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Possível parentesco entre as moléstias familiares com lesões predominantes na medula e moléstias familiares com lesões no neurônio periférico

Resumos

Os AA., depois de descreverem em linhas gerais as características da atrofia muscular progressiva e familiar tipo Charcot-Marie-Tooth, assinalam suas semelhanças com as atrofias musculares tipo Dejerine-Sottas e Werdnig-Hoffmann. Chamam atenção a seguir para a tendência, aliás já antiga de se reunir as moléstias familiares clássicas em um só grupo, pois as formas de transição entre umas e outras são bastante frequentes. A êsse respeito lembram que Austregésilo, desde 1918, defendeu essa teoria com abundância de documentação, procurando reuni-las em tôrno do que êle chama grande família hipotrófica cuja entidade central é a moléstia de Friedreich. A contribuição que trazem ao assunto é a observação de tres irmãos, membros de uma família em cujos ancestrais já havia sido assinalada paraplegia progressiva, e que apresentam o quadro neurológico típico da moléstia Charcot-Marie-Tooth, acrescido, num deles, de um síndromo piramidal bilateral (reflexos profundos exaltados, clonus da rótula e pés, sinal de Babinski) e em outro, de exaltação dos reflexos patelares. Esta associação, em uma moléstia familiar degenerativa do neurônio periférico, de um quadro degenerativo cordonal, é mais um argumento favorável à unidade nosológica de todas estas moléstias familiares sistematizadas.


After the authors had described on lines carefully written, the type of Charcot-Marie-Tooth's progressive and familiar muscular atrophy, they point out its similarity with that of the type of Dejerine-Sottas's and Werdnig-Hoffmann's muscular atrophies. They recall the attention to remember the old tendency of uniting the classic familiar diseases in only one group, because its transition ways between one another are enough frequent. About to this subject they remember that Austregésilo defends this theory with plenty documentation from 1918, looking to unite them together, and he names them Great Abiotrophic Family, which central group is Friedreich's disease. The contribution presented in this subject is the observation of theree brothers members of a family whose ancestors suffered from progressive paraplegia, with the typic neurologic symptoms that of Charcot-Marie-Tooth's disease, added with a bilateral pyramidal syndrome (with exalted deep reflexes, rotula and foot clonus and Babinski's signs) in the second brother, and exalted patellar reflexes in the third one. This association of a degenerative alteration in the central nervous system, in one familiar degenerative disease from the peripheric neuron, is one more favorable argument to add to the nosologic unity of such systematized familiar diseases. If we must approach at clinic views about a superposition of Char-cot-Marie's and Strumpell-Lorrain's diseases or Charcot-Marie's and Friedreich's diseases, it will be a purely speculative question that it will not change the basic idea that they try to defend on this work.


Possível parentesco entre as moléstias familiares com lesões predominantes na medula e moléstias familiares com lesões no neurônio periférico* * Trabalho da Clínica Neurológica da Escola Paulista de Medicina (Diretor Prof. Paulino W. Longo). Apresentado à Secção de Neuro-Psiquiatria da Associação Paulista de Medicina em 5 de Novembro de 1941.

Paulino W. LongoI; Paulo Pinto PupoII; Dante GiorgiIII

IProfessor catedrático

IILivre-Docente e primeiro assistente

IIITerceiro assistente

SUMÁRIO

Os AA., depois de descreverem em linhas gerais as características da atrofia muscular progressiva e familiar tipo Charcot-Marie-Tooth, assinalam suas semelhanças com as atrofias musculares tipo Dejerine-Sottas e Werdnig-Hoffmann. Chamam atenção a seguir para a tendência, aliás já antiga de se reunir as moléstias familiares clássicas em um só grupo, pois as formas de transição entre umas e outras são bastante frequentes. A êsse respeito lembram que Austregésilo, desde 1918, defendeu essa teoria com abundância de documentação, procurando reuni-las em tôrno do que êle chama grande família hipotrófica cuja entidade central é a moléstia de Friedreich.

