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Higiene mental de guerra

Resumos

Uma das caraterísticas da presente guerra é a de ser, mais que qualquer outra, uma guerra psicológica. Embora o emprego dos recursos psicológicos como arma de guerra não constitua nenhuma novidade, nunca êle assumiu, como agora, um papel de tão alta importância. O A. refere-se à utilização dos métodos psicológicos de guerra desde as épocas mais remotas, salientando que, com o correr dos tempos, foi-se deslocando para o terreno científico aquilo que antes era simples magia ou intuição. Enumera os métodos ofensivos e defensivos essenciais da guerra psicológica, focalizando o papel desempenhado pela propaganda e pelo medo. Examina como a Alemanha se utilizou dos conhecimentos psicológicos em seu esforço de guerra, tanto no preparo psíquico individual como coletivo. Afirma que cabe aos psicólogos e psiquiatras das Nações Unidas oferecer às autoridades os meios de ação para o mesmo fim, o que não quer dizer que precisemos copiar servilmente os métodos alemães. Passa a referir-se aos recursos que a moderna psiquiatria pode oferecer nesse sentido, mostrando que ela desenvolveu técnicas e sistemas de trabalho que dilataram sobremodo o campo de suas atividades. Ela não está mais limitada ao âmbito estreito das enfermarias e das salas de consulta, mas transborda numa intervenção mais direta sobre o ambiente social. De simples especialidade médica circunscrita à cura individual das psicopatias, ela se erigiu em arma social de elevado alcance, cujo valor a presente guerra veio encarecer. O A. lembra, enfim, a importância do trato psicológico das populações no período de após-guerra. Um simples tratado de paz não cria as condições necessárias a uma sadia atitude mental coletiva. À higiene mental caberá um papel relevante no futuro reajustamento psíquico dos povos, o qual, para sua verdadeira consolidação, deverá assentar sobre bases científicas e humanas.


One of the characteristics of the present war is, more than anything else, the one of this being a psychological war. Although the use of psychological resources as weapons is not at all new, it has never taken, before the present days, such an important position. The author refers to the use of psychological methods in the wars since very remote ages, pointing out that, with the passing of the years, the methods were then believed to be magic or just intuition gradually passed to the scientific field. He names the offensive and defensive methods which are absolutely essential to the psychological war, stressing the work performed by propaganda and fear. He examines how Germany used scientific knowledge in her war efforts, in the collective as well as in the individual psychiatric preparations. He asserts that it is up to the psychologists and psychiatrists in all the United Nations to offer to the authorities the means of action for the same purpose, which does not mean that we shold copy the German methods. Then he refers to the resources that modern psychiatry can offer in this subject, showing that it as developped technics and working systems that enlarged considerably the field of its activities. It is not so limited to the narrow field of enfermaries and consultation rooms, as it was before, having spread itself into a much more direct intervention over the social athmos-phere. From plain medical speciality limited to individual care of psychopathies, it transformed itself into a social weapon of great force, whose value the present war has already proved. The author also stresses the importance of the psychological care of populations in the post-war period. A simple peace treatise does not create the necessary conditions to a sane collective mental attitude. The mental hygiene will play a very important role in the future psychiatric reajustment of the peoples, which, for its real consolidation, will have to deal on more scientific and human basis.


Chefe da Secção de Higiene Mental Escolar da Diretoria do Serviço de Saúde Escolar de São Paulo, professor das cadeiras de Higiene Mental e de Psicanálise na Escola Livre de Sociologia e Política (instituição complementar da Universidade de São Paulo), docente-livre de Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

RESUMO

Uma das caraterísticas da presente guerra é a de ser, mais que qualquer outra, uma guerra psicológica. Embora o emprego dos recursos psicológicos como arma de guerra não constitua nenhuma novidade, nunca êle assumiu, como agora, um papel de tão alta importância.

