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Distúrbios vasculares do cérebro e seu tratamento

CONFERÊNCIAS

Catedrático de Neurologia da Fac. Medicina da Universidade de S. Paulo

Os distúrbios vasculares do cérebro constituem importantíssimo capítulo da patologia nervosa e estabelecem quotidianamente estreitas relações entre neurologistas e internistas. Apresentam mesmo uma das mais claras demonstrações da necessidade, que tem o especialista em moléstias do sistema nervoso, de possuir noções suficientemente seguras sobre a patologia dos demais aparelhos da economia. Ao lado do conhecimento especializado sobre o modo de ser e reagir do elemento nervoso, torna-se-lhe imperativo sólida base de patologia renal e circulatória, para apenas citar estes dois exemplos mais estreitamente relacionados com a irrigação e nutrição do encéfalo.

A orientação terapêutica nos distúrbios vasculares do cérebro repousa, necessariamente, sobre conhecimentos da fisiopatologia encefálica, considerada esta não só sob o ponto de vista estritamente nervoso, como também sob o aspecto vascular propriamente dito. Efetivamente, é grande a incerteza que assalta a muitos dos que se vêem obrigados, na clínica diária, a assistir aos casos de acidentes cerebrais vasculares, em vista da falta de sistematização nas noções de ordem fisio-patológica, incorrendo, seja em hesitações lamentáveis na adopção da terapêutica, seja em precipitações não menos prejudiciais ao interesse do doente. Isto sem mencionar certos preconceitos terapêuticos enraizados como o da sangria, que obrigam muitas vezes o médico a fazer concessões ao ambiente, por uma questão de ordem psicológica embora não esteja o fato de acordo com suas convicções científicas.

Ao entrar no estudo dos acidentes vasculares do cérebro é preciso deixar bem claro que o assunto será propositalmente limitado à questão dos ictos cerebrais. Com esta expressão compreendemos os acidentes vasculares do cérebro que se processam independentemente de mecanismo traumático. Assim, não incluiremos neles os acidentes vasculares, as hemorragias e hematomas que reconhecem como causa imediata uma contusão cerebral, seja esta direta, seja propagada em consequência a um choque exterior.

Na questão do "icto" é preciso esclarecer uma confusão idêntica à que existe para o "coma", especialmente no que se relaciona com a apoplexia. Um acidente vascular do cérebro, não traumático, é um icto cerebral. Este pode ser súbito, fulminante, suprimindo de maneira rápida as funções gerais do cérebro - motricidade, sensibilidade, consciência e vontade - e, nesse caso, é propriamente o "icto apoplético"; ou então processar-se lenta e progressivamente, sem graves repercussões sobre as funções gerais superiores e traduzindo-se quase que unicamente por síndromes focais, na maioria das vezes, hemiplegias. Não se trata evidentemente aqui, neste último caso, de apoplexia ou de icto apoplético. Vemos por aí que a expressão "apoplético" restringe a compreensão do icto, do mesmo modo que restringe o significado do coma, pois nem todo o coma é apoplético.

A expressão apoplexia tem sido usada abusivamente com o significado de hemorragia. Seu verdadeiro conceito é porém de "supressão brusca e generalizada das funções cerebrais mais elevadas" e, como isso. em geral, se dá nas hemorragias propriamente ditas do cérebro, passou a ser indevidamente usada como seu sinônimo. Fica assim esclarecido que não é privativa das hemorragias cerebrais a produção da apoplexia. Quando um acidente vascular do cérebro ou melhor quando um icto, de realização súbita ou lenta e progressiva, não acarreta a supressão da consciência, da vontade e sensibilidade ou, se quando o faz, é apenas leve e fugazmente, esse icto não será apoplético. É em geral o caso dos amolecimentos, dos espasmos, das embolias, quando não atingem proporções consideráveis. Nas hemorragias constitui quase regra geral o carácter apoplético do icto.

Quando se procura estudar a terapêutica dos ictos, duas questões logo se impõem como capazes de orientar a ação do médico. São a patogenia e a etiologia. A primeira se nos afigura mais importante em relação ao carácter urgente que deve ter o tratamento, empenhado em restabelecer uma situação, que, quando prolongada, acarretaria danos irreparáveis, mormente sabendo-se da delicadeza do tecido nervoso, incapaz de resistir por muito tempo aos transtornos circulatórios. Faz-se mister, nessa emergência, um perfeito conhecimento da fisiologia da circulação cerebral, da existência dos aperfeiçoados mecanismos com que esta se regula, condicionados já pelas próprias disposições anatômicas já pela existência de reflexos modificadores.