A contribuição que trazem ao assunto é a observação de tres irmãos, membros de uma família em cujos ancestrais já havia sido assinalada paraplegia progressiva, e que apresentam o quadro neurológico típico da moléstia Charcot-Marie-Tooth, acrescido, num deles, de um síndromo piramidal bilateral (reflexos profundos exaltados, clonus da rótula e pés, sinal de Babinski) e em outro, de exaltação dos reflexos patelares. Esta associação, em uma moléstia familiar degenerativa do neurônio periférico, de um quadro degenerativo cordonal, é mais um argumento favorável à unidade nosológica de todas estas moléstias familiares sistematizadas.

SUMMARY

After the authors had described on lines carefully written, the type of Charcot-Marie-Tooth's progressive and familiar muscular atrophy, they point out its similarity with that of the type of Dejerine-Sottas's and Werdnig-Hoffmann's muscular atrophies. They recall the attention to remember the old tendency of uniting the classic familiar diseases in only one group, because its transition ways between one another are enough frequent. About to this subject they remember that Austregésilo defends this theory with plenty documentation from 1918, looking to unite them together, and he names them Great Abiotrophic Family, which central group is Friedreich's disease.

The contribution presented in this subject is the observation of theree brothers members of a family whose ancestors suffered from progressive paraplegia, with the typic neurologic symptoms that of Charcot-Marie-Tooth's disease, added with a bilateral pyramidal syndrome (with exalted deep reflexes, rotula and foot clonus and Babinski's signs) in the second brother, and exalted patellar reflexes in the third one. This association of a degenerative alteration in the central nervous system, in one familiar degenerative disease from the peripheric neuron, is one more favorable argument to add to the nosologic unity of such systematized familiar diseases.

If we must approach at clinic views about a superposition of Char-cot-Marie's and Strumpell-Lorrain's diseases or Charcot-Marie's and Friedreich's diseases, it will be a purely speculative question that it will not change the basic idea that they try to defend on this work.

O assunto de que vamos tratar refere-se ao parentesco entre diversas moléstias familiares degenerativas do sistema nervoso, principalmente daquelas cujos sintomas se restrigem aos sistemas medular, neural e muscular. Pensamos trazer contribuição util, com a apresentação de três irmãos em cuja família a amiotrofia de Charcot-Marie-Tooth fez aparecimento várias vezes, umas em forma pura e outras mesclada com sintomatologia piramidal.

As moléstias familiares degenerativas do sistema nervoso constituem capítulo bastante extenso e, principalmente, bastante controvertido da patologia médica. Descritas em sua maioria nas últimas décadas do século passado, sob formas puras, receberam o nome dos grandes mestres que delas se ocuparam. Mais tarde foram descritos casos em que a sintomatologia clássica estava acrescida de outros elementos, ou casos em que faltavam alguns dos sinais descritos, e que foram, então, classificados como pertencentes a entidades nosológicas àparte. As formas mixtas se tornaram cada vez mais numerosas e com isso ficou demonstrada a existência de formas de passagem entre umas e outras dessas moléstias, tudo conduzindo a pensar na possibilidade de parentesco entre elas.

E' extensa a literatura relativa às moléstias familiares do sistema nervoso, focalizando-as sob os mais variados pontos de vista. No que diz respeito à classificação, é mais aceita a de Crouzon (1 (1 ) Citado por Rimbaud, L. - Précis de Neurologie. 1939, G. Doin. Paris - pág. 774. ), que tomou por base a sédepredominante das lesões anátomopatológicas no sistema nervoso e, com isso, as reuniu em 6 grupos distintos:

1) Moléstias familiares com lesões predominantemente encefálicas: a) Moléstia de Wilson; b) Idiotia amaurótica; c) Heredo-ataxia cerebelósa. 2)Moléstias familiares com lesões predominantemente medulares: a) Moléstia de Friedreich; b) Moléstia de Roussy e Levy; c) Paraplegia familiar de Strümpell-Lorrain; d) Siringomielia familiar. 3)Moléstias familiares com lesões predominantes no neurônio periférico: a) Amiotrofia de Charcot-Marie; b) Neurite intersticial hipertrófica de Dejerine-Sottas; c) Síndromo de fragilidade familiar das fibras sensitivas radiculares médias de Rimbaud e Lafon. 4)Moléstias musculares: a) Miopatias; b) Moléstia de Thompsen; 5)Coréias, tremores e mioclonias 6)Afecções oculares familiares: nis-tagmo, atrofia ótica, retinites.

