INTRODUÇÃO
A associação de duas ou mais doenças autoimunes glandular-específicas em um mesmo indivíduo é configurada como síndrome poliglandular autoimune (SPA) e seus sinais e sintomas se apresentam de forma semelhante aos da doença isolada (1). A SPA tipo 2 (SPA-2) é caracterizada pela associação de doença de Addison (em 100% dos casos) com diabetes autoimune e/ou doença autoimune da tireoide (tireoidite de Hashimoto ou doença de Graves).
O hipotireoidismo pode, portanto, ser um dos componentes da SPA-2, podendo apresentar-se, em seu quadro clínico geral, com manifestações neurológicas periféricas, tais como a polineuropatia. São descritos dois tipos de anormalidades do sistema nervoso periférico no hipotireoidismo: mononeuropatia e polineuropatia sensitivo-motora (2).
A incidência de polineuropatia em pacientes com hipotireoidismo não é precisamente conhecida, porém em vários estudos foi demonstrado que a queixa da perda sensorial distal está presente em 29% a 64% dos pacientes (2). Os sinais clínicos de polineuropatia, por sua vez, são observados em 25% a 42% dos pacientes, enquanto a evidência eletrofisiológica é reportada em 17% a 72% dos casos (3-7).
Alguns autores sugerem que a patologia primária da neuropatia tireóidea é a desmielinização, talvez como resultado de anormalidades metabólicas das células de Schwann com degeneração axonal secundária (8,9). Outros propõem a patologia axonal primária com desmielinização secundária (10,11).
Este artigo relata o caso de um paciente portador de SPA-2 que apresentou, como manifestação clínica inicial, um quadro de polineuropatia.
RELATO DE CASO
P.R.C.S., sexo masculino, 41 anos, foi avaliado inicialmente por neurologista com queixa de parestesias e fraqueza lentamente progressiva acometendo os quatro membros. Referia também sonolência, astenia, intolerância ao frio, vertigens, náuseas e avidez por sal. No exame físico geral, notavam-se hiperpigmentação da pele e mucosas, apesar do uso rotineiro e adequado de filtro solar, além de hipotensão. O exame neurológico demonstrou hiporreflexia profunda global e simétrica com discretos sinais de hipoestesia superficial em extremidades dos membros. Os exames laboratoriais (Tabela 1) mostraram hipercalemia grave (K: 7,6 mEq/L), hiponatremia (Na: 124 mEq/L) e acidose metabólica (pH: 7,1). A ressonância magnética do encéfalo e coluna cervical, além do estudo do líquido cefalorraquidiano, não demonstrou anormalidades. O estudo eletroneuromiográfico (ENMG) revelou sinais de uma polineuropatia desmielinizante sensitivo-motora moderada. Outros exames revelaram: TSH de 94 uUI/mL, T4 livre de 0,3 ng/dL, cortisol basal (das 8h) de 1,0 µg/dL, ACTH de 753 pg/mL, glicemia de jejum de 89 mg/dL, anticorpos anti-TPO de 7700 UI/mL, anti-ilhota não reagente, anti-insulina de 1,0 U/mL (não reagente < 5 U/mL) e anti-GAD de 4,1 UI/mLl (não reagente < 10 UI/mL). USG de tireoide mostrava sinais de tireoidopatia difusa. O paciente recebeu diagnóstico de polineuropatia atribuída ao hipotireoidismo (secundário à tireoidite de Hashimoto) e insuficiência adrenal primária (doença de Addison). A associação dessas duas doenças glandulares autoimunes caracterizou a SPA-2. Foi iniciada reposição de hidrocortisona 15 mg/dia e, 48 horas após, levotiroxina 50 mcg/dia. Como não houve melhora da hipercalemia, o paciente iniciou uso de fludrocortisona 0,05 mg/dia. Com normalização dos hormônios tireoideanos, o paciente apresentou resolução gradual e completa das queixas e das alterações encontradas nos exames físico geral e neurológico. A ENMG, repetida após seis meses, evidenciou resolução completa do quadro neuropático.