Estes conhecimentos permitem-nos não só evitar intervenções que prejudiquem os citados processos reguladores, como tomar medidas que os auxiliem, apressando a melhoria das condições circulatórias e, com isso, limitando, na medida do possível, as consequências tardias dos ictos cerebrais. Dispensamo-nos da exposição, mesmo sumária, destes mecanismos, o que nos levaria muito longe. Lembra-los-emos apenas quando as indicações terapêuticas, em sua justificativa, a isso nos obrigarem.

A questão etiológica é também de magna importância, especialmente em determinados casos, nos quais, afecções mais generalizadas do organismo, com repercussão sobre o domínio cerebral, exigem do médico atenção no emprego de medidas terapêuticas especiais, dado o grande predomínio no quadro clínico, da precariedade do estado geral. Seria o caso, para citar exemplo, das afecções renais, do diabete, etc. Isso não impede, entretanto, que repitamos ser de maior urgência a questão patogênica.

É o icto consequência de uma hemorragia, de uma trombose, de um espasmo ou de uma embolia? São estas os interrogações que surgem inicialmente no espírito do médico e nem sempre se apresenta fácil a solução. Há por certo um carácter distintivo importante, que fornece pelo menos uma orientação inicial. É a intensidade ou a gravidade do fenômeno, uma vez que já referimos, serem os ictos verdadeiramente apopléticos, em geral, consequência de hemorragias, ao passo que os ictos leves, sem perda de conciência ou com discretíssima e transitória perturbação nesse sentido, são produzidos por outro mecanismo, embólico ou trombósico. Isso não é, porém, um elemento absoluto, pois os grandes amolecimentos podem ser tão graves quanto uma hemorragia. Além do mais, hoje em dia, não se admite uma separação muito nítida entre amolecimentos e hemorragias, descrevendo-se entre os casos típicos, toda uma série de exemplos de transição. O próprio mecanismo da maioria das hemorragias já não é mais admitido como simplesmente consequência de rotura arterial. Os estudos anátomo-clínicos não autorizam mais esta singela concepção. Com efeito, muito difícil é, às vezes, a distinção anátomo-patológica entre um amolecimento hemorrágico e uma hemorragia propriamente dita, em virtude do fenômeno do afluxo sanguíneo que se produz na periferia do foco amolecido. Seja este afluxo de grande vulto e agravado por fatores outros, entre as quais ressalta a estase sanguínea, a congestão do cérebro, e teremos, mesmo por diapedese, vultosas hemorragias.

Assim, como ensina Alajouanine, o amolecimento e a hemorragia absolutamente não se opõem como fatos antagônicos, isquêmico e hemorrágico respetivamente. Constituem, muitas vezes, dois estados de uma mesma ordem de distúrbios funcionais.

Os dados estatísticos podem também concorrer para o esclarecimento do diagnóstico, desde que nos lembremos do grande predomínio dos amolecimentos sobre as hemorragias. Foix, em suas verificações sobre 125 casos, assinala 25 hemorragias e 100 amolecimentos. Entretanto, a estatística, por exata que seja, tem valor muito relativo no período propriamente do icto e, apesar de todos os esforços, frequentemente, nos primeiros períodos, somos obrigados a renunciar a uma diferenciação perfeita entre um grande amolecimento e uma hemorragia franca. Mesmo o auxílio da verificação liquórica é interdito nessa fase, dada a prudência que deve reger então, a indicação de uma raquicentese.

Já nos períodos tardios, isto é, na fase de sequelas do acidente vascular, os dados estatísticos são de maior valor. Quase a totalidade dos doentes examinados nessas condições teve icto por amolecimento (trombose ou espasmo), ficando uma pequeníssima porcentagem para os acometidos por hemorragias. Estes dificilmente resistem ao acidente.

No domínio dos amolecimentos há a considerar a questão da trombose orgânica e do espasmo arterial. Estes fatos não se apresentam isoladamente, mas combinam-se frequentemente acarretando o déficit circulatório regional. Antigamente admitia-se que todo o amolecimento era, de modo geral, consequência de uma obliteração total ou, pelo menos, sub-total da artéria. Essa idéia sofreu modificações, sabendo-se hoje, por verificações anátomo-clínicas, que raramente isso se dá. Foix, em seu notável trabalho sobre o assunto, verificou, sobre 100 casos, 30 de obliteração total, 20 sub-total e 50 de obliteração apenas incompleta.

