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Transtornos da vesícula biliar e do esfíncter de oddi

Transtornos da vesícula biliar e do esfíncter de oddi

Enrico S. CorazziariI; Peter B. CottonII

IDipartimento di Scienze Cliniche Policlinico, Umberto I V. le del Policlinico, Roma, Itália

IIMedical University of South Carolina, Charleston, SC, USA

Correspondência Correspondência: Enrico S. Corazziari, MD Dipartimento di Scienze Cliniche Policlinico, Umberto I V. le del Policlinico Roma 00161, Italy E-mail: enrico.corazziari@uniroma1.it

SINTOMAS DA VESÍCULA BILIAR E DO ESFÍNCTER DE ODDI

A investigação e o manejo de pacientes com episódios recorrentes de dor em quadrante superior direito e epigástrica é um desafio, uma vez que existem inúmeras causas, tanto "orgânicas"como "funcionais"(1).

Os sintomas funcionais da vesícula biliar e os distúrbios do esfíncter de Oddi devem ser distinguidos daqueles provocados por colelitíase, pancreatite, doença do refluxo gastroesofágico, síndrome do intestino irritável, dispepsia funcional e úlcera péptica.

Dor biliar

O Comitê de Roma III(2) concluiu que a dor biliar (e pancreática) classicamente ocorre com episódios recorrentes de dor severa e constante, localizada na região epigástrica e/ou no quadrante superior direito do abdome, com duração > 30 minutos, não aliviada por evacuações, mudanças posturais ou antiácidos. Na ausência de doença estrutural, por exemplo, cálculos biliares, pancreatite ou malignidade, tais dores podem ser a apresentação de disfunção clínica da vesícula biliar ou do esfíncter de Oddi.

O suposto mecanismo para dor tipo biliar em pacientes com a vesícula biliar "in situ" é o aumento da resistência ao fluxo de bile na altura do ducto cístico, enquanto que a obstrução completa produz colecistite aguda. Uma explicação alternativa e mais recente é a presença de determinadas alterações metabólicas e neuro-hormonais geneticamente adquiridas que provocam a baixa contratilidade da vesícula biliar que resulta na bile litogênica, levando a cálculos e colecistite.

O mecanismo assumido para a dor biliar (pancreática) em pacientes previamente submetidos a colecistectomia, é o aumento da resistência à bile e/ ou fluxo de secreção pancreática no nível do esfíncter de Oddi. Tanto a estenose como a discinesia podem causar obstrução ao fluxo através do(s) esfíncter(es), com o correspondente aumento de pressão nos ductos biliares. No caso da árvore biliar, este aumento é agravado pela ausência da função de reservatório da vesícula(2). Quando os episódios de dor forem recorrentes, a medula espinhal ou outros mecanismos centrais também são potenciais fatores que contribuem para a dor, como nos outros transtornos funcionais gastrointestinais.

Uma abordagem baseada em evidências é desejável para se evitar erros de omissão ou excessos, os quais podem causar sofrimento desnecessário. O objetivo destes algoritmos e notas é sugerir uma passagem por este complexo labirinto. Infelizmente, alguns dos testes disponíveis dependem do operador e o valor preditivo de vários (por exemplo, estudos de medicina nuclear) é controverso.

"Suspeita de disfunção do esfíncter de Oddi" é uma área particularmente difícil, onde os dados são escassos e os riscos (de colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) e manometria) são substanciais(3). Para reduzir a incerteza clínica e limitar a capacidade de invasão, os pacientes são tradicionalmente subagrupados de acordo com a presença ou ausência de alterações detectáveis no ensaio inicial. O diagnóstico de disfunção do esfíncter de Oddi é fácil de ser feito quando os pacientes com dor típica também têm achados conclusivos, ou seja, elevação das enzimas hepáticas e pancreáticas e/ou via biliar comum dilatada. A incerteza diagnóstica é máxima quando não há pistas de que tais diagnósticos estejam presentes. Assim, os médicos são aconselhados a fazer melhor uso de suas habilidades clínicas em aconselhar seus pacientes, com a utilização de abordagens não-invasivas e ensaios de tratamento e em todos os momentos, para se certificar de que os pacientes estão conscientes das possíveis abordagens alternativas, e das lacunas do nosso conhecimento na área. Embora haja uma considerável sobreposição nas questões e abordagens relevantes, nesses algoritmos escolheu-se separar os contextos em pré e pós-colecistectomia.

