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Tratamento da pancreatite aguda grave: ainda um desafio

Severe acute pancreatitis: still a challenge

EDITORIAL

Tratamento da pancreatite aguda grave: ainda um desafio

Severe acute pancreatitis: still a challenge

André Siqueira MatheusI; Marcel Cerqueira Cesar MachadoII

IServiço de Vias Biliares e Pâncreas, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, SP

IIProfessor Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, SP

Descritor: Pancreatite necrosante aguda.

Heading: Pancreatitis, acute necrotizing.

A pancreatite aguda (PA) apresenta um espectro clínico bastante amplo, podendo variar de um quadro leve associado ao edema pancreático, até quadros graves com extensa necrose pancreática, sendo a evolução e o quadro clínico relacionados com a intensidade e extensão da lesão pancreática e a resposta inflamatória sistêmica a esta lesão(4).

A resposta inflamatória na PA grave se caracteriza por um processo sistêmico desencadeado pela lesão do tecido pancreático, a qual se segue uma série de eventos com a liberação de mediadores inflamatórios, tais como, o TNF-α, interleucinas 1, 6 e 8 e fator ativador plaquetário (PAF). Estes mediadores são responsáveis pela ocorrência de insuficiência respiratória, instabilidade hemodinâmica, alteração da permeabilidade vascular, translocação bacteriana e insuficiência renal, fenômenos que compõem a síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SRIS) e que têm como resultado final a insuficiência de múltiplos órgãos e sistemas e predispõem à ocorrência de infecção pancreática(1,4).

Duas fases são determinantes na evolução e no prognóstico da PA grave e estão relacionadas com os fenômenos descritos acima. A fase inicial, que corresponde aos primeiros 7 a 10 dias após a instalação do processo agudo, é caracterizada pelo predomínio de eventos relacionados à SRIS, tais como instabilidade hemodinâmica e insuficiência respiratória, sendo a mortalidade diretamente relacionada aos eventos inflamatórios sistêmicos.

Posteriormente, surgem as complicações sépticas que são responsáveis por significante piora no prognóstico e caracterizam a segunda fase na evolução da PA grave. Esta permanece como um grande desafio para as especialidades envolvidas no seu tratamento, estando muitas vezes associada à hospitalização prolongada, tratamento em unidade de terapia intensiva, suporte ventilatório e hemodinâmico e elevada mortalidade. O índice de mortalidade na PA grave varia entre 10% e 20% quando tratada em centros especializados e pode se tornar superior a 50% quando não tratada nestes centros(1,4).

A mortalidade da PA não é determinada apenas pelo grau da lesão pancreática e intensidade da resposta inflamatória, mas também pela utilização de tratamento adequado. Desta forma o diagnóstico correto e, principalmente, a utilização de condutas terapêuticas adequadas são fundamentais para a boa evolução e melhora da mortalidade no tratamento desta grave doença. Estudos realizados no final da década de 80 mostraram grande diversidade nas condutas e procedimentos empregados no tratamento da PA grave e o mais significativo era que tal diversidade resultava em índices de mortalidade bastante elevados.

Com a finalidade de uniformizar a avaliação e o tratamento da pancreatite aguda foi criada em 1992 a classificação de Atlanta, que determina duas formas de apresentação da doença: a pancreatite aguda leve que corresponde de 80% a 90% dos casos e se caracteriza por uma evolução benigna com mortalidade inferior a 1% e resolução espontânea na maioria dos casos e a PA grave com altos índices de complicações e mortalidade(5). Ainda com o intuito de padronizar e otimizar o tratamento da PA grave e com isso reduzir os índices de mortalidade, foi criado pela Associação Internacional de Pancreatologia (IAP - International Association of Pancreatology) um "guideline" para o tratamento cirúrgico da PA(6). Observou-se na literatura internacional que tais medidas foram seguidas de importante melhora na sobrevida dos pacientes com PA(2).