Acha aquele autor, cujas idéias seguimos, que, no mais das vezes, a vítima de um icto trombótico, é um indivíduo com artérias doentes, mas provavelmente, não mais doentes no dia do icto que na véspera, e que, apresenta, entretanto, bruscamente, uma necrose do território insuficientemente irrigado. Assim em grande número de casos a obliteração arterial não é tudo na patogenia do amolecimento. Existem causas adicionais entre as quais merecem destaque os espasmos vasculares e a insuficiência cardíaca.

O espasmo vascular, somando-se a uma lesão arterial preexistente, explica-nos muitos fatos no estudo dos amolecimentos ocorridos no território de uma artéria incompletamente obliterada. Seria um fenômeno idêntico ao espasmo que se verifica nas artérias dos membros, impedindo a circulação no segmento do membro subjacente à trombose de carácter incompleto. Seria também a explicação mais aceitável para os casos de amolecimentos bilaterais, simultâneos, ocorridos em territórios correspondentes a artérias distantes umas das outras. A existência do espasmo se faz sentir não só nos casos de trombose como nas hemorragias e mesmo nas embolias, conforme estudos experimentais interessantíssimos de Villaret e Cachera.1 1 . Villaret, M. e Cachera, R. - Les embolies cérébrales. Ed. Masson Cie., Paris, 1939. Estes autores estudando em animais, embolias gasozas e sólidas em vasos do cérebro, fizeram a primeira demonstração indiscutível da existência de nítidos espasmos arteriolares no cérebro, fato que era posto em dúvida e mesmo negado pela maioria dos autores.

Permitem, ainda, os espasmos a compreensão dos chamados quadros premonitórios dos ictos, pelos quais um indivíduo apresenta como que claudicações de determinadas artérias cerebrais, esboçando-se hemiplegias, hemiparesias ou hemi-disestesias transitórias.

Em relação com a insuficiência cardíaca, Foix chamava a atenção especialmente para a queda da pressão arterial. Esta pode ser consequência de distúrbios miocárdicos ou então de sangrias, eventualidade esta que foi bem posta em evidência por Clovis Vincent.

Estas idéias da escola francesa trouxeram grande luz para o estudo da questão de que nos ocupamos, orientando a procura de meios terapêuticos tendentes a restabelecer a circulação cerebral, patologicamente perturbada.

A gravidade das consequências sobre o tecido nervoso da obliteração arterial orgânica ou mesmo funcional, depende de vários elementos: 1) Importância do tronco atingido; 2) Subitaneidade do icto; 3) Defeitos circulatórios, em geral devidos à existência anterior de lesões difusas arterio-escleróticas ou de outra natureza.

Si se tratar de fatos discretos, como espasmos isolados, as consequências poderão resumir-se em uma parada da circulação em território limitado. Se o fenômeno for transitório, elas, alem de limitadas em extensão, o serão também no tempo, pois podem desaparecer de maneira completa. São em geral os fatos que preludiam acontecimentos mais graves. Nos casos duradouros os elementos nervosos, após terem sido deprimidos ou aniquilados funcionalmente, serão destruidos e estabelece-se o amolecimento. Teremos então consequências nervosas focais que, em geral, integram a hemiplegia. Em todos estes casos a perda da conciência ou foi leve e fugaz ou não existiu no quadro clínico.

Infelizmente, em muitos casos passam-se os fatos de maneira bem diversa e com resultados muito mais graves. Verificam-se efeitos repercussivos da obliteração sobre todo o sistema circulatório do cérebro em geral, fazendo-o como que entrar em colapso. Em consequência, sobrevem considerável retardamento na corrente sanguínea, resultando acentuada estáse ou congestão cerebral, acompanhada de edema. Se estes fatos forem levados ao máximo grau, dar-se-á a diapedese limitada ao soro e aos leucócitos ou abrangendo mesmo as hemácias. Constitúe-se, assim, uma verdadeira hemorragia, de natureza diapedética, sem rotura vascular. Em grau primário este sangue irá infiltrar apenas discretamente o parênquima, na periferia; com maior intensidade produzirá uma hemorragia típica; em grau extremo, finalmente, escoar-se-á pelos espaços sub-aracnoideus (hemorragias cérebro-meníngeas) ou penetrará mesmo nas cavidades ventriculares acarretando inundações ventriculares.