O A. refere-se à utilização dos métodos psicológicos de guerra desde as épocas mais remotas, salientando que, com o correr dos tempos, foi-se deslocando para o terreno científico aquilo que antes era simples magia ou intuição. Enumera os métodos ofensivos e defensivos essenciais da guerra psicológica, focalizando o papel desempenhado pela propaganda e pelo medo. Examina como a Alemanha se utilizou dos conhecimentos psicológicos em seu esforço de guerra, tanto no preparo psíquico individual como coletivo. Afirma que cabe aos psicólogos e psiquiatras das Nações Unidas oferecer às autoridades os meios de ação para o mesmo fim, o que não quer dizer que precisemos copiar servilmente os métodos alemães. Passa a referir-se aos recursos que a moderna psiquiatria pode oferecer nesse sentido, mostrando que ela desenvolveu técnicas e sistemas de trabalho que dilataram sobremodo o campo de suas atividades. Ela não está mais limitada ao âmbito estreito das enfermarias e das salas de consulta, mas transborda numa intervenção mais direta sobre o ambiente social. De simples especialidade médica circunscrita à cura individual das psicopatias, ela se erigiu em arma social de elevado alcance, cujo valor a presente guerra veio encarecer.

O A. lembra, enfim, a importância do trato psicológico das populações no período de após-guerra. Um simples tratado de paz não cria as condições necessárias a uma sadia atitude mental coletiva. À higiene mental caberá um papel relevante no futuro reajustamento psíquico dos povos, o qual, para sua verdadeira consolidação, deverá assentar sobre bases científicas e humanas.

SUMMARY

One of the characteristics of the present war is, more than anything else, the one of this being a psychological war. Although the use of psychological resources as weapons is not at all new, it has never taken, before the present days, such an important position.

The author refers to the use of psychological methods in the wars since very remote ages, pointing out that, with the passing of the years, the methods were then believed to be magic or just intuition gradually passed to the scientific field. He names the offensive and defensive methods which are absolutely essential to the psychological war, stressing the work performed by propaganda and fear. He examines how Germany used scientific knowledge in her war efforts, in the collective as well as in the individual psychiatric preparations. He asserts that it is up to the psychologists and psychiatrists in all the United Nations to offer to the authorities the means of action for the same purpose, which does not mean that we shold copy the German methods. Then he refers to the resources that modern psychiatry can offer in this subject, showing that it as developped technics and working systems that enlarged considerably the field of its activities. It is not so limited to the narrow field of enfermaries and consultation rooms, as it was before, having spread itself into a much more direct intervention over the social athmos-phere. From plain medical speciality limited to individual care of psychopathies, it transformed itself into a social weapon of great force, whose value the present war has already proved.

The author also stresses the importance of the psychological care of populations in the post-war period. A simple peace treatise does not create the necessary conditions to a sane collective mental attitude. The mental hygiene will play a very important role in the future psychiatric reajustment of the peoples, which, for its real consolidation, will have to deal on more scientific and human basis.

Uma das caraterísticas da presente guerra é a de ser, mais que qualquer outra, uma guerra psicológica. Embora o emprego dos recursos psicológicos como arma de guerra não constitua em si nenhuma novidade, nunca êle assumiu, como agora, um papel de tão alta importância. A significação desse fato avulta ainda mais quando consideramos que, devido ao aperfeiçoamento dos instrumentos bélicos, a participação na luta não é restrita ao elemento militar, mas abrange a população civil, ampliando-se naquilo que se convencionou chamar de "guerra total". Apuram-se, consequentemente, a sutileza e a complexidade dos métodos psicológicos de guerra, que visam sobretudo desorganizar a retaguarda do inimigo, abatendo-lhe o ânimo e enfraquecendo-lhe a força combativa.

"A presente guerra, diz Morris Krugman, num interessante estudo que será citado muitas vezes nesta dissertação1 1 . Krugman, M. - Some psychological and psychiatric pratices in war countries. Ment. Hyg., 26: 354 (julho) 1942. , a presente guerra tem sido chamada guerra total e guerra de nervos. Isso quer dizer que esta guerra não está circunscrita aos soldados, mas inclui nações inteiras, pessoas moças ou velhas, homens, mulheres e crianças. Provavelmente pela primeira vez na história, a população inteira de cada nação beligerante se acha incluída ativamente no esforço guerreiro. Esse esforço é por vezes ofensivo, mais amiúde defensivo, e com frequência tem ambas as modalidades. Como consequência da guerra mecanizada, a produção dos utensílios bélicos tornou-se tão importante como a luta na frente de batalha. O combate não está mais limitado a determinada frente; pode - e isso muitas vezes acontece - atingir a frente interna, e cada pedaço da pátria pode ser atacado a cada momento pelo inimigo. A população civil tornou-se, portanto, uma parcela importante da força combativa da nação".