Desta forma, os conceitos atuais no tratamento da pancreatite grave têm como principio: a identificação precoce dos fatores de risco para o desenvolvimento de necrose pancreática, para isso a utilização do APACHE II no momento da admissão hospitalar, a dosagem de proteína C reativa e os níveis de hematócrito servem como parâmetro para tal identificação; o tratamento em terapia intensiva dos pacientes com PA grave; a utilização de antibioticoterapia profilática nos pacientes com necrose pancreática identificada, embora haja discussão a este respeito; a utilização de dieta enteral e principalmente o retardo de qualquer intervenção cirúrgica, estando a cirurgia no tratamento da PA grave restrita aos casos de necrose pancreática infectada(2). A melhora prognóstica da cirurgia retardada já havia sido inclusive relatada em trabalho anterior do nosso grupo(5).

No trabalho publicado neste número dos Arquivos de Gastroenterologia(3), Changes in the management of patients with severe acute pancreatitis, realizado em um dos mais importantes centros de medicina de urgência do país, fica claro a importância da utilização de medidas adequadas e padronizadas no tratamento da PA grave e o impacto de tais medidas na mortalidade. Os autores demonstraram que a utilização de medidas terapêuticas como a introdução de tratamento intensivo precoce, o uso de antibioticoterapia profilática, a utilização da dieta enteral e o retardo do tratamento cirúrgico mudaram de forma significativa a evolução desses pacientes, medidas estas que muitas vezes deixam de ser utilizadas pelo simples desconhecimento da equipe responsável por conduzir o tratamento. Por fim, destaca-se a importância da realização deste estudo, não apenas por confirmar os dados já observados na literatura internacional, mas sim por difundir em nosso meio medidas fundamentais para o tratamento da PA grave.

Apesar da importante contribuição de medidas como as acima descritas, o tratamento da PA grave permanece ainda como um desafio. Recentemente, uma série de trabalhos clínicos demonstrou a necessidade de se rever a classificação de Atlanta, revisão que deve ser finalizada e publicada nos próximos meses; nesta, a insuficiência de órgãos tem sido reconhecida como o mais importante fator prognóstico nos pacientes com PA grave, desta forma novos critérios de gravidade como o SOFA (Sepsis-related Organ Failure Assessment) tem sido propostos com a finalidade de permitir o reconhecimento precoce do paciente com PA grave e melhorar ainda mais o seu tratamento. Além disso, continuam se realizando inúmeras pesquisas clínicas e experimentais com a finalidade de buscar uma modalidade terapêutica que permita melhorar o prognóstico desta doença grave, reduzindo assim, seus altos índices de morbidade e mortalidade.

  • 1. Beger HG, Rau BM. Severe acute pancreatitis: clinical course and management. World J Gastroenterol. 2007;13:5043-51.
  • 2. Besselink MG, van Santvoort HC, Witteman BJ, Gooszen HG, Dutch Acute Pancreatitis Study Group. Management of severe acute pancreatitis: it's all about timing. Curr Opin Crit Care. 2007;13:200-6.
  • 3. De Campos T, Braga CF, Kuryura L, Hebara D, Assef JC, Rasslan S. Changes in the management of patients with severe acute pancreatitis. Arq Gastroenterol. 2008;45:181-5.
  • 4. Frossard JL, Steer ML, Pastor CM. Acute pancreatitis. Lancet. 2008;371:143-52.
  • 5. Cunha JEM, Machado MCC, Penteado S, Jukemura J, Bacchella T, Pinotti HW. Pancreatic necrosis in Brazil. In: Bradley III EL. Acute pancreatitis: diagnosis and therapy. New York: Raven Press; 1994. p. 121-5.
  • 6. Uhl W, Warshaw A, Imrie C, Bassi C, McKay CJ, Lankisch PG, Carter R, Di Magno E, Banks PA, Whitcomb DC, Dervenis C, Ulrich CD, Satake K, Ghaneh P, Hartwig W, Werner J, McEntee G, Neoptolemos JP, Büchler MW; International Association of Pancreatology. IAP Guidelines for the surgical management of acute pancreatitis. Pancreatology. 2002;2:565-73.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Out 2008
  • Data do Fascículo
    Set 2008
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