De qualquer forma, esta repercussão brusca e generalizada sobre a circulação cerebral, aniquilando as funções dos hemisférios é a explicação verdadeira da "apoplexia cerebral", o mais grave estado a que podem chegar as consequências de um icto. Em certos casos favoráveis, sendo transitórios tais fatos de congestão cerebral, os fenômenos podem regredir, restando apenas as consequências do foco amolecido, consequência cuja extensão e gravidade vão depender naturalmente da importância desse foco. Baseado nessas considerações é que afirma Alajouanine: "Em suma existem todos os graus na perturbação da circulação encefálica durante um icto, seja localizada ou difusa, prolongada ou transitória e, por consequência, as lesões podem variar desde a hemorragia até os grandes amolecimentos e as simples isquemias passageiras".

Convém notar ainda que, mesmo os simples espasmos vasculares transitórios podem ter consequências nocivas para o sistema nervoso, quando repetidos, conforme estudos experimentais "in anima vili", com pitressin, feitos por autores americanos2 2 . Nedgel, A. J. - Histologic changes following vascular Spasm in Central Nervous System. Arch. Pathol. 28: 697 (Novembro) 1939. .

As considerações feitas até agora fazem resaltar 2 fatos dignos de apreço e que nortearão a ação do terapeuta: 1) O distúrbio responsável pelo acidente pode ser apenas funcional e, como tal, susceptível de ser remediado; 2) A própria obliteração arterial pode ser parcial ou totalmente funcional.

Deixando de lado o mecanismo hemorrágico ou trombótico (com as resalvas dos diferentes tipos de transição), terminaremos a questão da patogenia com a questão das embolias ou melhor, como dizem os anglo-americanos "embolismo cerebral". Aqui vemos acidentes súbitos, sem pródromos, na maioria das vezes sem carácter apoplético, a não ser que sua extensão seja desusadamente grande, a ponto de repercutir sobre a circulação geral do cérebro, com as mesmas consequências que citamos atrás. São ictos, em geral, sem perda de consciência e com a particularidade de preferirem o hemisfério esquerdo, em vista da disposição anatômica favorável da carótida desse lado. Daí o fato de produzirem habitualmente hemiplegias direitas com fenômenos de afasia. São acidentes transitórios, que ocorrem em eventualidades especiais, principalmente nos casos de lesões endocárdicas, lesões flebíticas, marasmo circulatório, operações mutilantes, etc. Seu prognóstico é geralmente bom, mas é grande a tendência às recidivas.

Os ictos por embolismo são de terapêutica muito mais simples e, com pequenas modificações, corresponde ao das tromboses.

Posta a questão nos termos que expuzemos, conclue-se que as linhas mestras da orientação terapêutica dos ictos dependem:

1) Da congestão cerebral apoplética;

2) Dificuldades da circulação no território da artéria obliterada;

3) Das complicações rápidas e agudas do coma apoplético.

Estes fatos constituem a fase inicial propriamente dita dos ictos e devem ser combatidos rapidamente. Em seguida viriam as consequências tardias que devem ser atenuadas na medida do possível. Seu tratamento não mais se inclui na terapêutica dos ictos. Restariam então o tratamento profilático das recidivas, isto é, o tratamento preventivo dos ictos e, em seguida, o tratamento etiológiço, pontos que escapam também ao nosso desiderato atual, que abrange apenas o tratamento do icto propriamente dito.

1) CONGESTÃO E EDEMA CEREBRAL

Como em todos domínios da patologia é impossível estabelecer-se, aqui, um padrão rígido de tratamento. Conformando-se embora com umas tantas diretrizes gerais, a terapêutica deverá sofrer influência de grande número de fatores de ordem individual a critério do clínico. Tais fatores são de natureza múltipla e não podem ser sistematizados num estudo de conjunto. Somente o clínico, com sua prática suficientemente desenvolvida, poderá, em cada caso particular, atendê-los, modificando em um ou outro ponto a orientação a seguir.

Vejamos o critério a obedecer-se no tratamento do icto em sua fase inicial e, para isso, imaginemos um caso de natureza apoplética, quadro gravíssimo, que se traduz principalmente pelo coma, com supressão brusca e geral das funções cerebrais (consciência, vontade, sensibilidade) persistindo, embora modificadas, as funções vegetativas automáticas.

A simples consideração desse quadro clínico, nos faz logo admitir a existência de distúrbios generalizados no encéfalo e isso tem sido amplamente confirmado pelas verificações necrópsicas, as quais, do mesmo modo que intervenções cirúrgicas, têm evidenciado a grande importância da congestão, do edema cerebral. Esta congestão como já vimos, é consequência do sério distúrbio funcional, pelo colapso vascular e estase sanguínea. O prognóstico depende, em grande parte, da possibilidade de se lhe ajuntarem hemorragias propriamente ditas.