Pierre Cot salienta2 2 . Cot, P. - Morale in France during the war. Amer. J. Sociol. 47: 349 (novembro) 1941. que "a guerra moderna, com suas múltiplas formas e sua técnica científica, tem feito crescer cada vez mais a importância do fator moral. Por um lado, a guerra moderna se tornou realmente total; a nação inteira participa, não somente pelo esforço militar, mas também pelo esforço econômico, tanto sob a forma de privações como de produção, e pelo esforço intelectual, que se estende à pesquisa científica como à propaganda ideológica. Por outro lado, pela prática dos bombardeios aéreos, a zona de batalha se estendeu a todo o território da nação em guerra. A distinção clássica entre combatentes e não-combatentes obliterou-se, tanto na terra como no mar. É, pois, a nação como um todo, e não somente o exército, que precisa estar prevenida contra os efeitos de seu próprio desencorajamento e contra os golpes da propaganda inimiga".

Consequentemente, a psicologia se erigiu em recurso de guerra da maior significação. Isso não quer dizer que ela não tenha sido anteriormente utilizada com tal objetivo. Desde as épocas mais remotas, tem sido habitual o preparo psíquico do combatente, assim como o emprego de meios apropriados para amedrontar o inimigo. São comuns, entre os povos primitivos, os rituais mágicos antes dos combates, assim como a exploração do terror por ocasião da luta. "Quando o homem primitivo, dizem Krugman e Silverman3 3 . Krugman, M. e Silverman, S. S. Psycological weapons of war. Ment. Hyg., 26: 461 (julho) 1942. utilizou gritos de guerra assustadores, passou a pjntar-se e a usar máscaras ou a pôr-se dentro das peles de animais bravios, êle venceu um passo no emprego das armas psicológicas da guerra; por tais meios êle procurou instilar medo nos adversários, criar pânico, desorganizar o inimigo e enfraquecer sua força combativa, ao mesmo tempo que sustentar sua própria coragem".

Com o correr dos tempos, foi-se deslocando para o campo científico aquilo que antes era simples magia ou intuição. O emprego das armas psicológicas atingiu, finalmente, seu máximo apuro na guerra atual, quando, nas mãos dos nazistas, lhes permitiu aquela série impressionante de vitórias e o conseqüente domínio de quase todo o território europeu. Os já citados Krugman e Silverman salientam que seria ridículo afirmar que tais métodos seriam eficientes sem o emprego da força material. Mas - e isso é o consenso geral - seria também ridículo supor que só esta última fosse capaz de subjugar quase toda a Europa continental. "A França, dizem eles, foi batida não pela pura força das armas, mas por métodos psicológicos", E acrescentam: "Armas esmagadoras podem ganhar batalhas isoladas, mas não ganharão uma guerra moderna se não tiverem o complemento dos recursos psicológicos.

A finalidade essencial da guerra psicológica é reforçar e manter a unidade combativa e enfraquecer e destruir essa unidade do inimigo. Ela tem sua mais completa expressão na denominada guerra de nervos, cujo objetivo é, segundo Bion4 4 . Bion, W. R. - The War of Nerves: Civilian reaction, morale and prophylaxis. Em: The neuroses of War. Editado por E. Miller, Macmillan Co. New York, 1940. , explorar fantasias inconscientes no inimigo e em si próprio, de modo a prejudicá-lo e beneficiar-se. "Em resumo", diz êle, "esse tipo de guerra pode ser descrito como aquilo que atua no sentido oposto a um processo terapêutico, de tal maneira que o conhecimento do inconsciente de um dos beligerantes é usado em benefício do outro".

Os métodos ofensivos e defensivos da guerra psicológica são, essencialmente, os seguintes: Do ponto de vista ofensivo, a arma básica é o medo. Procura-se criar no adversário a idéia de que seu oponente é invencível, de que os exércitos deste são tão numerosos que qualquer resistência será inútil, de que êle possui novas armas secretas contra as quais não há meios eficientes de defesa, etc. Para criar o medo, um dos principais recursos é constituido pelas notícias falsas, especialmente sob a forma de boato. Devem-se considerar ainda a surpresa, a dúvida, etc. Todos esses métodos são coordenados cuidadosamente com a atividade da quinta-coluna. O papel dispersivo dos grupos políticos da oposição é também explorado convenientemente. Ao lado disso tudo, os atos de sabotagem atuam psicologicamente, além do dano material que possam produzir. Os meios defensivos por excelência são o conhecimento e a compreensão. A idéia clara da situação real e dos propósitos da guerra permite a discriminação dos fatos e a segurança das próprias atitudes.