Tabela 1 Resultado dos exames laboratoriais do paciente
Exames | Resultado | Valores de referência |
---|---|---|
ACTH | 753 pg/ml | 0 a 46 pg/ml |
Anticorpo anti-TPO | 7700 UI/mL | 0 a 35 UI/mL |
Anticorpo anti-GAD | 4,1 UI/mL | Não reagente < 10 UI/mL |
Anticorpo anti-ilhota | Não reagente | Não reagente < 0,5 U/mL |
Anticorpo anti-insulina | 1,0 U/mL | Não reagente < 5 U/mL |
Potássio sérico | 7,6 mEq/L | 3,5 – 5,0 mEq/L |
Cortisol basal (das 8h) | 1,0 µg/dL | 5,4 – 25 µg/dL |
Glicemia de jejum | 89 mg/dL | 60 – 99 mg/dL |
pH sanguíneo | 7,1 | 7,35 – 7,45 |
Sódio sérico | 124 mEq/L | 135 – 145 mEq/dL |
T4 livre | 0,3 ng/dL | 0,7 – 1,8 ng/dL |
TSH | 94 µUI/mL | 0,3 – 5 µUI/mL |
DISCUSSÃO
No intuito de verificar a associação com diabetes autoimune em fase latente, foram dosados os seguintes autoanticorpos: anti-ilhota, anti-insulina e antidescarboxilase do ácido glutâmico (anti-GAD). Os valores normais encontrados tornam difícil uma possível evolução para essa patologia.
Neufeld e cols. estabeleceram uma classificação para as SPAs: tipo 1 – caracteriza-se pela presença da doença de Addison, candidíase crônica e hipoparatireodismo crônico (pelo menos duas dessas presentes); tipo 2 – apresenta doença de Addison associada a diabetes melito tipo 1 (30% a 52%) e/ou hipotireodismo (69% a 82%); tipo 3 – cursa com doença autoimune da tireoide associada com outras doenças autoimunes (exceto Addison e/ou hipoparatireodismo); tipo 4 – envolve combinações de doenças autoimunes exceto as já supracitadas (12-15).
O diagnóstico da SPA-2 é raro em humanos. A prevalência dessa síndrome é de 1,4-4,5 por 100.000 habitantes (1), acometendo predominantemente o sexo feminino, em uma razão de 2,7-3,7, e é mais comum entre os 35 anos de idade (12,13,16,17). A dificuldade na identificação da doença de Addison de etiologia autoimune (adrenalite autoimune), na sua fase assintomática, contribui para o retardo no diagnóstico da SPA-2.
A peculiaridade do caso consiste na forma de apresentação clínica inicial da doença que se manifestou por meio de uma polineuropatia em consequência do hipotireoidismo, associação excepcional, especialmente dentro de um quadro de SPA-2.
Khedr e cols., em estudo com pacientes portadores de hipotireoidismo, mostraram que 78% destes tinham acometimento do sistema nervoso central, refletido por um ou mais testes eletrofisiológicos anormais. Analisando resultados de eletromiografia e velocidade de condução nervosa, relataram que 52% desses pacientes tinham acometimento do sistema nervoso periférico, concluindo que o sistema nervoso central foi mais vulnerável aos efeitos do hipotireoidismo (18).
Eslamian e cols. avaliaram achados eletrofisiológicos em pacientes com hipotireoidismo espontâneo não tratado e verificaram uma considerável proporção desses pacientes com síndrome do túnel do carpo (STC). Os pesquisadores relataram que neuropatia leve do tipo sensorial e miopatia foram formas incomuns de envolvimento neuromuscular e reforçam que o diagnóstico e tratamento precoce podem retardar a progressão dessas complicações ou minimizar a ocorrência delas (19).
Vários achados em estudos da condução nervosa realizados em pacientes com hipotireoidismo foram relatados, incluindo a baixa amplitude ou ausência dos potenciais de ação dos nervos sensitivos, a desaceleração suave de condução motora e sensorial e o prolongamento moderado das latências motoras distais (5,10,20). Esses achados sugerem uma combinação de características axonal e desmielinizante. Essas anormalidades podem ser vistas em pacientes com um quadro de hipotireoidismo subclínico, bem como no hipotireoidismo evidente e em pacientes sem sintomas de neuropatia (21).
Beghi e cols. (5) avaliaram 39 indivíduos com hipotireoidismo por meio do estudo eletrofisiológico, encontrando o diagnóstico de polineuropatia em 72% dos casos. Destes, 68% apresentavam sintomas sugestivos da alteração neurológica. Os nervos sensitivos foram os mais acometidos. Outro estudo evidenciou anormalidades no estudo de condução nervosa em 63% dos sujeitos com hipotireoidismo avaliados e comparou os resultados com indivíduos com outras causas de polineuropatia, não encontrando diferença quanto ao grau de envolvimento neurológico periférico entre os dois grupos (22).