Infelizmente não é possível criarmos a ilusão de que dispomos de recursos terapêuticos sempre eficientes nesta eventualidade. É preciso ter em mente que ela traduz uma menor saúde anterior da rede circulatória, esteja esta anatomicamente alterada (artério-esclerose, sífilis, etc.) ou apenas funcionalmente enfraquecida (deficiência de mecanismos reguladores, etc.). Entretanto, se nossa intervenção terapêutica é de efeitos relativos, grande valor terá nossa abstenção em relação a certas medidas, que intempestivamente usadas, poderiam apenas agravar a situação. Antes de determinar "o que fazer", convém estabelecer o que se deva "deixar de fazer".

Existindo a congestão ou o edema cerebral urge melhorar as condições circulatórias encefálicas, evitar a queda da pressão arterial ou, pelo menos, sua queda brusca, impedir o desfalecimento do miocárdio.

É necessário manter o tonus cardíaco e evitar a hipotensão rápida o que nos fará, na maioria das vezes, condenar as sangrias, pelo menos as grandes sangrias, assunto sobre o qual ainda nos extenderemos. Seremos mesmo, em certas ocasiões, embora raras, obrigados a provocar um aumento oportuno da pressão arterial. Assim acontece nos velhos arterio-escleróticos, que comumente têm, após um período de hipertensão, uma fase de abaixamento tensional progressivo, fase esta que parece ter decisiva influência na produção do icto. Assim ainda teremos que proceder em outra categoria de doentes, nos quais a hipotensão seria devida antes a verdadeiros "estados de choque" como aceita Dumas, com desfalecimento vascular, por causas tóxicas ou infecciosas. Estas causas seriam assim, indiretamente, as responsáveis por alguns ictos.

Naturalmente, grande atenção nos deve merecer o coração, pois pode ser ele a causa principal da depressão circulatória causadora do icto. Alguns autores, como Fleming e Nafzziger, esposando idéias de Foix, Clovis Vincent e Barré, chegam a propor uma medicação unicamente cardíaca para certos ictos. É preciso ter sempre voltada nossa atenção para as aritmias completas e principalmente para o ritmo de galope miocárdico.

As eventualidades acima assinaladas exigem, então, o emprego dos cardiotônicos como a ouabaina, a strofantina, a cafeína, o óleo canforado e, mesmo, a estriquinina. Para muitos, deve-se evitar, mesmo nas aritmias, o uso da quinidina, em virtude de sua ação depressiva sobre o músculo cardíaco.

Entretanto, é preciso ter muito critério na aplicação dos hipertensores que devem ser usados com mais cautela que os cardiotônicos. Nos indivíduos com tendência à baixa da tensão e, apenas nestes, já se propôs a injeção sub-cutânea de soro fisiológico, mas isso tem sido condenado por muitos, que lhe atribuíram resultados desagradáveis. Somente em casos de extrema hipotensão deveria tal recurso ser usado, o mesmo se dando com as transfusões de sangue.

Embora alguns autores afirmem não ter a adrenalina ação vaso-constrictiva sobre as artérias cerebrais, semelhante à que exerce sobre as periféricas, podendo portanto ser usada como hipertensor, esta medida pareceu a outros um tanto perigosa e brutal, susceptível, pelo grau de hipertensão provocada, de transformar um amolecimento em hemorragia. Neste particular somos obrigados a confessar que a questão é bastante obscura, havendo discussões um tanto contraditórias. Em todo caso, como sua ação farmacodinâmica pode ser excessivamente brutal, melhor seria evitarmos esta terapêutica. É sempre necessário o máximo de cautela e de critério na aplicação dos hipertensores.

Estudando as nossas possibilidades de tratamento em relação ao elemento congestão cerebral, é preciso encarar as medidas consideradas como diretamente descompressivas. Entre estas salientam-se: a) sangria, b) punção raqueana; c) descompressão cirúrgica.

a) Sangria:

A mística da sangria constitui muitas vezes o maior embaraço que pode um médico encontrar na assistência à vítima do icto. Tão generalizado está o conceito da sangria como medicação heróica dos acidentes vasculares do cérebro que o médico, frequentemente, já encontra seu paciente largamente sangrado, na maioria das vezes, sem respeito às contra-indicações. Se isto não se der, muito ânimo e convicção deverá possuir ainda para resistir às injunções do ambiente, leigo ou não, para a execução urgente da sangria. Existe a crença que esta pode atenuar uma congestão cerebral, pela diminuição da massa sanguínea. Ora isto é discutido e mesmo negado para a maioria dos casos. Em geral, ela é absolutamente ineficiente sobre a congestão encefálica, pois esta é autônoma e depende do colapso do sistemo vascular regional e, alem disso, a pressão venosa nestes casos, não se apresenta aumentada. Uma subtração de sangue à distância, não influiria sensivelmente sobre o cérebro. Mas a escola francesa vai mais longe. Não só a sangria não melhora a congestão cerebral como, e isto se aplica às grandes sangrias, poderá ser intensamente prejudicial ao doente. É uma medida perigosa, pois, realizando uma notável baixa da pressão arterial, aumenta "ipso facto" o retardo da circulação cerebral.