Destas moléstias, as que nos interessam no momento, estão classificadas nos grupos segundo e terceiro, isto é, aqueles que englobam as de localização medular e as do neurônio motor periférico; esta separação,a nosso ver, tem únicamente valor descritivo, pois oscasos de sintomatologia associada são frequentíssimos, e ainda mais, porque a degeneração das células dos cornos anteriores- da medula pertence, a rigor, a um e a outro grupo.

Já uma separação absoluta entre atrofias musculares miopáticas e atrofias mielopáticas é cousa perfeitamente estabelecida desde o tempo de Duchenne, Charcot e Raymond, e é sôbre êsteúltimo grupo que vamos nos deter. As atrofias musculares mielopáticas compreendem uma série de formas mórbidas que têm sido descritas de maneira variada e mesmo, segundo os autores, por vezes confundidas umas com as outras ou isoladas como moléstias novas, sem aparente razão de ser.

Na grande maioria dos compêndios clássicos encontramos assinaladas distintamente as seguintes formas mórbidas;

I - A atrofia muscular neural tipo Aran-Duchenne foi escrita em 1850e considerada de início como moléstia; hoje é considerada como umsíndromo de caráter familiar ou não. Caracterisa-se por: a) iniciar-se na idade adulta; b) atingir primeiramente ospequenos músculos dasmãos; c) propagar-se no sentido centrípeto, com relativarapidez; d)acompanhar-se de tremores fibrilares e R. D.; e) respeitar osmúsculos da face.

II - Atrofia muscular neural progressiva tipo Charcot-Marie; descrita em França em 1886 por êsses autores e contemporâneamente na Inglaterra por Tooth (Peroneal muscular atrophy). Caracteriza-se por: a) iniciar-se na infância ou na juventude; b) poder ter carater familiar; c) atingir primeiramente os músculos próprios dos pés, seus extensores e abdutores e, secundáriamente, os músculos próprios das, mãos; d) propagar-se no sentido centrípeto com relativa lentidão; e) acompanhar-se de tremores e modificações da excitabilidade elétrica; f) poder acompanhar-se de sintomas tabetiformes.

III - Atrofia muscular progressiva, tipo infantil de Werdnig-Hoffmann, descrita mais tarde (1891) como atrofia muscular progressiva e caracterizada por: a) iniciar-se na infância; b) ter carater familiar; c) apresentar-se com paresia dos membros inferiores e músculos do dorso; d) acompanhar-se de R. D. parcial ou total.

IV - A neurite hipertrófica progressiva e familiar, foi descrita por Déjérine e Sottas, em 1893, como entidade nosológica individualizada. Tem início na idade infantil e é caracterizada pela atrofia muscular nas extremidades, transtornos da sensibilidade e ataxia dos movimentos. Estes sintomas são consequentes a uma neurite hipertrófica de marcha ascendente, seguida de esclerose dos cordões posteriores da medula.

V - Distasia arrefléxica hereditária - Em 1926 (2 (2 ) Roussy e Levy - Revue Neurologique, 1-4:427 ('Abril) 1926. ), Roussy e Levy descreveram uma moléstia familiar cujos sintomas principais consistiam em distúrbios da marcha e da estática, existência de pé equino bilateral e arreflexia tendinósa generalizada. Não existe reação de degeneração; há apenas diminuição da excitabilidade galvânica e farádica dos músculos nos segmentos distais dos membros.

Êstes cinco quadros mórbidos constituem entidades nosológicas que permitem diagnóstico quando aparecem com os sintomas acima assinalados, em forma pura, fato êsse nem sempre presente. De todos, a amio-trofia de Charcot-Marie-Tooth é a mais aceita pelos tratadistas contemporâneos, ao passo que outras formas como a de Roussy e Levy e a neurite intersticial hipertrófica de Dejerine-Sottas não são consideradas por muitos, como fazem, por exemplo Wilson (3 (3 ) Wilson S. A. K. - Neurology. Baltimore, W. Wood - 1940. ) e Curshmann-Krammer (4 (4 ) Curshmann-Krammer - Tratado de las enfermedades del sistema nervioso. Ed. Labor. Barcelona, 1932. ). Ainda assim, a literatura a apresenta sob formas mixtas as mais variadas, nas quais os sintomas clássicos ou não estão todos presentes ou vêm associados a outros, completamente estranhos ao quadro clínico original, taes como nistagmo, perturbações esfincterianas, perturbações mentais, perturbações da sensibilidade, atrofia ótica e espinha bífida. A natureza da amiotrofia é indubitávelmente mielopática, quer pela forma e evolução, quer pela topografia segmentar e séde de predileção que apresenta. Sua anatomia patológica, estudada principalmente por Sainton, Marie e Marinesco evidencia, além de lesão degenerativa das células dos cornos anteriores, comprometimento dos cordões posteriores da medula na porção correspondente às fibras longas (do tipo de escleróse ectodérmica), assim como, embóra em menor grau, dos nervos periféricos.

