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Insuficiência hepática pelo uso de isoniazida: relato de caso

Isoniazid induced hepatic failure: a case report

Resumos

A isoniazida e a pirazinamida são drogas hepatotóxicas bem conhecidas. O aparecimento da lesão hepática, em relação ao início do tratamento, é precoce com a isoniazida e mais tardio e mais grave com a pirazinamida. O objetivo deste trabalho é relatar caso de um lactente de cinco meses de idade com tuberculose pulmonar e meníngea, que desenvolveu hepatite tóxica com insuficiência hepática, durante o uso de isoniazida, pirazinamida e rifampicina. As manifestações clínicas e as alterações laboratoriais foram detectadas no quinto dia de tratamento e a melhora foi rápida, estando praticamente recuperado no final da primeira semana, após suspensão da isoniazida. Embora tenha tido necessidade de suporte em unidade de terapia intensiva, teve evolução favorável, sem seqüelas.

Insuficiência hepática; Tuberculose; Hepatite; Isoniazida; Criança


Isoniazid and pyrazinamide are both well-known hepatotoxic drugs. When isoniazid is used, the hepatic lesion appears before than when pyrazinamide is used. This paper intents to relate a case of a 5-month-old patient who had lungs' and meningeal tuberculosis and who developed toxic hepatitis accomplished by hepatic failure while he was being treated with isoniazid, pyrazinamide and rifampicin. The clinic manifestations and the laboratory alterations were detected in the fifth day of treatment and the recovery was fast; and almost complete by the end of the first week, in which the use of isoniazid had been suspended. Although it was necessary to take the patient to the intensive care unit, he had a good recovery, without sequels.

Liver failure; Tuberculosis; Hepatitis; Isoniazid; Child


RELATO DE CASOS / CASE REPORTS

INSUFICIÊNCIA HEPÁTICA PELO USO DE ISONIAZIDA.

Relato de caso

+ + Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas - FCM-UNICAMP, Campinas, SP.

Ricardo Mendes PEREIRA* + Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas - FCM-UNICAMP, Campinas, SP. , Antonia Teresinha TRESOLDI** + Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas - FCM-UNICAMP, Campinas, SP. e Gabriel HESSEL** + Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas - FCM-UNICAMP, Campinas, SP.

RESUMO ¾ A isoniazida e a pirazinamida são drogas hepatotóxicas bem conhecidas. O aparecimento da lesão hepática, em relação ao início do tratamento, é precoce com a isoniazida e mais tardio e mais grave com a pirazinamida. O objetivo deste trabalho é relatar caso de um lactente de cinco meses de idade com tuberculose pulmonar e meníngea, que desenvolveu hepatite tóxica com insuficiência hepática, durante o uso de isoniazida, pirazinamida e rifampicina. As manifestações clínicas e as alterações laboratoriais foram detectadas no quinto dia de tratamento e a melhora foi rápida, estando praticamente recuperado no final da primeira semana, após suspensão da isoniazida. Embora tenha tido necessidade de suporte em unidade de terapia intensiva, teve evolução favorável, sem seqüelas.

DESCRITORES ¾ Insuficiência hepática. Tuberculose. Hepatite. Isoniazida, efeitos adversos. Criança.

INTRODUÇÃO

A hepatotoxicidade das drogas anti-tuberculose é bem conhecida. As principais drogas causadoras deste tipo de lesão são a isoniazida e a pirazinamida(2). O objetivo deste trabalho é descrever a evolução clínica e laboratorial de um lactente com tuberculose pulmonar e de sistema nervoso central que desenvolveu hepatite tóxica com insuficiência hepática, durante o uso de esquema tríplice (isoniazida, pirazinamida e rifampicina).

RELATO DO CASO

GFBR, masculino, 5 meses, natural e procedente de São Carlos, SP. Encaminhado para investigação de quadro pulmonar. Lactente, previamente hígido, que iniciou aos 4 meses quadro de tosse progressiva, taquidispnéia, apatia, inapetência e picos febris esporádicos. Internado na cidade de origem por cerca de 20 dias, fez uso de antibioticoterapia de amplo espectro, sem melhora. A mãe referia emagrecimento de 1,2 kg. Esquema vacinal completo, inclusive BCG. Ao exame físico, apresentava: peso 4,7 kg (percentil 2,5), freqüência respiratória de 38 ipm, freqüência cardíaca de 136 bpm, regular estado geral, corado, afebril, microadenopatia cervical e axilar bilateral; tiragem intercostal, murmúrio vesicular presente com discreta diminuição em base esquerda, com roncos e estertores subcrepitantes em bases; fígado a 4 cm do rebordo costal direito e baço a 1 cm do rebordo costal esquerdo. Foi internado para elucidação diagnóstica.

