobectomia subtotal à esquerda. O exame histopatológico evidenciou novo adenoma de paratireóide. Atualmente, encontra-se em acompanhamento clínico em uso de hidroclorotiazida 25 mg/dia devido haver mantido persistência da hipercalciúria renal.

O paciente III.2, masculino, 27 anos, branco, filho da paciente acima descrita, apresentava-se assintomático ao realizar, aos 26 anos, investigação de hiperparatireoidismo primário. Foi constatada hipercalcemia sérica e elevação do PTH. À ultrassonografia, observou-se nódulo sólido, hipoecóico, medindo 2,3 x 1,2 x 1,3 cm no terço inferior do lobo esquerdo da tireóide. A cintilografia de paratireóide com sestamibi evidenciou imagem sugestiva de adenoma de paratireóide à esquerda. Encaminhado à cirurgia, sendo encontradas apenas as paratireóides inferiores direita e esquerda. Realizada paratireoidectomia esquerda associada a lobectomia esquerda e auto-implante da glândula direita normal no músculo esternocleidomastóideo direito. A histopatologia confirmou adenoma de paratireóide. O paciente evoluiu com hipoparatireoidismo transitório no pós-operatório e posterior recuperação funcional.

A paciente III.3, feminina, branca, apresentava história prévia de paratireoidectomia aos 20 anos, realizada em outro hospital, com retirada de um adenoma de paratireóide. Não realizou acompanhamento clínico após a cirurgia. Apresentou recidiva diagnosticada aos 58 anos, com clínica de dor óssea intensa, nefrocalcinose bilateral e hipercalcemia. Não aceitou fazer ultrassonografia de paratireóide. Realizou cintilografia de paratireóides com sestamibi, que evidenciou acúmulo do traçador no pólo superior do lobo direito da tireóide. A paciente recusou nova abordagem cirúrgica. Evoluiu ao óbito aos 61 anos em virtude de complicação de quadro de infecção do trato urinário com septicemia.

O paciente IV.6, masculino, branco, 39 anos, apresentava história prévia de nefrolitíase recorrente iniciada na adolescência. Foi realizada investigação aos 34 anos com diagnóstico de hiperparatireoidismo primário. A ultrassonografia de paratireóide evidenciava nódulo sólido medindo 1,3 x 1,0 x 1,0 cm no pólo inferior do lobo direito da tireóide. A cintilografia de paratireóide com sestamibi não apresentava acúmulo do radiotraçador. Foi realizada intervenção cirúrgica, sendo retiradas três glândulas paratireóides e meia, com auto-implante em antebraço esquerdo de metade da paratireóide restante. À histopatologia, observou-se hiperplasia de paratireóides. O paciente evoluiu com hipoparatireoidismo pós-cirúrgico e após quatro anos apresentou novamente hipercalcemia, hipofosfatemia, hipercalciúria e elevação do PTH. A cintilografia com sestamibi revelou captação na topografia do auto-implante de paratireóide em antebraço esquerdo, não havendo captação na região cervical ou torácica. Foi realizada a exerése cirúrgica da paratireóide implantada, com aspecto histológico descrito como normal, porém o paciente manteve-se hipercalcêmico. A tomografia computadorizada de tórax e mediastino não evidenciou lesões sugestivas de adenomas. O paciente foi submetido a nova cervicotomia exploradora, onde nada foi encontrado. Foi realizada, então, uma flebografia com dosagens do PTH ao nível das veias jugulares, ázigo e periféricas de antebraço, cujos resultados não conseguiram identificar uma única origem de produção hormonal, não havendo gradiente entre esses sítios. Os níveis de PTH se mantiveram entre 250–300 pg/ml em todas as amostras. Este último dado sugere uma possível disseminação metastática de um carcinoma de paratireóide. A associação entre HFI e maior incidência de carcinoma de paratireóide é descrita (2). Esse paciente está sendo acompanhado periodicamente com métodos radiológicos de imagem.

A paciente IV.4, feminina, branca, 41 anos, era assintomática e realizou investigação de hiperparatireoidismo primário devido a importante história familiar, com a mãe e um irmão acometidos. Não apresentava história prévia de hipertensão arterial, nefrolitíase, dor óssea ou fraturas. Ao exame físico, apresentava nódulo palpável de aproximadamente 2 cm no terço inferior do lobo direito da tireóide, com consistência firme e móvel à deglutição. A ultrassonografia de paratireóides apresentava nódulo sólido, isoecóico, com área cística, sem microcalcificações e sem halo, no pólo inferior do lobo direito da tireóide, medindo 2,8 x 2,1 x 1,2 cm. Na região posterior do terço médio do lobo direito, observava-se nódulo sólido, hipoecóico, medindo 1,1 x 0,8 x 0,9 cm, compatível com paratireóide aumentada de tamanho. A cintilografia das paratireóides com sestamibi foi negativa para adenoma de paratireóide.

