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Síndrome de Wallenberg a propósito de três casos

Síndrome de Wallenberg a propósito de três casos

Oswaldo Freitas JuliaoI; Roberto Melaragno FilhoII

IAssistente da Clínica Neurológica Fac. Med. Univ. S. Paulo

IIAssistente volunt. Clínica Neurológica Fac. Med. Univ. S. Paulo

RESUMO

Após referirem alguns dados gerais sobre a Síndrome de Wallenberg e irrigação arterial do bulbo, focalizando principalmente os estudos relativos à artéria cerebelar posterior inferior (Wallenberg) e à artéria da fosseta lateral do bulbo (Foix, Hillemand, Schalit), os AA. abordam a sintomatologia própria da síndrome em apreço, ao mesmo tempo que tratam da fisiopatologia de seus principais distúrbios. Neste particular, consideram especialmente as relações entre as estruturas bulbares comprometidas e a presença da síndrome oculossimpática de Claude Bernard-Horner, apreciando, depois, as caraterísticas de que se revestem as alterações sensitivas na hemiface homolateral à lesão. Expõem, a seguir, três observações pessoais. Comentando-as, passam em revista os fenômenos iniciais da moléstia e o complexo sintomático observado, destacando suas particularidades mais interessantes. Quanto à etiopatogenia, concluem que a forte positividade da reação de Wassermann, no caso 1, denunciava o papel da sífilis como o fator essencialmente responsável pelo desenvolvimento das lesões vasculares, enquanto que, nos casos 2 e 3, a trombose parecia depender sobretudo de um processo de natureza arteriosclerótica.

SUMMARY

The A A. refer some general data regarding the Wallenberg syndrome and the arterial irrigation of the medulla oblongata, calling attention specially to the works dealing with the posterior inferior cerebellar artery (Wallenberg), and the artery of the lateral groove of the medulla oblongata (Foix, Hillemand, Schalit). The AA. outline then the symptomatologà of the syndrome, studying the physiopathology of its main disturbances, considering specially the relationships between the structures of the medulla oblongata involved, and the presence of the Claude Bernard-Horner oculossympathetic syndrome and then the cha-rateristics presented by the alterations of the sensibility in the hemiface homolateral to the lesion. Commenting the three personal observations presented, the AA. make a review of the first signs of the illness and the symptomatic complex observed, calling attention to their most interesting peculiarities. In that which refers to the etiopathogeny, the AA. concluded hat the strong positivity of the Wassermann test in case one points to syphilis as the essentially responsible factor for the setting on of the vascular lesions, whereas in case two and three the trombosis seemed to be due to a process arteriosclerotic in nature.

A Wallenberg1 1 . Wallenberg, A. - Akute Bulbäraffection (Embolie der Art. cerebelli post, inf.). Archiv, f. Psychiatrie, 27:504, 1895. cit. por Mircoli, D. - Su una síndrome alterna bulbare retro-olivare. Il Policlínico 44:335 (janeiro) 937. deve-se a descrição de uma síndrome bulbar cujas caraterísticas fundamentais consistem em desordens da série cerebelar homolaterais à lesão, tendência à queda na atitude vertical, desvios durante a marcha, paresia do palato mole e da corda vocal (também homo-lateralmente à lesão) e distúrbios da sensibilidade. Êstes apresentam-se geralmente sob a forma de dissociação siringomiélica e revestem uma disposição alterna, acometendo a face do mesmo lado da lesão e os membros e tronco do lado oposto. A síndrome de Claude Bernard-Horner e desordens vestibulares completam ordinàriamente o quadro sintomatológico da síndrome em estudo. Valendo-se de um trabalho de Duret, que distinguia, no bulbo, dois territórios vasculares bem definidos - um medial, irrigado pela artéria espinhal anterior e outro lateral, dependente da artéria cerebelar posterior inferior - Wallenberg atribuiu o conjunto sintomático por êle discriminado à obstrução deste último vaso arterial. Seis anos mais tarde2 2 . Wallenberg, A. - Anatomisher Befund in einem als akute Bulbäraffection (Embolie der Art. cerebelli post, inf.) beschriebenen Falle. Archiv, f. Psychiatrie 34 : 923, 1901, também cit. por Mircoli loc. cit. 1. , as verificações anátomo-patológicas do próprio caso que havia sido estudado do ponto de vista clínico por Wallenberg comprovaram a exatidão dêsse raciocínio.

Quase na mesma época (1902), Babinski e Nageotte individualizaram outra síndrome bulbar na qual, além das aludidas desordens atribuídas à obliteração da artéria cerebelar posterior inferior, havia hemiplegia controlateral à lesão. O estudo anatômico, efetuado em apenas um dos três casos publicados por Babinski e Nageotte, revelou a presença de quatro pequenos focos lesionais, conseqüentes a alterações vasculares numa das metades do bulbo. Evidenciou-se assim que a síndrome observada dependia não da obstrução de uma única artéria, mas de lesões múltiplas. Como na primeira publicação de Babinski e Nageotte não haviam sido feitas referências especiais quanto ao vaso obstruído, muitos autores atribuíram os distúrbios verificados à isquemia do terrtório da própria artéria cerebelar posterior inferior. Disto resultou que dois conjuntos sintomáticos diversos, embora semelhantes, tornaram-se conhecidos pela denominação comum de síndrome da artéria cerebelar posterior inferior. A imprecisão dos limites do território irrigado por esta artéria contribuiu naturalmente para tornar ainda maior a confusão existente nesse particular. Assim, as denominações de síndrome de Wallenberg, síndrome lateral do bulbo, síndrome de Babinski-Nageotte, síndrome da artéria cerebelar posterior inferior foram, por algum tempo, usadas indiferentemente para designar agrupamentos sintomatológicos diversos.

A questão da irrigação arterial do bulbo reviveu com as verificações realizadas em 1925 por Foix e Hillemand3 3 . Foix, Ch., Hillemand. P. - " Les artères de l'axe encéphalique jusqu'au diencéphale inclusivement". Rev. Neurologique 2: 705 (dezembro) 1925. e, também, por Schalit4 4 . Foix, Hillemand e Schalit - Sur le syndrome latéral du bulbe et l'irrigation du .bulbe supérieur. Rev. Neurologique 1: 160 (fevereiro) 1925. . Êstes autores concluíram, a propósito, que a artéria cerebelar posterior inferior não era o vaso realmente responsável pela irrigação do território cuja lesão determinava a síndrome considerada. Comprovava êste fato a revisão da literatura referente a todos os casos anátomo-clínicos até então publicados: apenas em um deles(o de Wallenbeng) a lesão residia na artéria cerebelar posterior inferior. Aliás, mesmo neste caso, não se tratava de processo isolado desse vaso, uma vez que ficou comprovado o comprometimento simultâneo de outras artérias bulhares.

Como se sabe, descreveram Foix, Hillemand e Schalit três sistemas arteriais encarregados da irrigação do tronco encefálico (artérias para-medianas, artérias circunferenciais curtas e artérias circunferenciais longas), distinguindo, no que respeita à circulação do bulbo, dois territórios, um superior e outro inferior.

As artérias paramedianas. responsáveis pela nutrição das estruturas ventrais e medianas do bulbo, são representadas, na porção superior do bulbo, por vasos oriundos da terminação das vertebrais ou do tronco basilar, enquanto que, na porção inferior, as artérias paramedianas correspondem a colaterais das espinhais anteriores, ramos das vertebrais. O território dependente das artérias paramedianas consiste essencialmente nas duas pirâmides e no lemnisco medial, estendendo-se dorsalmente até o pavimento do IV ventrículo, abrangendo dessa forma o núcleo do nervo hipoglosso, cujo trajeto intrabulbar está, aliás, totalmente compreendi dona região em aprêço.

As artérias circunferenciais curtas encarregam-se da irrigação das estruturas da zona lateral do bulbo, abrangendo justamente o território que, lesado, ocasiona asíndrome de Wallenberg. Convém salientar que amplas variações se processam, entretanto, no modo de distribuição das artérias correspondentes à zona lateral da medula alongada. Em 60% dos casos existiria, na parte superior deste segmento, uma artéria volumosa, oriunda sempre do tronco basilar e denominada, por Foix e colaboradores, artéria da fosseta lateral do bulbo. Êste vaso, após fornecer ramúsculos para a oliva, dirige-se para fora, resolvendo-se então em 5 ou 6 ramos terminais que se perdem na fosseta lateral do bulbo. Logo abaixo, encontra-se uma artéria acessória geralmente única, mais raramente em número de duas ou três, e que reconhece origem quase sempre na artéria vertebral, com disposição cranial em relação à artéria cerebelar posterior inferior; em outros casos, entretanto, sua origem se processa no tronco basilar ou mesmo na artéria cerebelar média (fig. 1). A artéria acessória, dirigindo-se lateralmente, encarrega-se da irrigação do território subjacente ao da artéria da fosseta lateral. Finalmente, a parte mais caudal da face lateral do bulbo tem irrigação subordinada a pequenas colaterais da artéria cerebelar posterior inferior nascidas antes do ponto em que estevaso se orienta para a face posterior da medula alongada. Nos casos em que a artéria acessória não existe (36% dos casos) o seu território é suprido cranialmente pela artéria da fosseta lateral do bulbo e, caudalmente, pela artéria cerebelar posterior inferior. Finalmente, casos há em que, por meio de pequenos ramos, a artéria cerebelar posterior inferior invade o território de irrigação da artéria da fosseta lateral. São essas as disposições arteriais mais freqüentemente evidenciadas por Foix e colaboradores: as demais formas constituem variações individuais excepcionais, cuja descrição não oferece, do ponto de vista clínico, maior interêsse. Estribados nessas considerações anatômicas, concluíram Foix, Hillemand e Schalit que: "le syndrome latéral du bulbe étant dû à une lésion de la partie supérieure de l'organe, est avant tout sous la dépendence de l'artère de la fossette latérale, branche du trone basilaire".


Por último, as artérias circunferenciais longas, que irrigam o corpo restiforme e estruturas adjacentes, são representadas por outras colaterais da artéria cerebelar posterior inferior.

A descrição de Foix, Hillemand e Schalit tornou-se clássica e vem repetida em quase todos os tratados de neurologia. Entretanto, segundo se depreende dos estudos precisos e minuciosos efetuados por Böhne5 5 . Böhne - Über die arterielle Versorgung des Gehirns. Über die arterielle Blutsorgung der Medulla oblongata. Zeitschrift f. Anatomie und Entwicklungsgeschichte - 84: 760, 1927. sobre o mesmo assunto, a sistematização de Foix e colaboradores parece ser excessivamente esquemática. Assim, as verificações de Böhne concordam com a sistematização proposta pelos autores franceses apenas quanto à disposição dos vasos na superfície externa do bulbo; no que respeita à distribuição arterial no interior do órgão, Böhne observou a existência de complexo embricamento vascular, tornando artificial, por conseguinte, qualquer divisão do território em regiões arteriais bem definidas.

Segundo Renato Locchi, catedrático de Anatomia da Faculdade de Medicina da Universidade de S. Paulo, a irrigação do território da assim chamada artéria da fosseta lateral do bulbo não deve ser atribuída a uma única e determinada artéria, sendo antes devida a um conjunto ou "pincel" de arteríolas. Esperamos que os resultados dos estudos de Locchi sejam oportunamente publicados afim de que novos dados possam ser adicionados aos conhecimentos sobre o complexo problema da circulação do tronco cerebral. Esta questão constituiu também objeto de considerações por parte de Enjolras Vampré que, em importante monografia sobre as síndromes bulhares6 6 . Vampré, E. - Síndromes bulhares. Monografia laureada, em 1937, com o prémio "Honorio Libero", concedido pela Associação Paulista de Medicina. , reviu cuidadosamente os casos de síndrome de Wallenberg até então publicados, encarecendo especialmente o interesse é a necessidade de novos estudos sobre a irrigação arterial da medula alongada.

O território bulbar comprometido nos casos de síndrome de Wallenherg, embora anatomicamente de dimensões exíguas, engloba estruturas concernentes a sistemas funcionais diversos, donde a riqueza e complexidade das desordens que compõem a síndrome. Esta, conhecida também, em razão da topografia de sua sede lesionai, como síndrome alterna bulbar retro-olivar, é ainda denominada por Tilney e Riley7 7 . Tilney, F. e Riley, H. A. - The form and functions of the central nervous system. 3. a ed., Paul Hoeber, 1938, pág. 289. , síndrome das zonas circunferencial e intermédia. Efetivamente, a síndrome resulta da lesão de uma área lateral cunei forme, situada imediatamente atrás da oliva bulbar e cujo ápice, aprofundando-se em direção posterior e medial, aproxima-se do feixe solitário, na porção superior do bulbo. Abrange esta área os feixes espinhocerebelares ventral e dorsal, o feixe espinhotalâmico, os núcleos do vago e glossofaríngeo (porção superior do núcleo ambíguo, principalmente), parte das formações reticulares inclusive as vias simpáticas, a raiz descendente do trigêmeo, os dois terços anteriores da substância gelatinosa de-Rolando e mesmo o polo superior da oliva bulbar. Em virtude de variações vasculares, um número maior ou menor dessas estruturas poderá ser afetado, manifestando-se, por conseguinte, sob diferentes aspectos e combinações, os vários tipos de distúrbios existentes. Quando completa, constitui-se a síndrome de Wallenberg dos seguintes elementos: do lado da lesão: - hemissíndrome cerebelar, paralisia velo-faringo-laríngea (e conseqüentemente disfagía, alterações da palavra), síndrome oculossimpática de Caude Bernard-Horner e comprometimento da sensibilidade superficial na hemiface correspondente, sobretudo das formas térmica e dolorosa; do lado oposta a lesão - anestesia dos membros e tronco, com dissociação do tipo sirin-gomiélico. Por influência irritativa de edema ou por extensão maior da lesão, o comprometimento do núcleo do hipoglosso ou dos núcleos do VIII par, especialmente do núcleo vestibular, pode processar-se. Em conseqüência, integram freqüentemente a síndrome de Wallenberg paresia da hemilíngua, vertigens e nistagmo.

A sintomatologia cerebelar, homolateral à lesão, encontra explicação no acometimento dos feixes espinhocerebelares ventral e dorsal,8 8 . Sobre o comprometimento das funções cerebelares nas lesões do bulbo e dos outros segmentos do tronco encefálico, consulte-se a excelente monografia do prof. A. Almeida Prado: "Les syndromes cérébelleux mixtes". 1 vol. Masson édit., Paris, 1931. êste já integrado no corpo restiforme. O comprometimento do núcleo ambíguo, principalmente em sua porção superior, explica, por outro lado, a paralisia velo-faríngea e também sua predominância, em intensidade, sobre a paralisia laríngea, ao ponto de poder ocorrer mesmo integridade completa da corda vocal (síndrome velo-faríngea dissociada da paralisia da corda vocal: Foix, Hillemand e Schalit).

A ocorrência da síndrome oculossimpática de Qaude Bernard-Horner na síndrome de Wallenberg em particular e nas lesões bulbares em geral, presta-se a considerações sobre a anatomia e fisiopatoíogia dos centros evias do sistema nervoso autônomo, no que diz respeito à inervação ocular. E' noção estabelecida que, do sistema ortossimpático dependem a iridodilatação e a inervação do músculo tarsal superior, cuja paralisia acarreta ptose palpebral. As fibras pré-ganglionares dêste sistema oculossimpático originam-se nas células do côrno lateral da medula, ao nível do primeiro segmento torácico (centro ciliospinhal de Budge). Por meio dos ramos comunicantes brancos, estas fibras atingiriam o gânglio cervical inferior, onde fariam sinapse com as células das quais emanam as fibras pós-ganglionares; são estas precisamente as fibras que, constituindo a raiz simpático do gânglio ciliar, levam ao globo ocular a inervação autônoma. Qualquer lesão afetando essesistema, em sua porção central ou periférica, determinará, por conseguinte, a síndrome de Claude Bernard-Horner, constituída essencialmente por miose paralítica, ptose com conseqüente diminuição da fenda palpebral e enoftaimo; menos freqüentemente, observam-se distúrbios vasomotores e secretorios. Certas lesões supramedulares podem, contudo, acarretar o aparecimento da síndrome de Horner, tal como acontece na síndrome de Wallenberg. Na maioria dos compêndios de anatomia e fisiologia do sistema nervoso, não se encontram, porém, esclarecimentos quanto à existência deestruturas especiais, superiores, em conexão com o centro ciliospinhal deBudge. A propósito, admitem Tilney e Riley a existência, no bulbo, de um centro pupilar que seria representado por um grupo de céiulas situadas ventralmente ao núcleo ambíguo, as quais, lesadas, condicionariam o aparecimento da síndrome de Qaude Bernard-Horner. Mattirolo9 9 . Mattirolo, G. - Malattie Nervöse. 3. a ed. Editrice Torinese, 1937, p. 195. aceita, da mesma forma, a existência de um centro bulbar oculopupilar, que manteria conexões, por intermédio de fibras descendentes, com o centro cilioespinhal, mas por outro lado, independentemente dêsse centro medular, enviando também fibras simpáticas ao globo ocular. A observação de Kocker de que a síndrome de Horner se manifesta, por vezes, nas hemilesões do? vários segmentos da medula cervical, torna ainda mais verossímil a hipótese da existência de estruturas conjugando o centro bulbar ao espinhal. Krieg10 10 . Krieg, W. J. S. - Functional Neuroanatomy. T,he Blakiston Companhy, 1942, pâg. 181. , seguindo diferente ordem de idéias, encorpora a via das fibras pupilodilatadoras em um arco reflexo abrangendo as próprias fibras do nervo óptico. Depois de abandonar o tracto óptico, a via em aprêço percorreria, de alto a baixo, o tronco encefálico, terminando ao nível da medula, em conexão íntima com o centro ciliospinhal. No tronco encefálico, as fibras passariam presumivelmente através do tegmento do mesencéfalo e da ponte, alcançando depois a substância reticular do bulbo. Assim, a ocorrência da síndrome deHorner nas lesões bulhares poderia ser explicada com conseqüência não propriamente da destruição de um centro pupilar existente no bulbo, mas pelo acometimento de estruturas de origem suprabulbar e de trânsito pela medula alongada. Por outro lado, o hipotálamo parece ter também influência sobre a inervação simpática do globo ocular. Assim, Fulton11 acentua que amplas lesões bilaterais dos núcleos posteriores do hipotálamo podem acompanhar-se de enoftalmo, ptose palpebral emiose. Neste mesmo sentido, Strong e Elwyn12 12 . Strong, O.S. e Elwyn, A. - Human Neuroanatomy. The Williams and wilkins, 1* ed., 1943, pag. 249. aludem a uma via córtico-hipotalâmica, com origem na cortiça frontal e destino para os núcleos posteriores do hipotálamo; deste ponto, outras fibras desceriam, atravessando o tronco encefálico e indo formar sinapse na medula com as células pré-ganglionares do centro ciliospinhal. Juntamente com as fibras pupilo-dilatadoras, correriam outras, relacionadas à elevação tônica da pálpebra, por função do músculo tarsal superior. As lesões supramedulares (como sucede nasíndrome de Wallenberg) sacrificariam ambos os tipos de fibras, condicionando, assim, miose e ptose palpebral, elementos componentes da síndrome de Horner.

A dissociação de tipo siringomiélico, observada nos membros e tronco heterolaterais à lesão, subordina-se ao acometimento do feixe espinhotalâmico na própria área afetada pelo processo patológico. A integridade da sensibilidade táctil decorre da situação mais medial das fibras encarregadas de sua conduçãb, as quais, dfrspostas junto ao lemnisco medial, escapam à lesão causadora da síndrome de Wallenberg. A propósito, cumpre destacar o fato, aparentemente paradoxal, de evidenciar-se geralmente a mesma dissociação siringomiélica na hemiface do lado da lesão. Tal ocorrência seria de estranhar-se por haver, no caso, não mais o comprometimento das vias sensitivas secundárias, mas do próprio núcleo sensitivo no trigêmeo (mais precisamente, do seu tracto descendente, espinhal). A revisão de 39 casos da síndrome de Wallenberg (nos quais se evidenciava essa dissociação siringomiélica da sensibilidade na hemiface homolateral à lesão) permitiu a Gerard13 13 . Gerard, M. W. - Afferent impulses of the trigeminal nerve: the intramedullary course of the painful, thermal and tactile impulses. Arch. Neurol, a. Psychiat. 9: 306 (marco) 1923. concluir pela ausência de fibras condutoras da sensibilidade táctil na raiz espinhal do trigêmeo, que conteria, assim, exclusivamente fibras relacionadas às sensibilidades térmica e dolorosa; os estímulos tácteis seriam por sua vez dirigidos ao núcleo sensitivo principal do trigêmeo. O conceito de Gerard não resistiu "in totum" às críticas que lhe foram dirigidas, apoiadas sobretudo nos resultados verificados após a prática das tractotomias intrabulbares, realizadas com fim terapêutico nas nevralgias rebeldes do trigêmeo. Neste mesmo propósito Walker14 14 . Walker, A. E. - Anatomy, physiology and surgical considerations of the spinal tract of the trigeminal nerve. J. Neurophysiol. 2:234 (maio) 1939. , Wein-berg e Grant15 15 . Weinberg L. M. e Grant, F. I. Experiences with intramedullary tractomy. Studies on sensation. Arch. Neurol, a. Psychiat. 48:355 (setembro) 1942. salientaram que, nas lesões da raiz espinhal do V par, a sensibilidade táctil não se encontra perfeitamente poupada; assim, alterações dessa natureza poderiam ser evidenciadas desde que se adotassem meios semióticos mais precisos, utilizando-se, por exemplo, as cerdas de Von Frey. Não obstante, é geralmente admitido o conceito de que o tracto espinhal do V par contém predominantemente fibras condutoras das sensibilidades térmica e dolorosa, sendo pouco numerosas as relacionadas à sensibilidade táctil. Ainda sobre esta questão convém recordar que das fibras aferentes do trigêmeo, algumas se bifurcam em ramos ascendentes e descendentes (fig. 2), estas últimas integrando o tracto espinhal do nervo; outras, sem sofrerem qualquer dicotomização prévia, seguem também o trajeto descendente, incorporandq-se ao tracto espinhal. Seriam justamente estas fibras diretamente descendentes as responsáveis, segundo Strong e Elwyn16 16 . Loc. cit. 12. Nota: o mesmo esquema presta-se para. a observação 3 (J.A. N.), com a ressalva de que a sensibilidade táctil se encontra poupada no hemicorpo esquerdo. pela condução das sensibilidades térmica e dolorosa, ao passo que as fibras dicotomizadas encarregar-se-iam da sensibilidade táctil. Assim, as lesões do tracto espinhal do trigêmeo, a despeito de comprometerem muitas fibras tácteis, não afetariam pronunciadamente a sensibilidade táctil porquanto os ramos aferentes ascendentes alcançariam o núcleo sensitivo principal; as modalidades térmica e dolorosa, ao contrário, não dispondo de via suplementar de condução, ficariam inteiramente sacrificadas.


OBSERVAÇÕES PESSOAIS

Observação 1 - B.F.O., 40 anos, pardo, brasileiro, solteiro, lavrador. Internado na 6.a Enfermaria de Medicina de Homens (Serviço do Prof. Celestino Eourroul) e examinado em 14 de março de 1943.

Moléstia atual - Em meiados de março de 1943, o paciente convalescia de uma descompensação cardíaca, quando bruscamente se estabeleceu a sintomatologia neurológica. O início se processou por icto não apoplético: teve o paciente a sensação de peso na cabeça, tonturas e diminuição brusca da visão, principalmente no olho direito (sic). Ao tentar conversar, percebeu que a palavra era emitida com dificuldade e tornara-se confusa, quase inintiligível. Logo após o icto encontrou dificuldades na deambulação, percebendo ainda que não conseguia executar movimentos mais delicados com os membros do lado direito porque estes ficaram "bobos " (sic). Notou também " esquecimento" da hemiface direita e embotamento acentuado da sensibilidade na metade do tronco e membros do lado esquerdo, não percebendo picadas ou queimaduras aí provocadas. Além disso, tinha intensas sensações dolorosas de formigamento nas porções distais do membro inferior esquerdo. Durante os primeiros seis dias da moléstia, foi acometido de disfagia rebelde, en-gasgando-se com os alimentos sólidos que tentava deglutir ou então, quer fossem sólidos quer líquidos, refluindo-os pelo nariz. Depois daquele lapso de tempo, tal sintoma regrediu, desaparecendo completamente.

Antecedentes - Miocardite e insuficiência cardíaca congestiva. Nega passado venéreo-sifilítico. Exame somático - Tipo longilíneo. Mucosas coradas; ausência de enfartamento ganglionar. Aparelho respiratório: submacicez na face posterior da base direita e macicez na esquerda. Aparêlho circulatorio: abafamento generalizado das bulhas; no foco mitral, sopro sistólico com propagação para os demais focos e para a região axilar direita. Arritmia pronunciada, com ritmo de galope protodiastólico. Tensão arterial: 80X50mm. de Hg. Pulso: 100 batimentos por minuto. Abdome: fígado não ultrapassa o rebordo costal; baço percutível; cólons não dolorosos à pressão.

Exame neurológico - Psiquismo íntegro, apesar de certo grau de irritabilidade. Ausência do sinal de Romberg. A marcha se realiza com dificuldade, ocorrendo tonturas durante sua execução e tendência a desvios. Ausência de paralisias ou paresias, embora o aperto de mão se mostre menos enérgico à direita. Manobras deficitárias de Barré, de Mingazzini e "do pé": negativas. A manobra deficitária de Raimiste é negativa, notando-se, contudo, certa instabilidade da mão direita. Manobra dos braços estendidos: negativa. Provas índex-nariz e índex-índex demonstram a existência, à direita, de dismetria e decomposição de movimentos, independentemente do controle visual. Discretas oscilações à manobra calcanhar-joelho, no lado direito. Adiadococinésia à direita. Prova de Stewart-Holmes positiva à direita e negativa à esquerda. Provas do copo dágua, dos traços paralelos e desenho da linha helicoidal entre duas paralelas evidenciam dismetria à direita. Tono muscular normal. Palavra inalterada no momento do exame. Ausência de tremores ou de qualquer tipo de hipercinesias. Reflexos aquileu e medio-plantar pouco evidentes; patelares algo vivos, mostrando, à direita, o caráter pendular; reflexos estilo-radial e cubitopronador vivos de ambos os lados; bicipital, tricipital e olecraniano pouco nítidos bilateralmente; mentoneiro, oro-orbicular e nasopalpebral pouco evidentes. Não foram obtidos os sinais de Rossolimo e de Mendel-Bechterew. Cutaneoplantar em flexão, de ambos os lados. Cremastéricos, superficiais e profundos, normais. Cutâneo-abdominais pouco nítidos. Ausência de clono, trepidações, automatismos e sincinesias. Sensibilidade subjetiva: parestesias, dormência (v. anamnese). Sensibilidade objetiva: anestesia termodolorosa e discreta hipoestesia táctil no hemicorpo esquerdo, do pescoço para baixo, e na hemiface direita (v. fig. 3). Sensibilidades profundas (artréstésica, barestésica, estereog-nóstica) normais.


Exame neurocular (D. Prado) - "Visão OE: 1/4 - OD: 1/3. Nistagmos rotatórios em ambos os olhos. À direita, mióse e redução da fenda palpebral, opacidade pequena do cristalino. Fundos oculares normais em ambos os olhos".

Exame neurotorrinolaringológico (J. Rezende Barbosa) - "Dismetria e adia-dococinésia com o membro superior direito. Hipoestesia táctil da hemiface direita,, da mucosa da fossa nasal direita. Reflexo mucoso nasopalpebral diminuído à direita. Desvio mínimo da ponta da língua para a direita, quando projetada. Hipoestesia da hemilíngua direita. Hipoestesia da mucosa bucal à direita, inclusive do palato-mole. Paresia do hemipalato direito. Paresia da parede posterior da faringe à direita, com sinal da cortina para a esquerda. Hipoestesia da faringe à direita. Hemilaringe direita paralisada. VIII par craniano - Cocleares: diminuição da capacidade auditiva, principalmente à direita, de tipo percepção; Rinne positivo-lateral, Weber em lateral i zação, Schwabach diminuído; ouve voz cochichada a 1,5 m. Vestibulares: nistagmo espontâneo presente ao olhar direto, intensificando-se ao olhar lateral, principalmente para a esquerda, horizonto-rotatório, ora horizontal puro, ora rotatório horário puro; prova calórica fria (20 cc. e cabeça 60.° atrás - OD.: quase sem latência, aparece o nisjagmo horizontal puro para a esquerda, que se intensifica durante 2' mais ou menos; sensação vertiginosa quase que ausente, sem qualquer reação motora; OE.: sem latência também, obtém-se um nistagmo horizontal para o lado oposto, de abalos longos, de baixíssima freqüência, moribundo, que inibe por completo durante 2'30" o espontâneo para a esquerda; reações praticamente ausentes. Conclusões: Trata-se de síndrome centraL Os últimos pares cranianos sofrem à direita, inclusive a raiz sensitiva do trigêmeo, o que fornece uma nota bulbar ao caso. O nistagmo espontâneo é de tipo central, bem como a resposta dos sistemas vestibulares à pesquisa instrumental indicam o sofrimento das vias vestibulares centrais".

Exames complementares - Exame elétrico dos nervos e músculos da face: normal (C. V. Savoy). Reação de Wassermann no sangue: fortemente positiva (++++). Exame do liqüido céfah-raqueano (O.Lange): Punção suboccipital, em decúbito lateral. Pressão inicial 18; pressão final 12 (após retirada de 10 cc). Quocientes de Ayala: Qr = 6,6; Qrd = 0,6; liqüido límpido e incolor, citologia 1,2 células por mm3; reações de Pandy, benjoim, Takata-Ara e Wassermann, negativas ".

Observação 2 - J.G.N., 43 anos, branco, espanhol, casado, lavrador. Internado na 1.a Medicina de Homens (Prof. Almeida Prado) em 20 de agosto de 1939.

Moléstia atual - As primeiras manifestações da doença ocorreram em 1936, quando percebeu dificuldade na deglutição, engasgando-se com facilidade. Em fins de 1938, sofreu um icto apoplético, ficando " sem sentidos " por alguns dias. Esteve acamado durante dois meses e, ao levantar-se, encontrou grande dificuldade na movimentação do membro inferior esquerdo, o que prejudicava bastante a marcha. Em agosto de 1939, teve novo icto, agora do tipo vertiginoso e desacompanhado de perda da consciência: foi então acometido de tonturas violentas e zumbidos no ouvido esquerdo. Este estado manteve-se durante 24 horas. Desde então, alterou-se a voz, que se tornou fanhosa, anasalada, e exacerbaram-se afe desordens da deglutição, ao ponto de haver, por vezes, refluxos de alimentos pelo nariz. Percebeu, ainda, distúrbios da sensibilidade (dormência, sic) no lado direito do corpo, exceto na face, onde esses distúrbios eram à esquerda. Manifestou-se, por outro lado, uma certa dificuldade na execução dos movimentos dos membros do lado esquerdo, que se fazia notar sobretudo quando realizava atos musculares mais delicados.

Antecedentes - Nenhum dado de interesse. Nega passado venéreo-luético. Exame somático - Ao exame geral, nota-se logo diminuição da fenda pálpebra! a esquerda, acompanhada de miose no mesmo lado. Aparêlho circulatório: bulhas cardíacas normais. Tensão arterial: 140 X 90 mm. de Hg. Pulso: 60 batimentos por minuto. Aparelhos digestivo e respiratório: nada digno de destaque.

Exame neurológico - Psiquismo íntegro. Astasia e abasia, com tendência a retropulsões. As manobras deficitárias de Mingazzini e de Barré evidenciam, à esquerda, oscilações dos segmentos correspondentes, sem haver contudo queda (tais-oscilações podem subordinar-se ou à ataxia cerebelar existente do mesmo lado ou à hemiparesia resultante do primeiro icto, apoplético, ocorrido em 1938). Manobra de Raimiste negativa. Ataxia dos membros superior e inferior esquerdos, revelada pelas manobras clássicas e não modificada pelo controle visual. Dismetria e adia-dococinésia à esquerda. Ausência de qualquer sinal de incoordenação muscular à direita. Assinergia entre o tronco e membros inferiores, revelada pela prcva de Babinski. Tono muscular sensivelmente diminuído nos músculos dos membros do-lado esquerdo, inclusive no ombro. Palavra fanhosa e anasalada. Disfagia (v. anamnese). Reflexos patelares vivos, mas de igual intensidade em ambos os lados. Mediopúbico: resposta superior nítida e resposta inferior mais evidente à direita que à esquerda. R. estilo-radial um pouco mais vivo à esquerda; tricipital e biçi-pital normais, bem como o mentoneiro e oro-orbicular. Nasopalpebral vivo. Cutaneoplantar em flexão de ambos os lados. Ausência bilateral ds reflexos patológicos de Rossolimo e Mendel-Bechterew. Cremastéricos mais nítidos à direita que à esquerda. Cutâneo-abdominais: presentes os superiores e ausentes os médios e inferiores. Reflexos pupilares normais. Ausência de clono, trepidações, automatismos e sincinesias. Sensibilidade subjetiva: dores na hemiface esquerda e na região da nuca. Sensibilidade objetiva: dissociação siringomiélica perfeita no hemicorpo direito e imperfeita (hipoestesia táctil) na hemiface esquerda (fig. 4), Sensibilidade profunda normal em todas as suas formas (segmentar, vibratória, visceral, bares-tésica e estereognóstica). Olhos: diminuição da rima palpebral e miose à esquerda. Nistagmo do tipo rotatório para a direita ao olhar direto, acentuando-se ao olhar lateralizado. O exame dos meios e fundos oculares (Durval Prado) resultou normal. Visão igual a 1 em ambos os olhos.


Exame neurotorrinolaringológico (J. Rezende Barbosa) - "Exame da marcha impossibilitado. Na posição sentada, o paciente inclina-se ligeiramente para a esquerda. Cabeça ligeiramente inclinada para a esquerda. Aponta ligeiramente errado com o braço esquerdo. Face: sensibilidade diminuída na hemiface esquerda, inclusive na fossa nasal esquerda. Síndrome de Claude Bernard-Horner à esquerda. Boca: diminuição ligeira da sensibilidade à esquerda. Língua: sem desvio dc sua ponta ou perturbação motora acentuada; entretanto a hemilingua direita é ligeiramente mais baixa que a esquerda. Palato mole: paresia do palato à esquerda. Faringe: esboço do sinal da cortina para a direita, denotando paresia do músculo constritor superior à esquerda. Sensibilidade conservada. Laringe: hemi-laringe esquerda parética. Sensibilidade conservada. Audição no limiar da normalidade à esquerda. Surdez de condução à direita. Nistagmo espontâneo, rotatório, para a direita, presente ao olhar direto e aumentado ao olhar lateralizado. Ausência de nistagmo de posição. Pesquisa instrumental: prova calórica (10 cc. de água fria e lentamente). Ouvido esquerdo: cabeça 60° atrás: praticamente sem latência, nistagmo horizontal fortíssimo de curtos abalos, para o lado oposto, batendo 3'. Fenômenos subjetivos e reacionais presentes e normais. Ouvido direito: cabeça 60° atrás: após 12' de latência, nistagmo horizontal de grandes abalos, para o lado oposto, batendo 1 '45". Ausência de fenômenos subjetivos e reacionais para o-lado excitado. Conclusões: Trata-se, provavelmente, de um bulbar. A sintomatologia espontânea que o paciente apresenta predomina francamente à esquerda, senão vejamos: 1.° perturbação da sensibilidade facial e da mucosa nasobucal à esquerda; 2.° síndrome de Claude Bernard-Horner à esquerda; 3.° hipotonia da hemi-língua esquerda; 4.° paresia do hemipalato esquerdo; 5.° paresia do músculo constritor superior da faringe à esquerda; 6.° paresia da hemilaringe esquerda e 7.° nistagmo espontâneo rotatório para a direita (anti-horário).

A pesquisa instrumental dos ramos vestibulares do VIII par craniano demonstrou uma hiperexcitabilidade das vias vestibulares centrais à esquerda que, associada ao nistagmo espontâneo rotatório para a direita, diz do sofrimento dos núcleos vestibulares em sua zona caudal, provavelmente".

Exames complementares - Reação de Wassermann no sangue: negativa. Exame do liqüido céfalo-raqueano (O. Lange) - Punção suboccipital deitado. Pressãoinicial: 12 (manómetro de Claude); líquor límpido e incolor; citologia 1,2 células por mm3; albumina 0,10 gr. por litro; reações de Pandy, benjoim, Takata-Ara e Wassermann negativas.

Observação 3 - J.A.N., Sexo masculino, 51 anos, branco, português. (Clínica particular do Dr. Diderot Pompeu de Toledo e visto, em conferência, por um de nós) em 10 de julho de 1944.

Moléstia atual - No dia 2 de julho dêste ano, cerca das 7 horas da noite, sentiu-se repentinamente tonto e teve a impressão de que todos os objetos giravam ao seu redor. Não perdeu, entretanto, a consciência e, amparado, conseguiu alcançar o leito. Com o tempo essa vertigem giratória desapareceu, persistindo apenas ligeira tontura, até hoje presente. No dia seguinte teve vómitos muito intensos, quase contínuos, que foram atribuídos a distúrbios gástricos, pois, há 15 anos, sofrera uma gastroenteranastomose, desde então sendo freqüentemente sujeito a perturbações do aparelho digestivo. Usando medicação anti-espasmódica, os vómitos cederam; contudo, desde essa época os movimentos dos membros do lado direito prejudicaram-se, perdendo sua coordenação. Assumindo o decúbito lateral direito, o corpo "rodava" para a direita (sic). dêste modo, era obrigado a conservar-se em decúbito dorsal ou lateral esquerdo. Tentando permanecer na posição ereta, caía sempre para a direita e ao procurar andar, apresentava desvios para esse mesmo lado. Tinha, além disso, a impressão de dormência (sensação de máscara - sic) no lado direito da face e ligeira dificuldade na deglutição dos sólidos. Cefaléia intensa e sensação de latejamento na região temporal direita.

Antecedentes - Há 15 anos, sofreu uma intervenção cirúrgica no estômago, devido a ptose gástrica (?). Não é alcoólatra e nega passado venéreo-luético. Esposa e cinco filhos sadios. Exame somático - Chama logo a atenção uma ptose da pálpebra superior direita, embora discreta; miose desse mesmo lado. Aparelho circulatório: bulhas normais. Tensão arterial: 150 x 100 mm. de Hg. Pulso: 70 batimentos por minuto. Nada digno de nota para o lado do aparelho respiratório. No abdome nota-se extensa cicatriz operatória, ao longo da linha mediana. À palpação do abdome, nada se verifica digno de destaque.

Exame neurológico - Psiquismo íntegro: atenção, afetividade, raciocínio, orientação auto e alopsíquica normais; memória conservada para fatos recentes e remotos. Atitude: não consegue permanecer de pé na posição clássica para a pesquisa do sinal de Romberg. Para assumir a estação vertical, necessita alargar excessivamente a base de sustentação, ficando então em posição mais ou menos estável, que não se altera quando o doente fecha os olhos. A marcha só é possível com o apoio, evidenciando descontrole de movimentos no membro inferior direito e nítida tendência a desvios para a direita, lado para o qual o paciente cai se lhe fôr retirado o apoio. Não apresenta qualquer paralisia ou paresia; a força muscular se encontra relativamente bem conservada em ambos os lados do corpo e as manobras deficitárias são negativas, embora evidenciem-se discretas oscilações nos membros do lado direito. Nítida incoordenação muscular, do tipo cerebelar, às provas índex-nariz, índex-índex e calcanhar-joelho à direita. Neste mesmo lado, há dismetria (hipermetria, geralmente) e nítida disdiadococinésia. Prova do "thumb-finger" positiva à direita. Prova de Stewart-Holmes: positiva à direita e negativa à-esquerda. Prova da inversão, de Shilder: positiva à direita. Assinergia entre tronco e membros inferiores à prova de Babinski. Pela escrita, traçado de retas ou linha helicoidal entre duas parallas, comprova-se a existência de assinergia e dismetria no membro superior direito, bem como pela prova do copo dágua. Tono muscular discretamente diminuído no lado direito e normal à esquerda. Ligeira disfagia. Ausência de alterações da palavra. Tremores fibrilares finos na hemi-língua direita. Reflexos clônicos profundos presentes e de igual intensidade de ambos os lados do corpo; o reflexo patelar à direita manifesta o caráter pendular. Muito pouco evidentes os reflexos clônicos profundos dos membros superiores e axiais da face. Ausência dos sinais de Rossolimo e de Mendel-Bechterew. Reflexo cutaneoplantar em flexão, de ambos os lados. Não se obtém resposta à pesquisa dos reflexos cremastéricos e cutâneo-abdominais. Reflexos de postura normais. Ausência de clono, automatismos e sincinesias. Sensibilidades: térmica e dolorosa abolidas no hemicorpo esquerdo, exceto na face, onde a anestesia se manifesta à direita; sensibilidade táctil íntegra, exceção feita à hemiface direita, que apresenta discreta hipoestesia táctil. Sensibilidade profunda normal nas formas artrestésica, palestésica, barestésica e estereognóstica. Olhos: ptose palpebral e miose à direita (síndrome de Claude Bernard-Horner). Motricidade extrínseca do globo ocular normal, apesar do paciente referir discreta diplopia, notada ultimamente. Reflexos pupilares normais.

Exame otorrinolaringoneurológico (J. Rezende Barbosa) - "Disdiadococinesia direita. Dismetria com o braço direito. Aponta errado, para fora, com o braço direito. Claude Bernard-Horner à direita. Hipoestesia táctil da hemiface direita. Hipoestesia dos territórios mucosos do trigêmeo à direita. Tonicidade conservada nos masseteres. Ausência de alteração motora na face. Língua: ausência de desvio da ponta, tono conservado, movimentos" livres, paladar conservado tanto para o amargo (atrás do V lingual) quanto para o salgado e doce. Paresia do hemi-palato direito. Paresia da parede posterior à direita, com sinal da cortina à esquerda. Paresia discretíssima da hemilaringe direita. Hipoacusia direita, de tipo misto (condução-percepção), com queda acentuada na percepção dos sons agudos. À esquerda, também, apesar de audibilidade mais ou menos conservada para os sons graves e médios, observa queda na percepção dos sons agudos. Rinne positivo bilateral, Weber não lateraliza, condução óssea encurtada. Abalos nistágmicos espontâneos "revelados" ao olhar lateral esquerdo, ora horizonto-rotatórios ora horizontais. Prova calórica fria: (15 ca, 18° C - 60° atrás). Ouvido direito: sem latência, nistagmo horizontal para o lado oposto durante 2'06", de média freqüência, intenso. Sensação vertiginosa rotatória normal. Inclina e desvia com nitidez à direita. Ausência de reações neurovegetativas. Ouvido esquerdo: 17" de latência, nistagmo horizontal para o lado oposto durante 2'16", de média freqüência, intenso; sensação vertiginosa rotatória normal, menos intensa. Não apresenta desvio segmentar, ou qualquer reação neurovegetativa. Em resumo temos: 1) déficit cerebelar à direita; 2) Claude Bernard-Horner à direita; 3) hipoestesia cutânea e mucosa nos territórios do V par à direita; 4) paresia do palato mole à direita. 5) paresia da parede posterior da faringe à direita; 6) hipoacusia de tipo misto, condução-percepção, â direita; 7) hiperexcitabilidade vestibular bilateral, mais acentuada à direita. Trata-se, parece-nos, de insulto bulbar vascular, predominando à direita".

Exames complementares - Reações de Wassermann e Kahn no sangue: negativas. Dosagem de uréia no soro sanguíneo: 0,60 grs. por litro.

COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES

Nos três pacientes observados, os simples caracteres do início da doença já denunciam a patogenia vascular da lesão responsável pelo quadro clínico; efetivamente, após icto não apoplético, de tipo giratório, é que se deu o estabelecimento da sintomatologia peculiar à síndrome em questão. As primeiras manifestações, caraterizadas por tonturas violentas e vertigens, estavam provavelmente na dependência de processo irritativo, transitório, dos núcleos vestibulares, que se encontram situados nas proximidades do foco da lesão; como vimos, tais fenômenos regrediram quase completamente poucos dias após o icto inicial.

Ocomplexo sintomático observado é essencialmente o mesmo nos três casos, consistindo, em síntese, nas seguintes manifestações: síndromecerebelar, hemianestesia alterna, síndrome de Claude Bernard-Horner ealterações decorrentes do acometimento de determinados pares cranianos (trigêmeo sensitivo, glossofaríngo, vago, acessório bulbar e talvez hipoglosso). Em face dos elementos que acabamos de enumerar, pudemos firmar o diagnóstico clínico de síndrome de Wallenberg, localizando alesão, em virtude da topografia dos distúrbios, no hemibulbo direito nos casos 1 e 3 e esquerdo no caso 2.

Analisemos comparativamente os fenômenos componentes da síndrome em questão:

1. síndrome cerebelar: evidenciaram-es nitidamente, nos três pacientes, desordens cerebelares (dismetria, assinergia, adiadococinésia, etc.) à direita, nos casos 1 e 3 e à esquerda, no caso 2. É digno de destaque o fato de tais fenômenos haverem persistido mesmo depois da regressão das demais alterações, o que parece indicar a intensidade do comprometimento das vias cerebelares.

2. síndrome sensitiva alterna: relativamente às alterações da sensibilidade da face, homolaterais à lesão, verificamos, nos três casos, anestesia térmica e dolorosa e discreta hipoestesia táctil (no caso 2, a hipoestesia foi apurada mais nitidamente ao nível das mucosas inervadas pelo V par). Podemos assim concluir pela existência de uma dissociação siringomiélica imperfeita da sensibilidade em todos os casos apresentados. Êsses achados parecem comprovar, de acordo com as experiências já mencionadas, que o tracto espinhal do trigêmeo contém predominantemente fibras para as formas térmica e dolorosa e, em menor grau, para a táctil. Seguindo outra ordem de ideias, poderíamos também invocar a hipótese de que todas as fibras das sensibilidades térmica e dolorosa transitam pelo tracto espinhal do trigêmeo, donde a perda completa dessas sensibilidades no caso da lesão desse tracto; a relativa integridade da sensibilidade táctil encontraria explicação na existência de uma outra via, suplementar, poupada pela mencionada lesão. Nas três observações, as alterações sensitivas da hemiface apresentavam praticamente a mesma intensidade nos territórios oftálmico, maxilar e mandihular. Este comportamento estaria de acordo com recentes experiências realizadas em animais por McKinley e Magoun17 17 . McKinley, W. A. e Magoun, H. W. - The bulbar projection of the trigeminal nerve. Amer. J. Physiol. 137:217 (agosto) 1942. 18. Loc. cit. 4. , os quais, por meio da tomada de potenciais de ação em diferentes níveis do tracto espinhal, concluíram que a distribuição das fibras correspondentes aos três ramos do trigêmeo, ao longo da raiz descendente, processa-se sobretudo no sentido ventrodorsal, motivo pelo qual as fibras dos três contingentes seriam igualmente sacrificadas nas lesões bulhares responsáveis pela síndrome de Wallenberg.

Nos membros e tronco do lado oposto à lesão, evidenciamos, nos casos 1 e 3, anestesia térmica e dolorosa, acompanhada de hipoestesia táctil (dissociação siringomiélica imperfeita). No caso 2 nenhuma alteração da sensibilidade táctil foi por nós apurada. A hipoestesia táctil verificada nas observações 1 e 3 talvez se subordine a fenômenos de edema afetando o feixe espinho-retículo-talâmico, situado medialmente ao território interessado pela lesão.

3. síndrome oculossimpática de Claude Bernard-Horner: nos três casos, evidenciou-se mióse paralítica (com conservação dos reflexos pupilares) e ptose palpebral, ocorrendo no mesmo lado da síndrome cerebe-lar e da paralisia dos nervos cranianos. Pudemos verificar que estas alterações oculares regrediram quase completamente pouco tempo após o início da moléstia, possivelmente porque não estavam na dependência da lesão destrutiva principal ou então em virtude de suplencia funcional através de outras vias.

4. Distúrbios resultantes do acometimento de pares cranianos: como relatámos, alterações da palavra e da deglutição manifestaram-se nos casos 1 e 2, desde as primeiras fases da moléstia, regredindo em parte, posteriormente. O paciente da observação 2 acusava, mesmo antes de processar-se o icto, perturbações discretas da deglutição, que se exacerbaram nitidamente com o estabelecimento brusco de todo o complexo sintomático. Na observação 3 o paciente não exibia qualquer alteração da palavra e a paresia da corda vocal foi mero achado do exame objetivo; vemos, neste caso, esboçada a "paralisia velo-faríngea dissociada da paralisia da corda vocal", descrita por Foix, Hille-mand e Schalit. Nos 3 pacientes observados manifestaram-se ainda discretos sinais de paresia da hemilíngua homolatral à lesão, sugerindo a participação do núcleo do hipoglosso, provavelmente conseqüente a um processo irritativo de vizinhança (inibição funcional ?).

Os comentários que acabam de ser feitos justificam plenamente, a nosso ver, o diagnóstico estabelecido, nos três casos, de síndrome de Wallenberg. A sintomatologia apurada deve, por conseguinte, ser atribuída a amolecimento bulbar, unilateral, afetando essencialmente a região retro-olivar (zonas circunferencial e intermédia) e certamente depende da trombose da artéria cerebelar posterior inferior ou da artéria da fosseta lateral do bulbo. No caso 1, a forte positividade da reação de Wassermann aponta a sífilis como sendo o fator diretamente responsável pelo desenvolvimento de lesões ' vasculares, enquanto que, nos casos 2 e 3, a trombose parece ligada sobretudo a um processo de naxtu reza arteriosclerótica.

Alameda Rocha Azevedo, 921, cl 7 - São Paulo.

Trabalho apresentado na Associação Paulista de Medicina em 7 de agosto de 1944 e recebido para publicação em 21 de agosto de 1944.

  • 1
    . Wallenberg, A. - Akute Bulbäraffection (Embolie der Art. cerebelli post, inf.). Archiv, f. Psychiatrie, 27:504, 1895. cit. por Mircoli, D. - Su una síndrome alterna bulbare retro-olivare. Il Policlínico 44:335 (janeiro) 937.
  • 2
    . