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Lesão escleral durante o agulhamento com mitomicina C: relato de caso

Scleral injure caused by needling revision with adjunctive mytomicin-C: case report

Resumos

Paciente de 70 anos foi submetida à cirurgia de catarata e glaucoma no olho esquerdo em 1996. Onze anos depois, com a pressão intraocular descontrolada (32 mmHg), foram realizados dois agulhamentos episclerais com mitomicina-C, na tentativa de recuperar a função da trabeculectomia. Após o segundo agulhamento, a paciente evoluiu com importante hiperfiltração, atalamia grau III e iminente descompensação da córnea. Foi tentado o tratamento clínico com corticóide, cicloplégico, inibidores da produção do aquoso e lente de contato terapêutica, sem sucesso. A câmara anterior foi sucessivamente preenchida com ar, metilcelulose 4% e hialuronato de sódio 1%, com melhora apenas temporária. Foram feitas suturas compressivas sobre a bolsa filtrante, sem sucesso. Realizou-se, então, a revisão cirúrgica da fístula, que evidenciou grande área de exposição do corpo ciliar e da coróide, correspondente ao local do agulhamento. O quadro estabilizou-se após recobrimento com enxerto de esclera de cadáver e reintrodução de terapia hipotensora tópica. A gravidade da complicação descrita por um procedimento relativamente fácil e seguro, ressalta a importância deste relato de caso.

Agulhas; Mitomicina; Esclera; Relatos de casos


A 70-year-old female patient underwent cataract and glaucoma surgery on her left eye in 1996. Eleven years later, we performed two bleb needling revisions with adjunctive mytomicin-C, in order to decrease an uncontrolled intraocular pressure of 32 mmHg. After the second needling, she developed severe overfiltration, with flat anterior chamber, choroidal effusion, and impending corneal decompensation. Conservative treatment with cycloplegic and corticosteroid eye drops, acetazolamide and therapeutic contact lenses was unsuccessfully tried. Anterior chamber reformation was successively tried with air, 4% ophthalmic viscosurgical device and 1% sodium hyaluronate, with only temporary results. Compressive sutures above the overfiltering bleb were applied, unsuccessfully. In order to avoid additional corneal endothelium damage, a surgical bleb revision was performed and revealed a large area of ciliary body and choroidal exposure under the conjunctiva. It was covered by a donor scleral patch graft providing successful resolution. Nevertheless, we had to reintroduce hypotensive eyedrops. While bleb needling is a relatively safe and effective procedure, ophthalmologists should be aware of the possibility of potentially serious complications, such as in this case report.

Needles; Mitomycin; Sclera; Case reports


RELATOS DE CASOS

Lesão escleral durante o agulhamento com mitomicina C: relato de caso

Scleral injure caused by needling revision with adjunctive mytomicin-C: case report

Heloisa Andrade Maestrini; Thatiana Almeida Pereira Fernandes; Hérika Danielle De Miranda Santos Matoso; Willer Otávio Guimarães Amaral; Ângela Andrade Maestrini

Physician, Clínica Oculare, Belo Horizonte (MG), Brasil

Correspondence address Correspondence address: Heloisa Andrade Maestrini. Rua Maranhão, 655 Belo Horizonte - MG CEP: 30150-330 Brazil E-mail: wlod@terra.com.br

RESUMO

Paciente de 70 anos foi submetida à cirurgia de catarata e glaucoma no olho esquerdo em 1996. Onze anos depois, com a pressão intraocular descontrolada (32 mmHg), foram realizados dois agulhamentos episclerais com mitomicina-C, na tentativa de recuperar a função da trabeculectomia. Após o segundo agulhamento, a paciente evoluiu com importante hiperfiltração, atalamia grau III e iminente descompensação da córnea. Foi tentado o tratamento clínico com corticóide, cicloplégico, inibidores da produção do aquoso e lente de contato terapêutica, sem sucesso. A câmara anterior foi sucessivamente preenchida com ar, metilcelulose 4% e hialuronato de sódio 1%, com melhora apenas temporária. Foram feitas suturas compressivas sobre a bolsa filtrante, sem sucesso. Realizou-se, então, a revisão cirúrgica da fístula, que evidenciou grande área de exposição do corpo ciliar e da coróide, correspondente ao local do agulhamento. O quadro estabilizou-se após recobrimento com enxerto de esclera de cadáver e reintrodução de terapia hipotensora tópica. A gravidade da complicação descrita por um procedimento relativamente fácil e seguro, ressalta a importância deste relato de caso.