Passo a examinar aqui, numa breve síntese, como a Alemanha se utilizou dos conhecimentos psicológicos em seu esforço de guerra. Tal assunto se acha magnificamente compendiado na publicação intitulada "German Psychological Warfare" preparada por L. Farago, G. W. Allport, E. G. Boring, Fl. L. Ruch, K. Young e outros, para o "Committee for National Morale" dos Estados Unidos5 5 . Farago, L. e outros - German psychological warfare: Survey and bibliography. The Committee for National Morale. New York, 1941. .

Num comentário feito a essa interessante publicação, Leon J. Saul6 6 . Saul, L. J. - Book review. Psychoanal.. Quart., 11: 228, 1942. afirma que "na Alemanha, toda pesquisa psicológica e psiquiátrica se concentra nos problemas da guerra e do Estado". E conclui, mais adiante (pág. 229): "não há exagero em dizer que o método fundamental com que os alemães abordam os problemas internos e externos é o método psicológico e que as forças armadas se tornaram, na maior parte dos casos, um elemento para o golpe final desfechado depois que o inimigo foi desmoralizado e desintegrado pelas técnicas psicológicas".

Os alemães partem do princípio de que, no estudo das possibilidades de rendimento de cada indivíduo, deve ser levada em conta sua personalidade total e não apenas a sua habilidade para a execução de uma determinada tarefa. Assim, o emprego de testes é utilizado, mas a maior ênfase é posta na avaliação do todo da vida emocional e intelectual.

O manejo psicológico do indivíduo começa muito cedo na moderna Alemanha. Desde que a criança nasce, cultivam-se nela as inclinações apropriadas a torná-la um instrumento fiel do programa nazista. Afim de preparar a "guerra total" é necessário desenvolver uma "educação total". Em contraste com o ideal da educação democrática, que consiste no estímulo e no aprimoramento das qualidades psíquicas individuais, a educação nazista visa impor a convicção de que a vida do indivíduo não lhe pertence, de que morrer pelo Estado será sua maior glória, de que a obediência cega é a única virtude, etc.

O estado de espírito da população adulta merece igualmente um cuidado especial. O problema do moral na frente interna é tratado com toda atenção, procurando-se sobretudo instilar no espírito do povo a idéia da invencibilidade nazista.

Embora a psicologia militar fosse reconhecida como de grande importância para o exército alemão antes dos totalitários tomarem o poder, estes cuidaram de elevá-la a um grau mais alto de aperfeiçoamento. Sabe-se que mais de duzentos psicologistas militares trabalhavam no exército alemão antes de romper a guerra atual. Um dos objetivos desses profissionais é a seleção de oficiais e de especialistas, para o que se empregam testes de aptidão e métodos de estudo da personalidade. É interessante assinalar que, apesar da oposição nazista às idéias de Freud, o exército alemão mantém um departamento de psicologia freudiana, em vista de sua utilidade rio manejo do pessoal. Isso acontece ao mesmo tempo em que, conforme assinala Morris Krugman (loc. cit.1 1 . Krugman, M. - Some psychological and psychiatric pratices in war countries. Ment. Hyg., 26: 354 (julho) 1942. , pág. 337), "livros que versam a psicologia freudiana são queimados em fogueiras públicas e os partidários dessa escola psicológica são tratados com severidade".

Um dos aspectos mais interessantes da psicologia militar germânica é justamente o manejo dos problemas do pessoal. As autoridades foram convencidas pelos psicologistas de que nada adiantam os métodos cruéis de tratamento a que eram submetidos os soldados. O erro psicológico da atitude anterior, dominante por ocasião da primeira guerra mundial, já havia sido, aliás, assinalado por Freud7 7 . Freud, S. - Psychologie collective et analyse du moi. Em: Essais de psychanalyse. Ed. Payot, Paris, 1927, pág. 114. , que aponta suas perigosas consequências práticas. "O militarismo prussiano, diz êle, tão antipsicológico como a ciência alemã, experimentou as conseqüências de tal erro na grande guerra. Foi verificado que as neuroses de guerra que desagregaram o exército alemão representaram um protesto do indivíduo contra o papel que lhe era designado, e, conforme a comunicação de E. Simmel, pode-se afirmar que o primeiro lugar entre as causas dessas neuroses deve ser atribuído à maneira cruel e desumana com que os chefes tratavam seus homens". E conclui que se tivessem sido levadas em conta as necessidades afetivas dos soldados, "os quatorze pontos do presidente Wilson não teriam encontrado tão fácil crédito e os chefes militares alemães não teriam visto quebrar-se em suas mãos o magnífico instrumento de que eles dispunham".