A manifestação clínica mais comum nos casos de polineuropatia hipotireóidea é o distúrbio simétrico da sensibilidade, com distribuição predominantemente distal, afetando inicialmente os pés mais severamente que as mãos (5). Além disso, a perda da sensibilidade tátil e parestesia são comuns. O atraso do relaxamento dos reflexos é uma característica do hipotireoidismo. Raramente, a fraqueza distal e a atrofia podem estar presentes (5).
O início e a duração dos sintomas da neuropatia e hipotireoidismo são geralmente concomitantes. Contudo, os sintomas da neuropatia podem estar presentes anos antes de o diagnóstico do hipotireoidismo ser feito. A gravidade dos sintomas neuropáticos não está diretamente correlacionada com o grau de deficiência da tireoide, mas pode estar associada com a duração do hipotireoidismo (20).
No estudo de Eslamian e cols., não foi encontrada relação significante entre gênero, duração da doença, gravidade da deficiência tireoideana e presença clínica de fraqueza muscular, com a ocorrência de neuropatia ou miopatia. Pacientes com neuropatia foram significativamente mais velhos que aqueles sem, mas os pesquisadores reforçam que não está claro se a idade é ou não um fator de risco independente para neuropatia (19).
A presença da perda de sensibilidade distal e a redução ou ausência dos reflexos tendíneos profundos sugerem uma polineuropatia sensorial em pacientes com hipotireoidismo conhecido. Testes eletrofisiológicos ajudam a confirmar e caracterizar a polineuropatia.
O mecanismo exato da polineuropatia associada ao hipotireoidismo ainda não é totalmente entendido, porém algumas hipóteses foram formuladas: 1) presença do complexo proteína e mucopolissacarídeos dentro do endoneuro e perineuro; 2) redução no número de grandes fibras mielinizadas com desmielinização e remielinização de segmentos; 3) agregados de grânulos de glicogênio, mitocôndrias, gotas lipídicas e corpos lamelares; 4) degeneração axonal com retração dos axônios e rompimento de neurotúbulos e neurofilamentos (8,10,20).
Estudos clínicos e eletrofisiológicos de Pollard e cols. e de Nemni e cols., feitos por meio de biópsia dos nervos e análise microscópica, mostraram baixa amplitude ou ausência de potenciais de ação dos nervos sensitivos; moderada lentidão da velocidade de condução motora e sensitiva; e moderado prolongamento da latência motora distal. Alterações microscópicas encontradas foram a perda de fibras mielinizadas de todos os diâmetros, sendo as de grande diâmetro afetadas principalmente, e degeneração axonal e de fibras. Esses estudos evidenciaram que a polineuropatia associada ao hipotireoidismo deve-se em grande parte à degeneração axonal (8,10,20). Os não responsivos ao tratamento têm uma maior duração dos sintomas e uma maior característica axonal (2).
Não há características clínicas ou eletrofisiológicas que diferenciem a polineuropatia hipotireóidea de uma neuropatia devido a outras causas (2). O principal indicador da etiologia hipotireóidea para a polineuropatia do paciente foi a completa reversão do quadro clínico neurológico e eletroneuromiográfico após a reposição com levotiroxina e normalização da função tiroideana.
Os estudos de Dick e cols. mostram que a reposição hormonal com tiroxina é efetiva no tratamento da polineuropatia hipotireóidea, percebendo-se melhora clínica e eletrofisiológica, com o retorno ao estado eutireóideo (23).
Kececi e Degirmenci estudaram a condução nervosa em pacientes com hipotireoidismo e polineuropatia. Dos sete pacientes, quatro restauraram completamente a condução nervosa, normalizando os valores da latência e amplitude da parte motora do nervo mediano e a velocidade de condução da parte sensorial dos nervos sural e mediano, após três meses do início do tratamento (4).
Nenhum relato de caso descrevendo uma polineuropatia hipotireóidea em um indivíduo com SPA-2 foi encontrado na literatura.
Em conclusão, descrevemos um caso raro de SPA-2, cuja manifestação inicial foi uma polineuropatia sensitivo-motora secundária ao hipotireoidismo. Ressaltamos a importância da dosagem dos hormônios tireoideanos em quadros de polineuropatia e da reposição hormonal como forma efetiva de tratamento da polineuropatia hipotireóidea.