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Transplante de fígado no carcinoma hepatocelular: a escassez de órgãos e resultados bem estabelecidos justificariam ampliação das indicações ou de novas modalidades técnicas?

EDITORIAL

TRANSPLANTE DE FÍGADO NO CARCINOMA HEPATOCELULAR: a escassez de órgãos e resultados bem estabelecidos justificariam ampliação das indicações ou de novas modalidades técnicas?

DESCRITORES — Transplante de fígado. Hepatocarcinoma.

O transplante de fígado no carcinoma hepatocelular (CHC) é abordagem muito atraente do ponto de vista terapêutico, por curar duas doenças concomitantemente: a doença de base do fígado e o CHC nele assestado, estando atualmente os critérios de indicação claramente definidos na literatura(2, 8).

O problema é o de novo carcinoma ou a recidiva local, que podem atingir taxas de até 60%, mesmo quando o estádio segue os critérios de um nódulo de 5 cm ou três nódulos de 3 cm, porém na ocasião do transplante a doença mostrou ser mais avançada do que quando da inclusão do doente em lista, existindo pequenos nódulos satélites não diagnosticados, ou porque a doença progrediu em relação ao estádio inicial, em função da longa espera por um fígado de cadáver.

No Estado de São Paulo, o tempo de espera por um fígado de doador cadáver, a depender do tipo sangüíneo, pode chegar a aproximadamente 3 anos. No Brasil não existe prioridade para os portadores de CHC, diferente do que ocorre nos EUA, onde o diagnóstico de câncer primário de fígado em cirróticos automaticamente leva o doente ao topo da lista, independentemente de sua classificação pelos critérios clínicos da UNOS (United National Organs Sharing).

Além da evolução natural do CHC, os portadores de cirrose hepática, principalmente por vírus B e C, apresentam riscos definidos de carcinogênese, com incidências conhecidas de novos tumores a cada ano(3, 9).

Em cirróticos com CHC, HEMMING et al.(4) mostraram evolução mais desfavorável em transplantados portadores do vírus B, associando o fato a maior recurrência da doença, observação revertida com a utilização de drogas anti-virais.

KOIKE et al.(6), da Universidade de Tokyo, mostraram que a recidiva tumoral em pacientes submetidos a ressecção hepática depende do estádio pré-operatório da infecção viral, provavelmente associado no pós-operatório, à fibrose hepática decorrente da atividade da doença. Importante salientar a diferenciação celular e os níveis de alfa-fetoproteína no pré-operatório. Outra questão é se, além da invasão vascular, o grau de diferenciação celular teria importância. Segundo JONAS et al.(5), o diâmetro do tumor e o número de nódulos apresentam correlação com a diferenciação celular somente em tumores maiores que 5 cm. Nestas circunstâncias, os tumores bem diferenciados (25%) têm taxas de invasão vascular significativamente menores dos que observados em tumores pouco ou pobremente diferenciados (100%).

Segundo HEMMING et al.(4), somente a invasão vascular é significativa estatisticamente, quanto ao aumento de recidiva da doença tumoral. Neste número dos ARQUIVOS de GASTROENTEROLOGIA, no estudo de PAROLIN et al.(10), não se observou envolvimento vascular ganglionar e as lesões são sempre menores que 5 cm ou mesmo achados acidentais, justificando a sobrevida analisada sem mortalidade. Os doentes transplantados pelo grupo de PAROLIN et al.(10) e aqui publicados, eram portadores majoritariamente de vírus C e somente um doente portador de vírus B. O tempo de espera em lista daqueles com diagnóstico prévio de CHC não consta desta publicação, não se podendo avaliar o impacto do tempo em lista, na sobrevida.

Ainda de acordo com HEMMING et al.(4), mesmo com estádio adequado, quando ocorre invasão vascular, a sobrevida após 5 anos cai para 33%, observando-se 57% no grupo em que este fato não ocorre.