No seu próprio interesse, viram-se os nazistas obrigados a modificar essa velha orientação e estabelecer um código de tratamento dos soldados curiosamente paralelo às normas de higiene mental que, em outros países, se mostraram úteis no manejo das crianças por parte das professoras. Diz o já tão citado Krugman (loc. cit.1 1 . Krugman, M. - Some psychological and psychiatric pratices in war countries. Ment. Hyg., 26: 354 (julho) 1942. pág. 358) que se, em alguns casos, a palavra "criança" fôr posta no lugar de "soldado", "professora" em lugar de "oficial" e "escola " em lugar de "exército", teremos como resultado um conjunto de acertados princípios de higiene mental escolar.

Vejamos, a esse respeito, a descrição de Krugman': "Por exemplo, a primeira tentativa dos nazistas para dominar o soldado constituiu em brutalidade, punição, censuras inapropriadas, ridículo e outras formas de tratamento áspero. Logo eles verificaram que isso não era eficiente e começaram a estudar os soldados individualmente e a tratá-los de acordo com as suas personalidades. Verificaram que os soldados reagiram melhor quando a vida militar se fez mais atraente; quando lhes foi dado encorajamento; quando a assistência substituiu a punição; quando se lhes tornou possível seguir os bons exemplos. Exceto nos casos em que o soldado é considerado desleal à causa nazista, a punição e as proibições são evitadas e o sistema de "honorificação" posto em seu lugar, tomando-se, naturalmente, cuidado, a cada instante, de que não se desenvolva nenhuma oposição.

"Os problemas dos homens no exército são manejados por psicologistas. Depressões, que são comuns, são manejadas cuidadosamente, proporcionando-se companheiros adequados. Os homens que vivem na mesma barraca são agrupados de modo apropriado. A monotonia é contrabalançada por uma atividade interessante. O espírito de grupo é explorado constantemente. Os novos homens são protegidos ativa e carinhosamente. Os oficiais são solicitados a serem mais liberais com seus homens, em contraste com o velho conceito prussiano das relações entre oficiais e homens. Os oficiais devem cultivar a personalidade de seus homens individualmente e são julgados pelo seu sucesso em se tornarem apreciados e aceitos pelos seus homens. Um oficial nunca deve expor seus soldados ao ridículo. Um soldado nunca deve ser individualmente repreendido diante da companhia. O oficial deve descobrir as boas qualidades mesmo dos soldados mais medíocres. É de se desejar que êle felicite seus soldados nos dias dos respectivos aniversários, sendo designado um funcionário para comunicar-lhe as datas. Um oficial nunca deve atribuir a responsabilidade de seus próprios enganos a seus soldados. Não deve nunca censurar a companhia inteira pelas faltas individuais dos soldados. Nas conferências, é desejável que êle convide os homens a sentar e lhes ofereça cigarros para atenuar uma atmosfera pesada. Certos problemas, como doenças no lar, são, com respeito aos novos homens, tratados por meio de licenças frequentes. Problemas mais sérios, como tendências a suicídio, são tratados por psiquiatras e psicologistas, para determinar as causas, e não por meio de punições".

Krugman conclui que não teriam sido motivos humanitários e sentimentais que inspiraram os nazistas nesse sentido, mas o próprio interesse, apoiado nos princípios da higiene mental.

A atividade da guerra psicológica alemã abrange também outras modalidades, entre as quais a ação sobre o moral do adversário, da maneira já descrita mais atrás. Isto é feito com base em cuidadoso estudo dos países inimigos, no terreno político, social, cultural, etc, incluindo minuciosa análise do temperamento nacional e das caraterísticas pessoais de seus dirigentes. Quem desejar aprofundar-se na essência psicológica da propaganda germânica e de seus perigos de guerra, poderá ler o interessante estudo que, a esse respeito, Ernest Kris8 8 . Kris, E. - The "danger" of propaganda. Amer. Imago, 2 (março) 1941. publicou na revista "The American Imago".