A relativa raridade da existência dessas amiotrofias em forma pura e, pelo contrário, a frequente observação de formas de passagem, levaram lógicamente à idéia da existencia de parentesco entre essas diversas formas clínicas. Já Raymond em 1893 (5 (5 ) Raymond, F. - Leçons sur les maladies du système nervreux. Sixiè me série. Paris, 1903, pág. 203. ), fez defesa cerrada do parentesco entre as diversas formas de moléstias familiares degenerativas. Afirmava êle, com toda convicção, que são mínimas as diferenças existentes entre a amiotrofia de Charcot-Marie e a de Dejerine-Sottas, no mais das vezes consistindo apenas no espessamento dos nervos periféricos; acentuava ainda que, esta última, pelas lesões dos cordões posteriores e suas consequencias neurológicas ( distúrbios da sensibilidade profunda, sinal de Romberg e ataxia) e pela frequencia do equinismo, muito se aproxima da moléstia de Friedreich. Marinesco (6 (6 ) Marinesco - Amiotrophie de Charcot-Marie. Revue Neurologique, 11, 4:543 (Outubro) 1928. ), outro grande pesquízador dessas questões, opina que a amiotrofia de Charcot-Marie pode ser considerada como forma frusta de uma moléstia sistematizada cuja forma integral, seria a neurite intersticial hipertrófica de Dèjèrine-Sottas. Generalizando seu modo de pensar afirma, em um de seus trabalhos: "Há uma série interminável de nomes próprios que significam cada um, um tipo clínico diferente, o qual, na realidade, só difere do vizinho por simples matizes clínicos qualitativos. Aliás, quanto mais se multiplicam os tipos clínicos, mais imprecisas se tornam as fronteiras e menos se lhes justifica o direito à individualidade própria". É, como vemos, a mais clara defesa da unidade nosológica de todas essas formas mórbidas.

Entre nós, o Prof. Austregésilo (7 (7 ) Austregésilo, A. - Parenté entre les atrophies musculaires Charcot-Marie, Déjérine et Sottas et la Maladie de Friedreich.. Rev. Sud. Américaine de Médecine et de Chirurgie, 1:247 - 1930. ) desde 1918 vem se batendo por essa unificação, apoiado em ampla documentação, baseada em casuística pessoal. Este pesquizador observou casos de amiotrofia de Charcot-Marie com sintomas outros, como ataxia, nistagmo, escoliose, perturbações da palavra e perturbações mentais que, complicando o quadro neurológico, os tornavam proximos do quadro clínico da moléstia de Friedreich. Por outro lado, ambas as moléstias têm de comum o fato de serem familiares, atacarem de preferência os membros inferiores e, do ponto de vista anátomopatológico, provocarem uma escleróse glial muito semelhante nos cordões posteriores. Inversamente, têm sido descritos, na literatura, casos de moléstia de Friedreich em que grande amiotrofia se instala nas extremidades, aproximando-os da amiotrofia tipo Charcot-Marie.

Aliando a êsses dados aqueles fornecidos a Galloti (8 (8 ) Galloti, O. - Forme spéciale de la maladie de Friedreich ou nouvelle maladie familiaie. Rev. Neurologique, 2 (Novembro) 1928. ) pela observação de um caso de transição entre amiotrofia Charcot-Marie e rao-léstia de Friedreich, e à observação de Deolindo Couto, que, na mesma família, encontrou alguns casos de amiotrofias tipo Charcot-Marie, outros com moléstia de Friedreich, neurite intersticial hipertrófica de Dejerine-Sottas e formas de passagem, pôde Austregésilo concluir, taxativamente: "1 - Em nosografia neurológica, podemos admitir uma grande família hipotrófica cuja árvore genealógica se distribue em diversos ramos, o principal sendo constituido pela moléstia de Friedreich; 2 - Há sub-famílias ou grupos sindrômicos familiares que têm pontos de parentesco com a moléstia de Friedreich e que devem conservar os nomes dos autores que primeiramente deram sua descrição. 3 - Pelos dados teóricos e práticos cremos que há parentesco entre as atrofias Charcot-Marie e Dejerine-Sottas e a moléstia de Friedreich. 4 - Os casos de Galloti, Biémond e de Deolindo Couto mostram as relações entre as formas mórbidas acima descritas, já afirmadas por Raymond e Marinesco. Os fatos clínicos e anátomo-patológicos aumentam as razões de nossa asserção".

Estabelece-se, portanto, de modo inequívoco um parentesco entre as amiotrofias neurais e as moléstias familiares com sintomatologia medular predominante, tendo por centro, no pensar de Austregésilo, a moléstia de Friedreich.

Nossa contribuição a esse assunto, tão intrincado, consiste na descrição clínica dos casos de tres irmãos nos quais a amiotrofia de Charcot-Marie se mostrou pura num deles, noutro associada a sinal de Babinski bilateral, clonus dos pés e reflexos exaltados e, finalmente, no terceiro, associada à exaltação dos reflexos patelares.

OBSERVAÇÕES CLÍNICAS

OBSERVAÇÃO I - M. A. C, branca, brasileira, 27 anos, solteira, doméstica. Examinada em 29 de Abril de 1941.

Antecedentes pessoais e familiares: Um tio-avô e um primo de sua progenitora apresentaram moléstia semelhante que terminou em paraplegia flácida. Tem 2 irmãos mais jovens que apresentam quadro sintomático semelhante, como veremos. Seus pais são sadios (consanguinidade remota). A paciente foi forte até os 16 anos quando se iniciou a moléstia atual. Relata as moléstias comuns à infância. Nada mais digno de nota.

Moléstia atual: Iniciou-se aos 16 anos de idade, sem causa aparente, por fraqueza nas mãos e nas pernas que se acentuou lenta e progressivamente. Queixa-se ainda de dôres vagas no estômago, cabeça e olhos, ao lado de cansaço mental fácil e memória fraca.

Exame clínico: Moça franzina, de aspécto sadio, nada apresentando digno de nota nos aparelhos respiratório, circulatório, digestivo e gênito-urinário.

Exame neurológico: Marcha escarvante. Para o lado dos membros inferiores notamos atrofia muscular intensa no território do ciático poplítêo externo, de ambos os lados, com predominância à esquerda; fôrça muscular diminuida e hipotonia muscular nessa mesma região; pés caídos (fig. 1). Nas mãos há perturbação da motilidade própria e atrofia intensa dos músculos das regiões tenar e hipotenar, de ambos os lados, com predominância à direita (fig. 2) e conservação integral dos músculos dos demais segmentos dos membros superiores. Não há comprometimento dos pares cranianos. Reflexos tendinosos e ósteo-periósteos presentes e normais nos membros superiores. Reflexos patelares presentes, assimétricos, vivo à esquerda; fraco à direita. Reflexos aquilêos presentes e fracos. Reflexo médio plantar presente. Não há sinais de comprometimento piramidal ou cerebelar.



Exame elétrico: Grande hipoexcitabilidade nos territórios inervados pelo ciático poplitêo externo de ambos os lados, não havendo entretanto modificações qualitativas na contração muscular. Nos membros superiores os nervos mediano, radial e cubital mostram-se elétricamente íntegros enquanto que nos seus territórios de inervação, os músculos próprios das mãos mostram-se inexcitáveis com 25 MA.

Exames subsidiários: O exame do líquido cefalo-raquiano, obtido por punção sub-occipital, nada revelou de anormal (J. B. Reis). As reações sorológicas para a lues foram negativas (M. Lindenberg).

OBSERVAÇÃO II - O. C., branco, brasileiro, 26 anos, solteiro, locutor. Examinado em 29 de maio de 1941.

Antecedentes pessoais: Nada relata de anormal, tendo sido sadio até 1932, tendo prestado o exercício militar sem nada apresentar que o impedisse de fazer esforços por essa ocasião.

Moléstia atual: Em 1932, isto é, aos 17 anos de idade, notou que o pé esquerdo se deformava e durante a marcha frequentemente torcia. Não sentia dores. Aos poucos, a deformação do pé esquerdo se acentuou e em breve apareceu também no pé direito. Além dessa deformação diz o doente que as pernas se adelgaçaram. A deformação do pé e a perda de força tornaram a marcha difícil. Apresenta ainda atrofia das mãos que se iniciou há cerca de 2 anos.

Exame neurológico: Marcha de tipo escarvante. Atrofia muscular intensa dos músculos das regiões tenar, hipotenar e dos músculos próprios da mão: atrofia muscular tipo Aran-Duchenne (fig. 3). Pé direito, equino; pé esquerdo com ligeira deformação, com aspecto de pé equino-varo e anquilose da articulação tíbio-társica (fig. 4). Atrofias musculares no território do ciático poplítêo externo de ambos os lados, com hipotonia muscular nessas regiões. Não há comprometimento dos nervos cranianos. Reflexos tendinósos dos membros superiores presentes e normais. Reflexos patelares e aquilêos exaltados. Clonus dos pés. Sinal de Babinski bilateral. Reflexos cutâneo-abdominais e cremastéricos presentes. Coordenação íntegra. Não há distúrbios da sensibilidade.



Exame elétrico: R. D. parcial no território do ciático poplíteo externo de ambos os lados.

Exames subsidiários: O exame do líquido cefalo-raquiano obtido por punção sub-occipital nada revelou de anormal (J. B. Reis). As reações sorológicas para a lues foram negativas (M. Lindenberg).

Observação III - B. C, branco, brasileiro, 18 anos, solteiro. Examinado em 3 de Julho de 1941.

Antecedentes pessoais: Aos 3 anos de idade teve moléstia febril que, pelas caraterísticas relatadas, assemelhou-se a uma meningoencefalite; a consequência imediata dessa afecção foi a parada do desenvolvimento intelectual da criança, até então normal.

Moléstia atual: O paciente começou a apresentar os primeiros sintomas, com a idade de 13 anos; o início da moléstia fez-se pelos membros inferiores e por deformação dos pés que se apresentam atualmente com aspecto equino-varus. Posteriormente foi notada atrofia dos músculos das pernas e, mais recentemente, atrofia dos músculos das mãos e parte inferior dos antebraços. O psiquismo pouco se desenvolveu após a moléstia febril relatada nos antecedentes.

Exame neurológico: Marcha escarvante, dificultada pela deformação dos pés e anquilose tíbio-társica. Nos membros inferiores nota-se atrofia dos músculos das regiões inervadas pelo ciático poplítêo externo, bilateralmente; hipotonia e diminuição da fôrça muscular nessas regiões. Nos membros superiores há atrofia dos músculos próprios das mãos (tipo Aran-Duchenne) sem comprometimento dos pares cranianos. Reflexos tendinósos e ósteo-periósticos dos membros superiores presentes e normais. Reflexos patelares exaltados, policinéticos, mais intenso à esquerda; reflexos aquilêos e médioplantares vivos. Reflexo cutâneo-plantar ausente. Reflexos cutâneo-abdominais presentes e normais. Não há perturbações subjetivas ou objetivas da sensibilidade.

Exame elétrico: Inexcitabílidade elétrica de ambos os ciáticos poplítêos externos. Grande elevação do limitar de excitabilidade dos músculos correspondentes, sendo alguns inexcitáveis; os que dão resposta, fazem-no por algumas de suas fibras, mas sem alterações qualitativas.

Exames subsidiários: Exame do líquor, obtido por punção sub-occipital, deu resultados dentro dos limites da normalidade (J. B. Reis). As reações sorológicas para a lues foram negativas (M. Lindenberg),

COMENTÁRIOS

Trata-se de moléstia familiar, hereditária pelo lado materno, pois que foram atingidos, na mesma família, um tio-avô e um primo da progenitora e, na geração atual, três irmãos. Esta moléstia se caracteriza por uma amiotrofia que se iniciou na zona de distribuição do ciático poplitêo externo bilateralmente, determinando o pé equino e a marcha escarvante e, quasi concomitantemente, se instalou nos músculos próprios das mãos, também de modo simétrico. Na irmã mais velha o tipo Charcot-Marie se apresentou puro; num dos irmãos se complicou de um síndromo piramidal bilateral nos membros inferiores; no ultimo havia o quadro de Tamiotrofiacom exaltação dos reflexos patelares. Este último caso apresenta outra particularidade que vem a ser o aparecimento dos sintomas precocemente (aos 13 anos), fato este possivelmente relacionado à moléstia febril que o acometeu aos 3 anos de idade e que, com toda probabilidade, seria uma meningoencefalite.

Trata-se pois, de três casos em que pudemos evidenciar síndromo de lesão de neurônio motor periférico, tipo Charcot-Marie, acrescido de síndromo de comprometimento dos cordões laterais medulares. Esta associação mórbida constitue uma modalidade de associação entre as diferentes moléstias degenerativas familiares hereditárias o que, a nosso ver, constitue mais uma comprovação do indubitável parentesco entre todas elas. Se devemos aproximar êste quadro clínico de uma superposição das moléstias Charcot-Marie eStrümpell-Lorrain, ou Charcot-Marie e Friedreich é uma questão especulativa que não vem alterar a idéia básica que procuramos defender neste trabalho.

  • (1) Citado por Rimbaud, L. - Précis de Neurologie. 1939, G. Doin. Paris - pág. 774.
  • (2) Roussy e Levy - Revue Neurologique, 1-4:427 ('Abril) 1926.
  • (3) Wilson S. A. K. - Neurology. Baltimore, W. Wood - 1940.
  • (4) Curshmann-Krammer - Tratado de las enfermedades del sistema nervioso. Ed. Labor. Barcelona, 1932.
  • (5) Raymond, F. - Leçons sur les maladies du système nervreux. Sixiè me série. Paris, 1903, pág. 203.
  • (6) Marinesco - Amiotrophie de Charcot-Marie. Revue Neurologique, 11, 4:543 (Outubro) 1928.
  • (7) Austregésilo, A. - Parenté entre les atrophies musculaires Charcot-Marie, Déjérine et Sottas et la Maladie de Friedreich.. Rev. Sud. Américaine de Médecine et de Chirurgie, 1:247 - 1930.
  • (8) Galloti, O. - Forme spéciale de la maladie de Friedreich ou nouvelle maladie familiaie. Rev. Neurologique, 2 (Novembro) 1928.
  • *
    Trabalho da Clínica Neurológica da Escola Paulista de Medicina (Diretor Prof. Paulino W. Longo). Apresentado à Secção de Neuro-Psiquiatria da Associação Paulista de Medicina em 5 de Novembro de 1941.
  • (1
    ) Citado por Rimbaud, L. - Précis de Neurologie. 1939, G. Doin. Paris - pág. 774.
  • (2
    ) Roussy e Levy - Revue Neurologique, 1-4:427 ('Abril) 1926.
  • (3
    ) Wilson S. A. K. - Neurology. Baltimore, W. Wood - 1940.
  • (4
    ) Curshmann-Krammer - Tratado de las enfermedades del sistema nervioso. Ed. Labor. Barcelona, 1932.
  • (5
    ) Raymond, F. - Leçons sur les maladies du système nervreux. Sixiè me série. Paris, 1903, pág. 203.
  • (6
    ) Marinesco - Amiotrophie de Charcot-Marie. Revue Neurologique,
    11, 4:543 (Outubro) 1928.
  • (7
    ) Austregésilo, A. - Parenté entre les atrophies musculaires Charcot-Marie, Déjérine et Sottas et la Maladie de Friedreich.. Rev. Sud. Américaine de Médecine et de Chirurgie, 1:247 - 1930.
  • (8
    ) Galloti, O. - Forme spéciale de la maladie de Friedreich ou nouvelle maladie familiaie. Rev. Neurologique, 2 (Novembro) 1928.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Mar 2015
    • Data do Fascículo
      Jun 1943
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