Descritores: Agulhas/efeitos adversos; Mitomicina/efeitos adversos; Esclera/lesões; Relatos de casos

ABSTRACT

A 70-year-old female patient underwent cataract and glaucoma surgery on her left eye in 1996. Eleven years later, we performed two bleb needling revisions with adjunctive mytomicin-C, in order to decrease an uncontrolled intraocular pressure of 32 mmHg. After the second needling, she developed severe overfiltration, with flat anterior chamber, choroidal effusion, and impending corneal decompensation. Conservative treatment with cycloplegic and corticosteroid eye drops, acetazolamide and therapeutic contact lenses was unsuccessfully tried. Anterior chamber reformation was successively tried with air, 4% ophthalmic viscosurgical device and 1% sodium hyaluronate, with only temporary results. Compressive sutures above the overfiltering bleb were applied, unsuccessfully. In order to avoid additional corneal endothelium damage, a surgical bleb revision was performed and revealed a large area of ciliary body and choroidal exposure under the conjunctiva. It was covered by a donor scleral patch graft providing successful resolution. Nevertheless, we had to reintroduce hypotensive eyedrops. While bleb needling is a relatively safe and effective procedure, ophthalmologists should be aware of the possibility of potentially serious complications, such as in this case report.

Keywords: Needles/adverse effects; Mitomycin/adverse effects; Sclera/injuries; Case reports

INTRODUÇÃO

A principal causa de falência da trabeculectomia (TREC) é a fibrose da conjuntiva, Tenon e episclera sobre a fístula(1-2). Para recuperar sua função, o agulhamento episcleral com antimetabólitos é bastante utilizado, sendo uma opção fácil, simples, barata e bem aceita pelo paciente(2-5).

As complicações mais frequentes do agulhamento são hemorragia subconjuntival, hifema, câmara anterior rasa, descolamento seroso da coróide e vazamento de humor aquoso pelo orifício de entrada da agulha(5-6). Todas geralmente são transitórias e têm resolução espontânea, raramente exigindo novas intervenções. No entanto, algumas complicações graves já foram descritas na literatura, tais como penetração acidental de mitomicina na câmara anterior com descompensação corneana(6), atalamia, descolamento hemorrágico da coróide(5), glaucoma maligno(7) e endoftalmite. No presente caso, relatamos uma complicação rara e grave após o agulhamento com mitomicina-C (MMC).

RELATO DO CASO

Paciente feminina, de 70 anos, submetida à cirurgia de catarata e glaucoma no olho esquerdo há 11 anos. Ao procurar nosso serviço, apresentava, neste olho, acuidade visual de 20/40, bolsa filtrante ausente, com linhas cicatriciais na conjuntiva, curva diária da pressão intraocular (PIO) com valores entre 28 e 32 mmHg (em uso de maleato de timolol 0,5%), seio camerular amplo, com óstio interno da TREC parcialmente obstruído por íris e vítreo, além de disco óptico pálido, com escavação total. Como tratamento, optou-se pela desobstrução do óstio interno da fístula com YAG-laser e pelo agulhamento episcleral, no bloco cirúrgico, com injeção subconjuntival de MMC (0,1 ml de MMC a 0,25 mg/ml diluído em 0,1 ml de xilocaína 2% com epinefrina). Após um mês, a bolsa filtrante estava elevada e a PIO era de 10 mmHg sem medicação, demonstrando a recuperação funcional da TREC.

Dez meses depois, a bolsa aplanou-se e a PIO subiu para 29 mmHg. O agulhamento foi repetido na lâmpada de fenda, usando-se a mesma dose de MMC. Já no 1º DPO (dia de pós-operatório), podiam-se observar sinais de hiperfiltração: Po zero, bolsa muito grande e elevada, além de atalamia grau II (toque de toda a íris com a córnea). Foram prescritos colírios de dexametasona 2/2 h, moxifloxacina 4x/dia e atropina 1% 4x/dia. A atalamia agravou-se após cinco dias, evoluindo para grau III (completa) e a ecografia mostrou descolamento periférico da coróide. A câmara foi refeita com ar à lâmpada de fenda, foram prescritas prednisona 40 mg/dia e acetazolamida 125 mg 3x/dia e colocada lente de contato terapêutica. No 11º DPO foram realizadas cinco suturas compressivas com nylon 9-0 sobre a bolsa e a câmara foi refeita com metilcelulose 4%, permanecendo formada por apenas dois dias (tempo da absorção do viscoelástico). Nova tentativa foi feita com hialuronato de sódio 1%, que durou menos de um dia. Diante da descompensação iminente da córnea, foi feita a revisão cirúrgica da fístula, que evidenciou, logo abaixo da conjuntiva muito fibrosada, grande área de exposição do corpo ciliar e da coróide na região superior e temporal superior, sítio onde havia sido realizado o agulhamento. Concluímos que o agulhamento foi realizado em um plano intraescleral e não episcleral, que seria o correto. Foi feito grande enxerto de esclera medindo 18 x 8 mm sobre a área de exposição uveal, suturado com nylon 10-0, e a conjuntiva foi ancorada à córnea, cobrindo o enxerto. A câmara anterior foi refeita com ar. No 1º DPO, a câmara estava profunda e a PIO era de 24 mmHg. A córnea recuperou a transparência em poucos dias. A paciente foi tratada com corticóide tópico e oral e foi reintroduzida a terapêutica hipotensora (timolol, brimonidina, travoprosta e acetazolamida, esta última suspensa após 30 dias). Dois meses após o enxerto, a PIO estava em 18 mmHg, o olho calmo, a córnea transparente e a câmara profunda. Após 18 meses, a PIO era de 12 mmHg e a acuidade visual de 20/50.

COMENTÁRIOS

O sucesso do agulhamento depende do estado da conjuntiva sobre a fístula(1,4). A presença de cicatrizes e de grande quantidade de Tenon, além de dificultar o procedimento, indica um pior prognóstico para a formação da bolsa fistulante. Quase sempre é mais fácil realizar o agulhamento de bolsas de base fórnice do que de base límbica, pois estas geralmente deixam linhas cicatriciais na conjuntiva.

No presente caso, a conjuntiva da paciente apresentava várias cicatrizes e estava fortemente aderida à Tenon e à esclera. Acreditamos que este tenha sido o principal fator para que o agulhamento tenha sido realizado em um plano incorreto, intraescleral e não episcleral. Outra possibilidade aventada para o quadro seria a possível necrose da esclera pela ação da MMC. Vários casos de necrose escleral relacionados ao uso de MMC foram relatados após a cirurgia de pterígio(8-9), mas estes geralmente ocorrem após meses ou anos da cirurgia, e não em poucos dias como no presente caso. Nos últimos anos, a injeção subconjuntival de MMC vem sendo utilizada com frequência tanto no per, quanto no pós-operatório da cirurgia de glaucoma e nos agulhamentos, não havendo, até o momento, nenhum relato de necrose escleral decorrente deste uso, mesmo em trabalhos que utilizaram alta concentração de MMC(10). Portanto, no presente caso, a lesão escleral nos parece ter sido causada mais por um fator mecânico provocado pela agulha do que químico ou biológico causado pela MMC.

Conclui-se que, a despeito de o agulhamento ser um procedimento relativamente fácil e seguro, em olhos com importante fibrose conjuntival, pode ser realizado em um plano incorreto, com lesão da esclera e consequente hiperfuncionamento da fístula.

Submitted for publication: May 14, 2009

Accepted for publication: April 26, 2010

Study carried out at the Clínica Oculare, Belo Horizonte (MG), Brasil.

Funding: No specific financial support was available for this study.

Disclosure of potential conflicts of interest: H.A.Maestrini, None; T.A.P.Fernandes, None; H.D.M.S. Matoso, None; W.O.G.Amaral, None; A.A.Maestrini, None.

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    Heloisa Andrade Maestrini.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Jul 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Recebido
      14 Maio 2009
    • Aceito
      26 Abr 2010
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