Recente publicação de grupo de YAO et al.(12), da Universidade da Califórnia, mostrou que a ampliação de alguns critérios de indicação não tem impacto negativo na sobrevida, obtendo-se resultados semelhantes quando se observam os parâmetros oncológicos clássicos. Este grupo observou que alfa-fetoproteína maior que 1000 ng/mL, tumor com diâmetro superior a 8 cm, estádio pT4 e tumores pobremente diferenciados teriam sobrevida significativamente inferiores. Concluem que a indicação do transplante, baseado exclusivamente em tamanho e número de tumores, deva ser revista, frente aos resultados animadores obtidos com lesões tumorais de até 8 cm, com níveis de alfa-fetoproteína inferiores a 1000 ng/mL.

Diante dos resultados mostrados em publicações recentes, muito promissores quando se seguem os critérios clássicos no tratamento do CHC, ocorreu crescimento do número de indicações decorrentes do diagnóstico precoce realizado em grupos de risco. Obviamente este aumento do número de receptores acarretou conseqüente alongamento do período de espera em lista. Neste novo universo, as perspectivas da crescente indicação do transplante de fígado, principalmente em portadores de cirrose associados a CHC, procurou estabelecer novos critérios de tratamento, baseados em lista de espera longa e que poderiam acarretar disseminação da doença, minimizando todo ganho decorrente do rastreamento nas populações de risco e do diagnóstico precoce. O uso da quimioembolização no pré-operatório é controverso, assim como o emprego da ressecção hepática e, mais modernamente, das técnicas de radioablação(7), principalmente por não tratar a doença de base. Muitos centros usam combinações destas abordagens com o intuito final de cura do CHC, associados ao transplante de fígado(1).

SARASIN et al.(11), baseados no contexto emocional e ético desencadeado pelos transplantes inter vivos, avaliaram o CHC além deste cenário, baseando-se na análise de múltiplas variáveis clínicas que afetariam a evolução do transplante inter vivos. Observaram que 7 meses é o tempo de espera em lista, acima do qual deveria optar-se pelo transplante inter vivos nos cirróticos com CHC. Constataram que os que não tiveram que manter-se em lista de espera decorrente do transplante inter vivos, tiveram a melhores resultados, quando comparados aos transplantados que receberam fígado cadáver e aguardaram em lista, com custo-efetividade bastante aceitáveis e, mais importante, aumento da sobrevida.

Fica claro que o crucial é o estádio bem realizado, mas sabemos agora que o transplante ortotópico de fígado deva ser realizado nos cirróticos com CHC com maior brevidade. Isto é impossível atualmente no Brasil na maioria dos Centros de Transplantes Ativos, em função da estrutura adotada pelo Sistema Nacional de Transplante do País, em que o câncer primário de fígado em cirróticos não prioriza os pacientes para o transplante com doador cadáver.

Em todos os países do primeiro mundo onde se realizam transplante de fígado, o crescimento da indicação por CHC cresceu explosivamente e calcula-se que nos EUA, em 2006, somente esta indicação deva superar o número de doadores cadáver(3). No Brasil a estrutura precária de doação e captação de órgãos tornará o tratamento de CHC um problema dramático. Se as autoridades públicas, a iniciativa privada e a terceira via não se unirem em campanhas permanentes, visando conseguir índices de doação mais dignos em nosso País, o transplante de fígado em cirróticos com CHC estará reservado somente para aqueles pacientes em que ele é achado incidental, pois aqueles em lista terão a doença disseminada quando na época do transplante, em função do longo período de espera em lista. Portanto, resta somente a realização do transplante inter vivos como opção terapêutica viável. Possivelmente no futuro ou mesmo atualmente, dentro deste prisma, somente a realização do transplante de fígado inter vivos poderá oferecer os resultados aqui mostrados pelo grupo da Universidade do Paraná.

Luiz Augusto Carneiro D'ALBUQUERQUE

Adávio de OLIVEIRA e SILVA

Christian Evangelista GARCIA

D'Albuquerque LAC, Oliveira e Silva A, Garcia CE. Liver transplantation for hepatocellular carcinoma: should we expand indications against graft shortage based on good outcome and new surgical techiques? Arq Gastroenterol 2001;38(4):213-215.