DOR RECORRENTE SIMILAR À BILIAR: VESÍCULA BILIAR PRESERVADA

Anamnese

Enfermeira com 35 anos de idade de origem hispânica é encaminhada ao gastroenterologista pelo seu médico de atenção primária (MAP) em razão de vários episódios de dor grave no abdome superior, ocorridos ao longo de um período de 6 meses. Quando ocorre, a dor é sempre localizada no quadrante superior direito, desenvolve-se até um nível estável e intenso, dura de 30 minutos à uma hora e é de gravidade suficiente para interromper as suas atividades normais (Caixa 1, Figura 1). Com frequência se irradia para a região subescapular direita. A paciente não foi capaz de identificar nenhum fator precipitante da dor, muito embora em duas ocasiões tenha ocorrido logo após sua refeição noturna. A dor a despertou do sono em uma ocasião e, em várias outras referiu diaforese e náusea com vômitos durante o episódio de dor, que não é aliviada pela defecação ou pela eliminação de flatos (Caixa 2) e nem é desencadeada por movimentos ou ao se levantar (Caixa 4). Fez uso de um antiácido em duas ocasiões durante um episódio de dor, sem obter qualquer melhora (Caixa 6). Entre as crises, não refere outros sintomas gastrointestinais, exceto pirose ocasional. Seu peso se mantém estável.


Não apresenta história médica anterior significativa, nem faz uso de nenhuma medicação regular, não fuma ou ingere álcool. Na sua história familiar, relata que a mãe sofreu de "problemas da vesícula biliar", cujo diagnóstico foi difícil, mas que foi "curada" através da colecistectomia.

A gastroenterologista obtém a história adicional de que um ataque de dor grave fez com que a paciente fosse levada ao pronto-socorro; não foi constatada febre nem anormalidades abdominais específicas ao exame físico. O resumo da alta desta visita ao hospital afirma que os seus leucócitos estavam normais, bem como a bioquímica hepática rotineira e a amilase/lipase séricas. Também foi realizado exame de ultrassom abdominal (Caixa 10) considerado normal, embora a qualidade das imagens fosse ruim em razão da sua constituição física e da presença de gases intestinais.

O exame físico realizado pela gastroenterologista não revela nenhuma anormalidade específica. Apesar da aparente falta de resposta aos antiácidos utilizados sem prescrição médica, recomenda uma endoscopia do trato GI superior (Caixa 8), sem alterações relevantes. É solicitado exame de TC para excluir qualquer lesão intra-abdominal e obter imagens melhores da vesícula biliar (Caixa 12), também normal, mostrando vesícula biliar, dimensão do ducto biliar e pâncreas de aparências normais.

A paciente continua a experimentar episódios similares de dor abdominal grave, mesmo evitando refeições ricas em gordura. A tentativa de agente antiespasmódico prescrito pelo seu MAP não resultou em melhora da dor. A paciente e a sua mãe estão convencidas de que a vesícula biliar está causando os sintomas e pressionam a gastroenterologista para um encaminhamento cirúrgico, a médica julga que se justificam exames adicionais, discutindo com a paciente os prós e os contras dos tais exames na exclusão de doenças vesiculares, incluindo colangiopancreatografia por ressonância magnética (CPRM), ultrassom endoscópico (USE) da vesícula biliar e da árvore biliar, bem como aspiração duodenal para cristais biliares (Caixa 12). O USE só está disponível em uma cidade distante 70 km e, por outro lado, a médica não está convencida do valor do exame para cristais biliares. Após discussão, recomenda a cintilografia biliar com DISIDA para determinar a fração de ejeção da vesícula biliar, após confirmar que a paciente não está usando nenhuma medicação que possa afetar os resultados do exame. O relatório do exame indica que a sua fração de ejeção é de apenas 20% (Caixa 13). Com base nisto, a gastroenterologista faz o diagnóstico de distúrbio funcional da vesícula biliar (Caixa 15), sugere uma tentativa terapêutica de 2 meses com dose baixa de agente antidepressivo tricíclico (Caixa 16), mas apesar disso os episódios de dor continuam. Recomenda, então, que a paciente consulte um cirurgião biliar para consideração de uma colecistectomia (Caixa 17).