Felizmente para nós, a guerra psicológica é um jogo no qual, conforme salienta Krugman (loc. cit.1 1 . Krugman, M. - Some psychological and psychiatric pratices in war countries. Ment. Hyg., 26: 354 (julho) 1942. , pág. 355) dois podem participar. Diz esse autor que, "assim como os aviões devem ser combatidos com aviões e tanques com tanques, assim os métodos psicológicos precisam ser combatidos com técnicas semelhantes e talvez ainda mais aperfeiçoadas". É tarefa dos psicologistas e psiquiatras das Nações Unidas estudar e oferecer às autoridades os meios de ação para esse fim. Isso não quer dizer que precisamos copiar servilmente os métodos alemães. Cabem-nos perfeitamente, quanto à psicologia na guerra, as palavras de L. J. Saul (loc. cit.6 6 . Saul, L. J. - Book review. Psychoanal.. Quart., 11: 228, 1942. , pág. 229) relativas aos Estados Unidos. "É claro, diz êle, que nós temos muita cousa que aprender de sua aplicação pelos alemães, mas é claro também que as contribuições da psicologia neste país devem ser desenvolvidas independentemente, de acordo com nosso próprio material e com nossos próprios problemas".

A propósito da significação da psiquiatria na contra-ofensiva alemã de guerra psicológica, Bernard9 9 . Glueck, B. - The function of psychiatry in the garrison state. Ment. Hyg, 26: 15 (janeiro) 1942. põe em foco a necessidade de alargar a atividade psiquiátrica de modo a atender às necessidades da população em geral. "Se, como psiquiatras, diz êle, nós pretendemos realizar nossa missão nessas contra-ofensivas, precisamos nos dispor a conceber a possibilidade de ser necessária uma considerável modificação de nosso tradicional isolamento no consultório ou na clínica". E enumera os vários recursos de que os psiquiatras dispõem para colocar a serviço do interesse coletivo: "Nós conhecemos alguma cousa das técnicas para influenciar a atitude e o sentimento do indivíduo. Podemos nos dedicar à descoberta de métodos para a aplicação das técnicas das salas de consulta a grupos mais extensos de pessoas. Conhecemos alguma cousa das diferenças entre o medo e a angústia reais e o tipo neurótico dessas emoções destrutivas. Possuímos uma considerável visão daqueles atributos da natureza do homem que favorecem a rotura da unidade do indivíduo, a qual conduz a fidelidades diversas e antagônicas na alma humana. Conhecemos alguma cousa das reações habituais do homem à adversidade e à privação, assim como daquelas vicissitudes da vida que podem deformar nossa natureza de tal maneira que cheguem a nos transformar em nossos piores inimigos, inclinados à autoderrota e à autodestruição. Conhecemos alguma cousa dos hitlerismos e quislinguismos nascentes em nossa própria natureza". Glueck salienta ainda que não é só dos aspectos catabólicos e destrutivos da natureza humana que os psiquiatras tem aprendido alguma cousa, mas também das forças anabólicas ou construtivas. E se refere, mais adiante, à vantagem de pôr à disposição das agências de socorro moral já existentes a experiência e o trabalho em conjunto das clínicas de orientação infantil.

A moderna assistência psiquiátrica desenvolveu técnicas e sistemas de trabalho que dilataram sobremodo o campo de suas atividades. Ela não está mais limitada ao âmbito estreito das enfermarias e das salas de consulta, mas transborda numa intervenção mais direta sobre o ambiente social. Mercê sobretudo da ação das agentes sociais especializadas, a psiquiatria vai sondar e corrigir as condições etiológicas dos distúrbios psíquicos na própria intimidade dos grupos sociais de que participa o indivíduo: o lar, a escola, a oficina, etc. De simples especialidade médica circunscrita à cura individual das psicopatias, ela se erigiu em arma social do mais elevado alcance, cujo valor a presente guerra veio encarecer.