A paratireoidectomia foi realizada associada a lobectomia subtotal direita, sendo retiradas as paratireóides superior e inferior à direita e metade da glândula inferior esquerda. A paratireóide superior esquerda apresentava-se sem alteração. À histopatologia foi diagnosticado adenoma de paratireóide de 2 cm no terço médio do lobo direito da tireóide, adenoma de paratireóide de 4 cm em goteira tráqueo-esofágica à direita, e a metade da paratireóide inferior esquerda foi normal. A paciente evoluiu com rouquidão transitória e hipoparatireoidismo pós-operatório, estando em tratamento clínico deste.

A paciente IV.5, feminina, branca, 42 anos, foi identificada como um novo caso assintomático de hiperparatireoidismo primário e não apresentava história prévia de nefrolitíase, dor óssea ou fraturas. Foi realizada ultrassonografia de paratireóides, que observou um nódulo sólido, hipoecóico, sem microcalcificações, medindo 1,6 x 0,8 x 0,7 cm, na projeção do pólo inferior do lobo direito da tireóide, sugerindo ser uma glândula paratireóide aumentada. A cintilografia de paratireóides com sestamibi foi negativa para adenoma. Realizada intervenção cirúrgica com retirada de três paratireóides e meia, com auto-implante de meia paratireóide no músculo esternocleidomastóideo esquerdo. À histopatologia, observou-se um adenoma de paratireóide, compatível com a localização referida ao ultrassom. Evoluiu com hipoparatireoidismo transitório no pós-operatório e posterior recuperação funcional.

Os dados dos seis pacientes acima descritos estão resumidos na tabela 2.

Exame clínico e anamnese direcionada em busca de endocrinopatias associadas à NEM 1 ou NEM 2a, ou tumores de mandíbula associados à síndrome HPT/TM, foram realizados em todos os pacientes. As dosagens de glicemia de jejum, insulina basal, prolactina, gastrina sérica e IGF-1 foram realizadas em todos os pacientes como triagem inicial dos principais tumores associados à NEM (20).

A análise desta família permitiu identificar a idade precoce em torno de 20–40 anos por ocasião do diagnóstico. Duas pacientes apresentavam acometimento ósseo, um apresentava história prévia de nefrolitíase e três eram assintomáticos. Em cinco pacientes, a identificação ultrassonográfica foi compatível com os achados cirúrgicos. A cintilografia de paratireóide com sestamibi não evidenciou captação do radiotraçador em três pacientes identificados no pós-operatório como portadores de adenomas, e em um paciente com hiperplasia da glândula. Houve recidiva em três pacientes alguns anos após a intervenção cirúrgica.

Clinicamente, nenhum paciente apresentava história prévia de cefaléia persistente, distúrbios visuais, galactorréia, irregularidade menstrual, impotência, diminuição de libido ou infertilidade, indicadores sugestivos de hiperprolactinemia por adenoma hipofisário. Os pacientes não relatavam história prévia de úlcera péptica, diarréia aquosa ou outros sintomas gastrointestinais sugestivos de tumores entero-pancreáticos que podem se associar à NEM 1.

Em relação à avaliação clínica dos pacientes, nenhum apresentava, ao exame físico, lesões dermatológicas sugestivas de NEM 1, como angiofibromas faciais e colagenomas. Nenhum paciente avaliado apresentava nódulos à palpação da tireóide, à exceção da paciente IV.5, o qual posteriormente à cirurgia foi identificado como paratireóide aumentada.

Nenhum paciente apresentava hábito marfanóide ou neuromas mucosos presentes na NEM 2b. Não há história, nesta família, de hipercalcemia neonatal ou na infância. Nenhum dos pacientes possuía massas ou anormalidades em região maxilar e mandibular.

Os exames laboratoriais para investigação de NEM foram normais.

DISCUSSÃO E CONCLUSÕES

O HFI é um distúrbio com padrão de transmissão autossômico dominante. O heredograma desta família reforça esse dado descrito na literatura (1,2).

A idéia de que o HFI poderia ser uma variante da NEM 1 foi sugerida inicialmente a partir de estudos genéticos em uma grande linhagem dinamarquesa (6). Estudos recentes sustentam essa hipótese, demonstrando nova mutação missense no gene da NEM 1 (1,7,8) e a associação da alta freqüência dessas mutações com o HFI (7,9). A heterogeneidade genética entre as famílias com HFI não pode ser desprezada, sendo possível que algumas famílias representem, de fato variantes, verdadeiras da NEM 1 (9).

Mustapha e cols. sugerem que as famílias com acometimento multiglandular das paratireóides constituem variantes da NEM 1 e que, nessas famílias, um screening clínico para endocrinopatias relacionadas à NEM 1 e à análise genética do gene desta deveriam ser priorizados. Em outro aspecto, famílias caracterizadas por adenomas solitários e/ou carcinomas, que mais freqüentemente se apresentem com profunda hipercalcemia ou crise hipercalcêmica, a síndrome HPT/TM deveria ser considerada e o seu gene investigado (1).

O gene da síndrome HPT/TM está localizado no lócus HRPT2 no cromossomo 1q21-32. Teh e cols. sugerem que o HFI representaria uma variante desta síndrome com ligação nesse lócus, e que este seria um gene supressor (10). Outros autores referem, entretanto, que o HFI seria raramente causado por uma mutação na linhagem germinativa do HRPT2 (11).

Mutações no gene HRPT2 têm sido relacionadas ao desenvolvimento de carcinoma de paratireóide (22), sendo sugerida a necessidade de avaliação do gene HRPT2 em famílias com HFI (12), especialmente aquelas com presença de carcinoma de paratireóide, adenomas atípicos ou adenomas com alterações císticas (17,18).

Mutações germinativas no gene da NEM 1, CASR e HRPT2 já foram descritas em famílias com HFI (13,17,18) e novas técnicas de screening genético têm sido desenvolvidas (19).

Enquanto alguns autores sugerem que o HFI esteja relacionado a mutações genéticas de síndromes familiares que cursam com hiperparatireoidismo primário, outros autores sugerem que este seja uma entidade geneticamente distinta, observando-se um risco maior de malignidade nesses tumores (2). Apesar da raridade de ambos os distúrbios, a associação de carcinoma de paratireóide em famílias com HFI é descrita como não incomum (14,15). Ressalta-se que nenhum gene foi associado exclusivamente ao HFI até o momento.

Clinicamente, os sintomas do hiperparatireoidismo primário diferem pouco quando este é esporádico ou de causa hereditária, podendo ser assintomático ou, em sua apresentação clássica, promover grave comprometimento ósseo e renal (5,21).

A hipercalcemia no HFI é geralmente mais grave comparada às outras síndromes familiares que cursam com hiperparatireoidismo primário. O desenvolvimento da hipercalcemia também é mais precoce no HFI do que na apresentação esporádica, podendo ocorrer em faixas etárias semelhantes às das NEM, ou mesmo na infância e adolescência (23). Todos os nossos casos descritos apresentaram o quadro de hiperparatireoidismo em uma faixa etária precoce (entre 20–40 anos). Há maior incidência de hipercalcemia grave e a doença parece ser mais agressiva do que a forma esporádica ou associada à NEM (5,24). Em nossos casos, o estudo clínico e bioquímico não revelou qualquer anormalidade que sugerisse NEM.

A alta incidência de acometimento multiglandular, glândulas supranumerárias e alto índice de recorrência nas formas familiares de hiperparatireoidismo primário reforçam uma abordagem cirúrgica mais agressiva. O risco aumentado de carcinoma de paratireóide também reafirma essa conduta (16,25,26). O caso do nosso paciente IV.6 sugere a existência de metástases ainda não identificadas de possível carcinoma de paratireóide, impondo rigoroso acompanhamento para elucidação diagnóstica.

Em relação aos exames de imagem, a ultrassonografia e a cintilografia de paratireóide têm acurácia reduzida quando há acometimento multiglandular, como ocorre na maioria dos casos de hiperparatireoidismo primário hereditário (27). As hiperplasias glandulares podem não ser identificadas ao ultrassom e cintilografia, sendo importante, neste caso, a exploração de todas as glândulas durante o ato cirúrgico (25). Os dois métodos em conjunto auxiliam na localização de glândulas ectópicas (27,28). Conforme observado em nossos casos, o ultrassom, nos cinco pacientes que o realizaram, foi conclusivo e compatível com os achados pós-operatórios, estando nestes a cintilografia negativa. Enquanto isso, apenas em dois dos seis pacientes a cintilografia com sestamibi foi diagnóstica.

Todos os casos índices apresentaram acometimento multiglandular das paratireóides. Esse acometimento multiglandular poderia justificar a presença de cintilografias com sestamibi normais na leitura padronizada de 2 horas, o que foi discordante dos achados pós-operatórios.

A alta prevalência de recidiva do hiperparatireoidismo ocorrendo, até o momento, em dois dos seis pacientes, também é encontrada no HFI (5). Ressalta-se que a presença de glândulas supranumerárias pode ser responsável pelo alto índice de recorrência, o que não foi observado em nenhum dos nossos casos até o momento.

A observação de três gerações nesta família sem o surgimento de outras endocrinopatias sugestivas de NEM é um fator que reforça a hipótese de HFI.

Foi realizada uma exclusão clínica e laboratorial de outras síndromes familiares que cursem com hiperparatireoidismo; entretanto, se faz necessário o acompanhamento a longo prazo desses pacientes que são inicialmente identificados como portadores de HFI, para o possível surgimento de alguma outra endocrinopatia que sugira NEM (20). A análise genética dos casos índices poderia ser um instrumento auxiliar nesse diagnóstico (29,30).

A existência de hiperparatireoidismo em pacientes jovens ou que tenham apresentado recidivas direciona a investigação familiar. A possibilidade de orientação clínica e genética aos indivíduos desta família reflete a importância da identificação desta rara síndrome de hiperparatireoidismo familiar.

Recebido em 02/01/07

Aceito em 27/04/07

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  • Endereço para correspondência:
    Lívia Xavier Moulin
    Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia – IEDE
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    20211-340 Rio de Janeiro, RJ
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Recebido
      02 Jan 2007
    • Aceito
      27 Abr 2007
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