HEADINGS — Liver transplantation. Hepatocellular carcinoma.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Arii S, Yamaoka Y, Futagawa S, Inoue K, Kobayashi K, Kojiro M, Makuuchi M, Nakaruma Y, Okita K, Yamada R. Results of surgical and nonsurgical treatment for small-sized hepatocellular carcinomas: a retrospective and nationwide survey in Japan. The Liver Cancer Study Group of Japan. Hepatology 2000;32:1224-9.

2. Bismuth H, Chiche L, Adam R, Castaing D, Diamond T, Dennison A. Liver resection versus transplantation for hepatocellular carcinoma in cirrhotic patients. Ann Surg 1993;218:145-51.

3. D'Albuquerque LAC, Meniconi MTM, Copstein JLM, Santos Jr ED , Quireze Jr C, Mancero JMP, Sousa MVA, Garcia CE, Ueehara Y, Cardoso ES, Melo CRR, Santos TE, Leite CAJ, Oliveira e Silva A. Transplante ortotópico do fígado: bases técnicas. In: Doenças do fígado. Revinter; 2001. v.2, p.928-63.

4. Hemming AW, Cattral SM, Reed AI, Werf WJVW, Greig PD, Howard RJ. liver transplantation for hepatocellular carcinoma. Ann Surg 2001;233:652-9.

5. Jonas S, Bechstein OW, Steinmüller T, Herrmann M, Radke C, Berg T, Settmacher U, Neuhaus P. Vascular invasion and histopathologic grading determine outcome after liver transplantation for hepatocellular carcinoma in cirrhosis. Hepatology 2001;33:1080-6.

6. Koike Y, Shiratori Y, Sato S, Obi S, Teratani T, Imamura M, Hamamura K, Imai Y, Yoshida H, Shina S, Omata M. Risk factors for recurring hepatocellular carcinoma differ according to infected hepatitis virus — an analysis of 236 consecutive patients with a single lesion. Hepatology 2000;32:1216-23.

7. Lau W, Leung TWT, Lai B, Liew C, Ho SKW, Yu SCH, Tang MYA. Preoperative systemic chemoimmunotherapy and sequential resection for unresectable hepatocellular carcinoma. Ann Surg 2001;233:236-41.

8. Mazzaferro V, Regalia E, Doci R, Andreola S, Pulvirenti A, Bozzetti F, Montalto F, Ammatuna M, Morabito A, Gennari L. Liver transplantation for treatment of small hepatocellular carcinomas in patients with cirrhosis. N Engl J Med 1996;334:693-9.

9. Oliveira e Silva A, Melo CRR, Santos Jr ED, Santos TE, D'Albuquerque LA. Transplante de fígado para tratamento de doenças predominantemente hepatocelular. In: Doenças do fígado. Revinter; 2001. v.2, p.981-92.

10. Parolin MB, Coelho JCU, Matias JEF, Puccinelli V, Jarabiza R, Ioshii SO. Resultados do transplante em portadores de hepatocarcinoma. Arq Gastroenterol 2001;38:216-220.

11. Sarasin FP, Majno PE, Llovet JP, Bruix J, Mentha G, Hadengue A. Living donor liver transplantation for early hepatocellular carcinoma: a life-expectancy and cost-effectiveness perspective. Hepatology 2001;33:1073-9.

12. Yao FY, Ferrel L, Bass NM, Watson JJ, Bacchetti P, Venook A, Ascher NL, Roberts JP. Liver transplantation for hepatocellular carcinoma: expansion of the tumor size limits does not adversely impact survival. Hepatology 2001;33:1394-403.

Centro Terapêutico Especializado em Fígado - CETEFI - do Hospital da Beneficência Portuguesa de São Paulo, São Paulo, SP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Fev 2003
  • Data do Fascículo
    Out 2001
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