A experiência dos países há mais tempo e mais diretamente envolvidos no conflito nos revela a grande utilidade, em tempo de guerra, dos recursos criados pela higiene mental em tempo de paz. Os problemas psíquicos de guerra nada mais são, aliás, que os próprios problemas das épocas comuns, apenas estimulados ou intensificados pelas condições desfavoráveis da nova situação. As bases etiológicas são as mesmas e os mesmos devem ser, portanto, os recursos curativos ou preventivos a utilizar. Isso é valido principalmente no que se refere aos cuidados exigidos pelas crianças psicologicamente atingidas pelas condições da guerra. "Nas crianças", diz R. D. Gillespie10 10 . Gillespie, R. D. - Psychological effects of War on citizen and soldier. W. W. Norton Co. New York, 1942, pág, 158. , "os métodos são aqueles normalmente empregados nas clínicas de orientação infantil, adaptados às circunstâncias da guerra, especialmente da evacuação. O que a experiência da guerra faz particularmente ressaltar é o valor das agentes sociais exercitadas psiquiatricamente".

Ao encerrar esta dissertação, quero lembrar a importância de uma das atividades complementares mais significativas da higiene mental da guerra: o trato psicológico das populações no período de após-guerra. Uma guerra não termina sem que deixe sequelas das mais graves no espírito dos indivíduos e das massas. Um simples tratado de paz não cria por si só, como que por encanto, as condições necessárias a uma sadia atitude mental coletiva, que é o elemento básico de uma organização político-social estável e duradoura. É necessário criar-se, quer entre vencedores, quer entre vencidos, o indispensável clima espiritual para a fase de reconstrução que todos esperam e desejam. Os erros de Versailles, que foram em grande parte psicológicos, aí estão na dolorosa brutalidade de suas conseqüências. À higiene mental caberá, pois, um papel relevante no futuro reajustamento psíquico dos povos, o qual, para sua verdadeira consolidação, deverá assentar sobre bases mais científicas e humanas.

R. Siqueira Campos, 42 - São Paulo.

  • 1. Krugman, M. - Some psychological and psychiatric pratices in war countries. Ment. Hyg., 26: 354 (julho) 1942.
  • 2. Cot, P. - Morale in France during the war. Amer. J. Sociol. 47: 349 (novembro) 1941.
  • 3. Krugman, M. e Silverman, S. S. Psycological weapons of war. Ment. Hyg., 26: 461 (julho) 1942.
  • 4. Bion, W. R. - The War of Nerves: Civilian reaction, morale and prophylaxis. Em: The neuroses of War. Editado por E. Miller, Macmillan Co. New York, 1940.
  • 5. Farago, L. e outros - German psychological warfare: Survey and bibliography. The Committee for National Morale. New York, 1941.
  • 6. Saul, L. J. - Book review. Psychoanal.. Quart., 11: 228, 1942.
  • 7. Freud, S. - Psychologie collective et analyse du moi. Em: Essais de psychanalyse. Ed. Payot, Paris, 1927, pág. 114.
  • 8. Kris, E. - The "danger" of propaganda. Amer. Imago, 2 (março) 1941.
  • 9. Glueck, B. - The function of psychiatry in the garrison state. Ment. Hyg, 26: 15 (janeiro) 1942.
  • 10. Gillespie, R. D. - Psychological effects of War on citizen and soldier. W. W. Norton Co. New York, 1942, pág, 158.
  • Higiene mental de guerra

    Durval Marcondes
  • 1
    . Krugman, M. - Some psychological and psychiatric pratices in war countries. Ment. Hyg.,
    26: 354 (julho) 1942.
  • 2
    . Cot, P. - Morale in France during the war. Amer. J. Sociol.
    47: 349 (novembro) 1941.
  • 3
    . Krugman, M. e Silverman, S. S. Psycological weapons of war. Ment. Hyg.,
    26: 461 (julho) 1942.
  • 4
    . Bion, W. R. - The War of Nerves: Civilian reaction, morale and prophylaxis. Em: The neuroses of War. Editado por E. Miller, Macmillan Co. New York, 1940.
  • 5
    . Farago, L. e outros - German psychological warfare: Survey and bibliography. The Committee for National Morale. New York, 1941.
  • 6
    . Saul, L. J. - Book review. Psychoanal.. Quart.,
    11: 228, 1942.
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    . Freud, S. - Psychologie collective et analyse du moi. Em: Essais de psychanalyse. Ed. Payot, Paris, 1927, pág. 114.
  • 8
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    2 (março) 1941.
  • 9
    . Glueck, B. - The function of psychiatry in the garrison state. Ment. Hyg,
    26: 15 (janeiro) 1942.
  • 10
    . Gillespie, R. D. - Psychological effects of War on citizen and soldier. W. W. Norton Co. New York, 1942, pág, 158.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Mar 2015
    • Data do Fascículo
      Set 1944
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