Estas idéias de grande valor na orientação terapêutica, baseiam-se em fatos dignos de considerações, tais como a verificação de ictos seguindo-se a grandes perdas sanguíneas, como nas observações de Clovis Vincent e Darquier, de velhos ateromatosos, hipertensos, que morreram com amolecimentos cerebrais consecutivos a sangrias maciças. Abrami e Worms referem casos de ictos, após hemorragias espontâneas, que apresentaram sensíveis melhoras com as transfusões de sangue. Ora, se a sangria e uma hemorragia espontânea podem acarretar tais distúrbios, com maior razão, em um indivíduo vitimado por um icto, poderão e deverão agravar as condições circulatórias já alteradas. Se devemos ser categóricos na exclusão do nosso arsenal terapêutico, da sangria maciça, admitem-se entretanto discussões a respeito das possibilidades das pequenas sangrias. Estas, com efeito, não apresentam os perigos das grandes expoliações (400, 500 e mais grms.). Poderiam, talvez ser úteis, em casos típicos de hemorragias cerebrais. Em outros casos, evitando o exagero da hipertensão, poderiam impedir a hemorragia de se processar no foco isquêmico. São eventualidades difíceis de se isolarem na prática.

Alajouanine assim resume a questão da indicação das sangrias não maciças:

1) Apoplexia cerebral com tensão arterial elevada, especialmente se houver sinais de probabilidade de transformação hemorrágica, como a existência de Babinski bilateral, respiração estertorosa com ritmo de Cheyne-Stokes, temperatura elevada;

2) Quadro de apoplexia com sinais cardio-renais (aritmia, galope). Aqui a depleção tem ação antitóxica e facilita o trabalho cardíaco; 3) Quadro de congestão cerebral edematosa passiva, associada a estase venosa, edemas generalizados em relação com desfalecimento cardíaco e retenção cloretada. Julga ainda Alajouanine que, a aplicar a sangria, mais valeria fazê-la com carácter local. Nesse caso úteis seriam as velhas sanguesugas de tão largo uso na medicina antiga, aplicadas na região mastoidéa. As chamadas sangrias brancas são processos que nada tem o ver com as verdadeiras sangrias. Compreendem as grandes ações drásticas com abundante exoneração intestinal e expoliação líquida. São elementos que podem ser empregados sem perigo apresentando mesmo resultados compensadores.

b) Punção raqueana:

A respeito da utilidade da punção raqueana descompressora não há ainda perfeito acordo. Pelo menos não pode ser ela imposta como regra e mesmo, em muitos casos pode ser uma medida perigosa. Do mesmo modo que se requer grande cuidado na indicação da punção nos portadores de neoplasmas cerebrais, com extensa compressão e edema, assim deveremos agir deante das grandes congestões vasculares cerebrais. Em ambas as hipóteses, a descompressão espinhal, especialmente si a punção for lombar, poderá acarretar o engasgamento das amídalas cerebelosas, com compressão bulbar e morte súbita. Nas congestões pouco intensas, o perigo seria menor, porém o mesmo se daria em relação à utilidade da punção. Embora contra-indicada a punção nas grandes apoplexias, poderemos porem realizá-la nos casos em que haja sinais de intensa irritação meníngea, não só com finalidade terapêutica como, e principalmente, diagnóstica, passadas pelo menos 24 horas do acidente. Nestes casos, e com maior razão, nas hemorragias meníngeas, a extração do liquor poderá melhorar não só as dores como também os fenômenos de contratura.

c) Intervenções cirúrgicas:

No estado atual de nossos conhecimentos podemos avançar que tais intervenções são consideradas como intempestivas. Em 1912, P. Marie e Leon Kindberg tentaram o tratamento do coma da hemorragia cerebral pela trepanação descompressiva, no lado suposto são, baseando-se no fato, muitas vezes verificado em autópsia, de que o hemisfério sede do icto, edemaciado, recalcava o seu oposto de encontro às paredes do crânio. A seu conselho, De Martel teve ocasião de realizar tais tentativas, obtendo resultado aparentemente favorável em um caso. Entretanto tais estudos não prosseguiram de maneira regular. Os americanos dedicaram-se à extirpação do coágulo e do sangue extravazado, obtendo casos de melhoras. Mas seus resultados não chegaram a convencer. Há outras referências de casos esparsos em que a craniotomia fôra indicada pela suspeita de uma compressão progressiva. Assim, Morsier e Jentzes referem um desses casos em que a intervenção melhorou consideravelmente o paciente. Alajouanine, em seu trabalho no livro de Loeper3 3 . Loeper, M. - Terapeutique Médicale - Système Nerveux. Vol. VIII, Masson e Cia., Paris, pág. 151. acha que não devem ser condenadas tais tentativas terapêuticas que, talvez, tenham ainda brilhante futuro, do mesmo modo que brilhante atualidade tem a intervenção nos tumores cerebrais.

Nas considerações que fazemos sobre as possibilidades da cirurgia no tratamento dos comas apopléticos devemos mencionar as intervenções sobre o sistema vegetativo e, nesse particular, merecem referências as tentativas de infiltração novocainada do gânglio estrelado. Baseado nos trabalhos da Leriche e Fontaine, Arthur Mackey e Laurance D. W. Scott, da Universidade de Glasgow4 4 . Resumo in Year Book of Neurol. Psych. and Endocr. 1938, pág. 151. trataram uma série de vítimas de ictos apopléticos por esse processo. De seus 10 doentes, 6 morreram, 1 sarou quase completamente e 3 ficaram com paralisias residuais. É um resultado bastante pobre para recomendar tal terapêutica como rotineira, pois é obtido pelo tratamento médico já descrito.

2) OBLITERAÇÃO ARTERIAL

Enquanto que pelas medidas anteriores tratamos de combater a congestão e o edema e de manter a pressão arterial na circulação cerebral, veremos agora como atender à questão do restabelecimento ou do aumento da permeabilidade de vaso atingido.

Sabemos perfeitamente, pelos estudos relativamente modernos de autores franceses e americanos, que só excepcionalmente se acredita numa obliteração orgânica completa do vaso interessado e que é preciso contar com o elemento espasmo, que se enxerta sobre a lesão arterial ou que desempenha mesmo, por si só o principal papel. Foram abandonadas antigas teorias que negavam a existência dos espasmos nas artérias cerebrais bem como as que davam um caráter terminal absoluto à questão das artérias do cérebro. Surgiu então a necessidade da terapêutica vasodilatadora que marcou passo durante um certo tempo, em vista do insucesso relativo do uso da trinitrina e dos nitritos, particularmente do nitrito de amila cuja ação é muito brusca, do benzoato de benzila, da beladona, etc.

Com o emprego da acetilcolina, cuja introdução em terapêutica se deve a Villaret e J. Besançon, grande progresso se fez nesse sentido. Com efeito, experimentações em animais, bem como o emprego desta substância no homem, demonstraram cabalmente sua ação vaso-dilatadora sobre as arteríolas, tanto na circulação periférica como na profunda, confome as observações feitas na artéria retiniana pelos exames oftalmoscópicos. No animal notou-se também uma ação hipotensora que não se mostrou tão nítida no homem. Seu emprego no tratamento dos acidentes vasculares do cérebro tornou-se consequência lógica dos estudos sobre sua ação arterial, principalmente admitido como é, o preponderante papel do espasmo na produção ou no agravamento de um icto. Mesmo no caso de obliteração orgânica total, efeito benéfico poderia existir sobre a rede circulatória anastomótica.

Observações clínicas confirmaram indicações apriorísticas. Assim os trabalhos de Chavany, Villaret, Flipo, Roger, Riser, de Séze e tantos outros, depuseram a favor da eficácia do emprego da acetilcolina. As observações tem se multiplicado e, mesmo entre nós, se a ação da acetilcolina não resolveu o problema do icto, tem entretanto contribuído ultimamente para a sua terapêutica. Deve ser empregada sub-cutaneamente em doses não inferiores a 0,20 cts. e o mais precocemente possível após o icto. Embora alguns autores julguem inteiramente desprezível a ação hipotensora da acetilcolina, outros preferem preveni-la com o uso de cardiotônicos, especialmente de cafeína.

