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Sobre o preço e valor das publicações científicas: reclamação ou indignação?

EDITORIAL EDITORIAL

Sobre o preço e valor das publicações científicas: reclamação ou indignação?

Harley E. A. BicasI; Wallace ChamonII

IOftalmologista. Departamento de Oftalmologia. Faculdade de Medicina. Universidade de São Paulo - USP - Ribeirão Preto (SP), Brasil

IIOftalmologista. Departamento de Oftalmologia. Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP - São Paulo (SP), Brasil

Uma das peculiaridades do tempo em que vivemos é a enorme velocidade com que se processam transformações. Elas são de variadas ordens, afetando diretamente as condições de vida das pessoas e de suas oportunidades, tudo, basicamente, causado pelo rapidíssimo progresso científico e tecnológico. Obviamente, portanto, nessa vertiginosa temporalidade em que concepções, costumes e comportamentos são muitas vezes mudados, até de forma radical, não deveria surpreender o fato de que a própria ciência sofresse abalos em suas ações e no modo como elas são transmitidas. Desenha-se uma turbulência relativa à disseminação dos trabalhos acadêmicos, na qual a comunidade que os produz, geralmente pouco afeita a protagonismos, parece decidida a reagir. De fato, um cientista deve pagar para publicar seus trabalhos? Deve pagar para ter acesso ao conhecimento gerado pelos seus colegas?

Pode-se supor como procederam os autores das primeiras descobertas e como se propagou, inicialmente, o conhecimento então adquirido (lentamente trabalhado, ou casualmente encontrado). É bem provável que alguns tenham procurado ciosamente guardá-lo, usufruindo as vantagens de sua posse; conquanto outros optassem por seu imediato compartilhamento, representando o pensamento dos cientistas. De qualquer modo, o que permitiu avanços às gerações seguintes, tanto os de aperfeiçoamentos desses conhecimentos, quanto os de se chegar a outros novos a partir deles, foi, inequivocamente, tê-los recebido. Em suma, a divulgação do conhecimento é necessária à sua evolução, é da lógica da própria ciência que ela se multiplique por sua difusão.

Hoje, a ciência ainda mantém esses modelos de aquisição, acumulação e uso do conhecimento (cioso ou compartilhado), entendidos como próprios da natureza humana. Mas profissionalizou-se, está organizada, institucionalizada, em indústrias e universidades, ambas investindo em pesquisas. As indústrias, para usufruir proveitos de seus trabalhos, distribuindo-os a seus financiadores (acionistas). As engrenagens sociais permitem que os "lucros", os resultados de suas pesquisas (patentes) permaneçam privadamente mantidos (pelo menos por certo período), embora o "segredo" delas (a ciência, propriamente dita) se torne quase imediatamente conhecido. Já as universidades, objetivam conhecer mais (enfatizando a "pesquisa" como um de seus pilares básicos de sustentação), para mais e melhor difundir o conhecimento (isto é, "ensinar"). Essa missão nitidamente social, deve ser amparada pelos poderes públicos. E por isso, entende como seu dever a publicação de seus labores, em difusão ampla, geral e irrestrita, aberta e franca.

Os "cientistas" modernos divertem-se (não com o significado de folguedos - pois a pesquisa científica requer disciplina metódica e trabalho árduo - mas no sentido de seguir vertentes diferentes) na produção de conhecimentos práticos (aplicados) ou teóricos (básicos), que, ao fim, convergem a um mesmo ponto (daí as empresas "de ponta", embora "pragmáticas", investirem tanto em pesquisas "puras").

Conhecidos o cenário e os atores, chegamos agora ao enredo (palavra que descreve bem a situação de "dentro de amarras", preso a circunstâncias), às possíveis respostas contidas nas perguntas formuladas no começo.

É discutível se o princípio da publicação do conhecimento seja universal, ou deva prevalecer em toda e qualquer conjuntura. Ele não é essencialmente violado no caso das patentes (a ciência sobre os produtos que delas decorrem e que são comercializados é, por eles, automaticamente difundida, embora o "lucro" seja legalmente protegido).

As questões agora pendentes não se referem a esse contexto, mas ao comércio das publicações científicas. Ou seja, às suas compras e vendas. A postura acadêmica tradicional sempre foi a de que o conhecimento científico tem tanto valor que "não tem preço". É claro que, como trabalho, tanto a produção quanto a difusão do conhecimento devem ser remuneradas, isto é, tanto o cientista (o elemento da "pesquisa") quanto o professor (elemento do "ensino") devem receber e não, ao contrário, pagar para a realização de suas funções. Tão estranha é a cobrança de um conferencista ou palestrante para ministrar a sua "aula", quanto a de um cientista para publicar o seu artigo. Embora se explique.

Realmente, o crescente número de pesquisadores e a pressão no sentido de que seus produtos (artigos científicos) escoem (sejam publicados) por determinados veículos (revistas científicas), isto é, com bons fatores de impacto, resultou em que tais revistas se pusessem em situação privilegiada, não só passando a exigir mais qualidade nas publicações como, por outro lado, dinheiro pelo espaço concedido. Uma simples lei mercadológica da oferta (condicionada e restrita) e da procura (ampla, competitiva). Tais veículos valorizaram-se (no sentido pecuniário do termo) pela mercancia possibilitada. A possibilidade de que agências de fomento à produção científica (como, no Brasil, o CNPq, a FAPESP e outras) paguem para a publicação de um trabalho, não exclui o desvio ético dessa cobrança.

É verdade que uma revista científica tem seus custos de produção. Recepção julgamento e seleção de matérias; papel, tinta, impressão, ou disponibilização eletrônica, etc. exigem numerário. E que, por isso, pode arguir o direito de cobrar por sua leitura. (Curiosamente, parte essencial da qualidade da revista - a do julgamento do valor científico dos artigos - é, na maior parte das vezes, obtida graciosamente de assessores que se sentem "recompensados" pelo simples fato de serem chamados para o serviço.) Assim, muitas das revistas cobram por assinaturas, isto é, pela disponibilização das leituras de seus artigos a eventuais interessados (o chamado acesso pago).

Timothy Gowers, um eminente matemático da Cambridge University, rebelou-se contra a primeira "injustiça"(1,2), daí se originando um abaixo-assinado (capitaneado por outro cientista, Tyler Nylon) para boicotar os produtos da maior editora de periódicos científicos do mundo, cujas publicações seguem essas orientações de cobranças para publicar. A veneranda Harvard University insurgiu-se contra o custo das assinaturas, não porque as revistas cobrassem para ser lidas, mas por suas exorbitâncias, injustificadas sob qualquer pretexto(3). Algumas assinaturas anuais podem custar até 40 mil dólares americanos (US$) para as bibliotecas. O Ministério da Saúde brasileiro lançou recentemente um portal de acesso à publicações científicas para profissionais da saúde com custo anual estimado de US$ 5 milhões (http://periodicos.saude.gov.br)(4). Desde o final do ano 2000, o Brasil possui um dos maiores programa de acesso a literatura científica do mundo, desenvolvido pela Capes (Portal de Periódicos da Capes - http://www.periodicos.capes.gov.br). Atualmente esse portal permite o acesso a mais de 24 mil periódicos com texto completo para mais de 300 instituições. Os custo total desse projeto, em 2010, foi de 61,2 milhões de dólares americanos, grande parte paga às editoras científicas(5). O acesso pago discrimina economicamente os usuários da ciência; enquanto a cobrança de quem produz avilta o reconhecimento ao trabalho. Uma é questão econômica; a outra é infração ética. Uma requer reclamação. A outra, indignação.

Em tempo: os Arquivos Brasileiros de Oftalmologia acreditam que o acesso ao conhecimento deve ser irrestrito, não cobrando de seus autores e disponibilizando gratuitamente seu conteúdo. O acesso livre é condição sinequa non para estar presente na plataforma SciELO (www.scielo.br), uma vitoriosa iniciativa brasileira, que agora demonstra ao mundo como proceder com referência à disponibilização das "publicações" científicas. Hoje em dia, pelo que se vê, não tão "públicas" assim...

Submetido para publicação: 22 de maio 2012

Aceito para publicação: 2 de julho 2012

Financiamento: Não houve financiamento para este trabalho.

Divulgação de potenciais conflitos de interesse: H.E.A.Bicas, Nenhum; W.Chamon, Nenhum.

  • 1
    The cost of knowledge [Internet]. [updated 2012 Jul 2; cited 2012 Jul 2]. Available from: http://thecostofknowledge.com
  • 2
    Aaronson S, Arnold DN, Avila A. The cost of knowledge: statement of purpose [Internet]. [cited 2012 Jul 2]Available from: http://gowers.files.wordpress.com/2012/02/elsevierstatementfinal.pdf
  • 3
    Harvard University. Faculty Advisory Council Memorandum on Journal Pricing: major periodical subscription cannot be sustained. [Internet]. Boston: Harvard University; 2012. [updated 2012 Apr 17; cited 2012 Jul 2]. Available from:http://isites.harvard.edu/icb/icb.do?keyword=k77982&tabgroupid=icb.tabgroup143448
  • 4
    Brasil. Ministério da Saúde. Portal facilitará acesso a publicações científicas [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2012. [updated 2012 May 29; cited 2012 Jul 2]. Available from: http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/noticia/5358/162/portal-facilitara-acesso-a-publicacoes-cientificas.html
  • 5
    Almeida ECE, Guimarães JA, Alves ITG. Dez anos do Portal de Periódicos da Capes: histórico, evolução e utilização. Rev Bras Pós-Graduação. 2010;7(13):218-46.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Ago 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2012
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