O cirurgião acabou de participar de um seminário que levantou dúvidas com relação ao valor da cintilografia com DISIDA neste quadro, pois vários estudos apresentaram pequena ou nenhuma correlação com o resultado após a colecistectomia. Entretanto, concorda com a gastroenterologista que os aspectos clínicos são fortes, que a história familiar acrescenta algum suporte adicional e que não há nenhuma evidência de outros distúrbios que possam explicar a dor. Realiza a colecistectomia laparoscópica (Caixa 17), sem complicações. A histologia da vesícula biliar revela um grau leve de "colecistite crônica". A paciente se recuperou bem e estava livre dos sintomas quando foi vista pelo seu médico internista 1 ano mais tarde para um check-up de rotina (Caixa 18). Se o resultado não tivesse sido satisfatório, a gastroenterologista havia planejado reavaliar a paciente para outros distúrbios GI funcionais (Caixa 14) e considerar a possibilidade de disfunção do esfíncter de Oddi (Caixa 19) (ver o algoritmo "dor pós-colecistectomia similar à biliar").

DOR PÓS-COLECISTECTOMIA SIMILAR À BILIAR

Anamnese

Funcionária dos correios de 46 anos de idade foi encaminhada ao gastroenterologista, em razão de múltiplos episódios de dor abdominal grave no quadrante superior direito. Em várias ocasiões, com vários meses de intervalo, ao longo dos últimos 2 anos, a dor exigiu visitas ao pronto-socorro. O seu histórico médico anterior é normal, exceto por uma colecistectomia para cálculos biliares, realizada 8 anos antes, após vários episódios de cólica biliar sem complicação. Análise mais detalhada da dor atual revela que a dor aumenta até um nível máximo e permanece estável por mais de 30 minutos (Caixa 1, Figura 2). Algumas vezes a dor pode se irradiar para a região subescapular direita e há presença de vômitos associados em algumas ocasiões. A dor não a desperta do sono. Não há fatores precipitantes óbvios, nem uso de medicamentos contendo codeína. Não está relacionada ou é afetada por evacuações nem há alívio com antiácidos, mudança de postura ou movimento (Caixa 2). A dor é, de fato, tanto quanto ela se lembre, muito similar àquela experimentada antes da colecistectomia. A paciente não refere qualquer sintoma gastrointestinal nos intervalos livres de dor. Não tem sobrepeso. O exame físico é normal, incluindo a avaliação para a origem da dor na parede abdominal (Caixa 2).


São realizados exames de sangue para avaliar a bioquímica sérica do fígado e as enzimas pancreáticas, considerados normais, bem como um exame de US abdominal, que não mostra cálculos no ducto biliar (Caixa 4), mas exibe um diâmetro do ducto biliar comum de 12 mm (Caixa 8). Neste estágio, embora a dor da paciente pareça mais consistente com a origem biliar, o gastroenterologista deseja excluir doença de refluxo gastroesofágico e úlcera péptica (Caixa 7); solicita endoscopia do trato GI superior (Caixa 6), que foi normal. O gastroenterologista considera a importância de um exame de imagem abdominal adicional e solicita uma colangioressonância (CPRM). A única anormalidade apresentada é o ducto biliar dilatado (Caixa 8). O exame de TC do abdome não revela nenhuma outra anormalidade intra-abdominal (Caixa 9). Na ausência de doença estrutural, o médico suspeita que a típica dor similar à biliar possa ser em razão de disfunção do esfíncter de Oddi (DEO) (Caixa 10). Os registros das visitas anteriores da paciente ao pronto-socorro revelam que a bioquímica hepática e as enzimas pancreáticas estavam normais. Com base nestes dados, mas com a presença do ducto biliar dilatado, é feito o diagnóstico de disfunção do esfíncter biliar de Oddi tipo II. Conhecendo os riscos da colangiopancreatografia endoscópica retrógrada - ERCP - (com ou sem manometria de esfíncter), o gastroenterologista encaminha a paciente para um colega com mais experiência. Considera a cintilografia quantitativa do colédoco, mas para este caso não está convencido pelo seu valor discriminante e prossegue com a ERCP (Caixa 16). A manometria biliar é normal e é realizada a esfincterotomia. Por ter sido injetado o ducto pancreático durante o processo da canulação, foi colocado um pequeno "stent" pancreático temporário para reduzir o risco de pancreatite.

CONFLITO DE INTERESSE

Garantia do artigo: Rome Foundation.

Contribuições específicas dos autores: Planejamento e redação da parte referente aos algoritmos biliares: Enrico Corazziari e Peter B. Cotton.

Apoio financeiro: Financiado com subvenção da Rome Foundation.

Potenciais conflitos de interesse: Nenhum.

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  • Correspondência:

    Enrico S. Corazziari, MD
    Dipartimento di Scienze Cliniche Policlinico, Umberto I V. le del Policlinico
    Roma 00161, Italy
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      2012
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