Aventou-se, como era de esperar, a possibilidade de ser seu emprego uma arma de dois gumes, podendo ser grandemente prejudicial nos casos de hemorragias. Porém um raciocínio baseado na compreensão do mecanismo diapedético capilar das hemorragias e na ação meramente arteriolar da acetilcolina, permite que se afaste essa dúvida. Pode, portanto, essa substância ser utilizada sem receio a não ser em casos de grave bradicardia com hipotensão em que se fazem algumas reservas a seu emprego.

3) COMPLICAÇÕES PRÓXIMAS E AGUDAS DO ICTO

Aqui se devem mencionar os tratamentos preventivos e curativos de tais complicações cujos exemplos mais importantes são os transtornos pulmonares, a infecção urinária e a escara de decúbito.

Os primeiros são favorecidos pelo decúbito horizontal e pelos distúrbios da deglutição. Serão evitados com a elevação do tronco e com a alimentação por outras vias que não a oral e com o emprego de revulsivos torácicos e desinfetantes das cavidades superiores.

As complicações urinarias decorrem da retenção e as sondagens vesicais deverão ser feitas com o máximo rigor de asepsia. Far-se-ão mesmo lavagens da bexiga com antiséticos não irritantes. Quanto às escaras de decúbito que ocorrem em virtude das perturbações sensitivas e tróficas, agravadas pelo fato de conspurcar-se constantemente o doente, os cuidados devem ser exaustivos em sua prevenção. Assento pneumático, colchão de ar ou equivalentes, forrados por panos finos sem dobras, limpeza repetida da região glútea e genital, pulverização da pele e outros cuidados, podem reduzir ao mínimo os perigos das escaras. Para completar os cuidados do enfermo combate-se a estase fecal, hidrata-se cautelosamente o paciente por meio de soro glicosado ou fisiológico em lavagens ou injeções, afim de manter do melhor modo possível as condições gerais do doente cujo organismo se acha empenhado em uma luta que poderá ser decisiva para a sua sobrevivência.

Como medicação complementar nos casos de icto achamos ainda recomendável o emprego da coramina e mesmo da lobelina cuja ação, embora transitória, tem efeito extraordinário sobre os fenômenos bulbares, influindo principalmente sobre o ritmo respiratório. Com muita frequência temos visto o emprego dessas substancias fazer desaparecer, pelo menos transitoriamente, um ritmo de Cheyne-Stokes.

Não podemos encerrar a série de indicações terapêuticas dos ictos, sem referirmos a necessidade que temos, muitas vezes, de administrar sedativos aos pacientes convulsivos ou com franca excitação motora. Na maioria das vezes teremos que usar a via retal ou parenteral, em virtude dos fenômenos disfágicos. Merece consideração ainda, embora seu mecanismo e utilidade sejam muito discutidos a auto-hemoterapia, indicada nos casos de hemorragia cérebro-meníngea. Atribui-se-lhe com ou sem razão uma ação favorável como hemostático e é preciso dizer que este recurso já esteve mais em foco que atualmente. Outros coagulantes cuja enumeração é dispensável aqui, podem ser usados ao lado da auto-hemoterapia. Discutidissima é ainda a ação hemostática do capacete de gelo. É preferível não empregá-lo uma vez que seria provavelmente contraproducente nos ictos com predomínio de fenômenos isquêmicos.

Após termos assim passado em revista as indicações mais autorizadas na terapêutica dos acidentes vasculares do cérebro, poderíamos, como é usual, fazer um resumo condensando em curto esquema as considerações feitas. Entretanto preferimos deixar de fazê-lo em consideração à complexidade dos problemas abordados. Cada um dos elementos de que dispomos na luta contra esse pesadelo da humanidade que é o icto cerebral, pode ser discutido e interpretado sob variados pontos de vista e de acordo com diferentes escolas. Dessa maneira, embora rápida, mais vale a exposição tal como a fizemos, do que um rígido esquema terapêutico que nunca dirá bem das dificuldades encontradas em cada caso, dificuldades que só com grande prática, autoridade e critério poderão ser sobrepujadas.

R. Itajobi, 31 - S. Paulo

Conferência realizada na Sessão de Neuro-Psiquiatria da Associação Paulista de Medicina em 14 de Dezembro de 1942.

  • Distúrbios vasculares do cérebro e seu tratamento

    Adherbal Tolosa
  • 1
    . Villaret, M. e Cachera, R. - Les embolies cérébrales. Ed. Masson Cie., Paris, 1939.
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    . Resumo in Year Book of Neurol. Psych. and Endocr. 1938, pág. 151.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Mar 2015
    • Data do Fascículo
      Mar 1944
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