Os resultados dos principais exames laboratoriais e a evolução foram: raio-x de tórax apresentava hipotransparência em hemitórax esquerdo com sinais sugestivos de pneumatoceles; a ultra-sonografia de tórax revelou imagem sólida, hipoecogênica, com várias áreas anecóicas (císticas) e hepatização do parênquima pulmonar. Na internação, os exames laboratoriais apresentavam os seguintes resultados: hemoglobina = 11,6 g/dL; hematócrito = 36,6%; leucócitos = 23800 mm3 (62% neutrófilos, 25% linfócitos, 13% monócitos); plaquetas = 525000 mm3; velocidade de hemossedimentacão = 40 mm; gasometria arterial em ar ambiente sem alterações. A baciloscopia de lavado gástrico revelou raros bacilos álcool ácidos resistentes (BAAR). No terceiro dia de internação, apresentou três episódios de convulsão tônico-clônica generalizada; foi realizada tomografia computadorizada de crânio que revelou captação de contraste em fissura Sylviana, delimitando meninges, sugestivo de neuro-tuberculose. Líquor (punção lombar): leucócitos 102 mm3 (56% linfócitos, 42% neutrófilos, 2% monócitos), proteína = 80 mg/dL, glicose = 39 mg/dL. Neste dia foi iniciado esquema tríplice (isoniazida 20 mg/kg/dia, rifampicina 20 mg/kg/dia e pirazinamida 35 mg/kg/dia) e prednisona 1 mg/kg/dia. Foram colhidas mais duas amostras de lavado gástrico para pesquisa de BAAR. No quarto dia de tratamento, iniciou queda do estado geral, vômitos, prostração. Os exames laboratoriais revelaram: AST = 1704 U/L, ALT = 363 U/L, INR = 6,17, R = 2,17, bilirrubina direta = 3,8 mg/dL, bilirrubina indireta = 1,5 mg/dL, albumina = 3,39 G/dL, gamaglobulina 2,02 G/dL; sorologia para hepatite A, B e C e para HIV negativas; a ultra-sonografia abdominal evidenciou fígado com textura homogênea com aumento discreto e difuso; foi trocado o esquema de tratamento (rifampicina 10 mg/kg/dia, pirazinamida 35 mg/kg/dia, etambutol 25 mg/kg/dia e estreptomocina 10 mg/kg/dia). Necessitou de cuidados em unidade de terapia intensiva por 10 dias.

Na Tabela 1 constam os resultados das aminotransferases, provas de coagulação, bilirrubinas, albumina e gamaglobulina no dia do diagnóstico da hepatite tóxica e nos dias subseqüentes à mudança de esquema terapêutico.

No 16o dia de internação, as três culturas de lavado gástrico confirmaram os dados da baciloscopia, sendo positivas para M. tuberculosis. A cultura de líquor foi negativa para M. tuberculosis. A biopsia hepática realizada no terceiro dia de mudança de esquema terapêutico revelou esteatose macrogoticular intensa, granuloma portal e ausência de corpúsculos de inclusão citomegálica, compatível com hepatite tóxica. Foi realizada reação em cadeia de polimerase para citomegalovírus no sangue, cujo resultado foi negativo. As alterações pulmonares evidenciadas nas radiografia de tórax e ultra-sonografia foram interpretadas como má formação adenomatosa cística, que desapareceram no controle realizado seis meses após iniciado o tratamento. Após 45 dias de internação, com ganho de 1,2 kg, recebeu alta. Atualmente está sem tratamento, com boa evolução clínica e sem alteração neurológica aparente.

DISCUSSÃO

A lesão hepática causada pelas drogas utilizadas no tratamento de tuberculose pode ser devida à isoniazida ou pirazinamida(2). Na maioria dos casos é reversível, mas às vezes tão intensa que pode levar a insuficiência hepática aguda(2). É o que ocorreu no paciente aqui descrito. Apesar da rapidez do seu aparecimento, o mesmo apresentou quadro clínico e laboratorial compatível com hepatite tóxica e insuficiência hepática. A biopsia hepática realizada no presente caso tem indicação discutível, porque as alterações histológicas de hepatite medicamentosa são inespecíficas(10) e representavam um risco para o paciente.

O tempo de aparecimento dessa lesão hepática sugere que a mesma tenha sido causada pela isoniazida. Com esta droga, a toxicidade hepática costuma acontecer nos primeiros 15 dias de tratamento, enquanto que com a pirazinamida, a partir do segundo mês. Com a isoniazida o prognóstico é bom, mesmo nos pacientes que desenvolvem insuficiência hepática, enquanto que com a pirazinamida, mesmo com a suspensão da droga, o prognóstico é pior(1, 2).

Cerca de 10% dos pacientes que fazem uso de isoniazida como monoterapia, desenvolvem alteração de aminotransferases, principalmente nas primeiras 10 semanas de tratamento. Na maior parte dos casos são alterações discretas, que se resolvem mesmo com a manutenção da droga. Apenas 1% dos pacientes desenvolve hepatite sintomática e a evolução para forma fulminante acontece em 5% a 10% deles(12).

Pacientes submetidos a anestesia(9), que fazem uso concomitante de acetominofem(6), alcoólatras(8), gestantes(3), ou pacientes portadores de hepatite crônica viral(13) são mais suscetíveis de desenvolver hepatotoxicidade pela isoniazida.

Após a introdução da rifampicina, notou-se um aumento na freqüência de lesão hepática durante tratamento de tuberculose quando se usava a associação de isoniazida e rifampicina, em relação aos pacientes que recebiam isoniazida isoladamente, sugerindo hepatotoxicidade pela rifampicina. Contudo, quando a rifampicina é usada isoladamente, raramente acontece lesão hepática, sugerindo que a rifampicina, um potente indutor enzimático, possa facilitar a hepatotoxicidade da isoniazida(4).

ORMEROD et al.(7) propõem que a lesão hepática causada pela isoniazida seja secundária a um metabólito tóxico (dietilhidrazina), formado pelo citicromo P450. A rifampicina aumentaria a atividade do citocromo P450, que elevaria os níveis de dietilhidrazina, desencadeando a lesão hepática.

Dentre os fatores associados a maior taxa de mortalidade destacam-se: idade superior aos 50 anos, gestantes, manutenção da droga, aparecimento dos sintomas hepáticos dois meses ou mais após início do tratamento(12). A baixa idade não é descrita como fator de pior prognóstico.

A hepatotoxicidade é o principal efeito adverso da pirazinamida(1, 2). Quando usada na dose de 40 a 50 mg/kg/dia, a elevação das aminotransferases e a hepatite sintomática ocorrem em 20% e 10% dos casos, respectivamente(5). Atualmente, com dose e tempo de uso menores, não existem informações a respeito das elevações de aminotransferases relacionadas ao uso de pirazinamida(1). Alguns trabalhos mostram maior freqüência de hepatotoxicidade com esquema tríplice (2%), quando comparado com esquema sem pirazinamida (0,5%), contudo outros relatos não mostram essa diferença(1, 11).

A lesão hepática, mesmo não sendo freqüente, deve ser sempre pesquisada em pacientes que estão em uso de esquema tríplice, realizando dosagens freqüentes de aminotransferases (duas vezes por semana nos primeiros 15 dias de tratamento, semanalmente até o final do segundo mês de tratamento e mensalmente até o final do tratamento)(7).

Pereira RM, Tresoldi AT, Hessel G. Isoniazid induced hepatic failure. A case report. Arq Gastroenterol 2000;37:72-5.

ABSTRACT ¾ Isoniazid and pyrazinamide are both well-known hepatotoxic drugs. When isoniazid is used, the hepatic lesion appears before than when pyrazinamide is used. This paper intents to relate a case of a 5-month-old patient who had lungs' and meningeal tuberculosis and who developed toxic hepatitis accomplished by hepatic failure while he was being treated with isoniazid, pyrazinamide and rifampicin. The clinic manifestations and the laboratory alterations were detected in the fifth day of treatment and the recovery was fast; and almost complete by the end of the first week, in which the use of isoniazid had been suspended. Although it was necessary to take the patient to the intensive care unit, he had a good recovery, without sequels.

HEADINGS ¾ Liver failure. Tuberculosis. Hepatitis. Isoniazid, adverse effects. Child.

Recebido para publicação em 27/5/1999.

Aprovado para publicação em 19/1/2000.

* Pós-graduando do Departamento de Pediatria, FCM-UNICAMP.

** Professor Assistente Doutor do Departamento de Pediatria, FCM-UNICAMP.

Endereço para correspondência: Dr. Ricardo M. Pereira - Rua Lauro Pimentel 185 - Cidade Universitária 13083-250 - Campinas, SP. e-mail: rmpereira@uol.com.br.

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  • +
    Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas - FCM-UNICAMP, Campinas, SP.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Dez 2002
    • Data do Fascículo
      Jan 2000

    Histórico

    • Recebido
      27 Maio 1999
    • Aceito
      19 Jan 2000
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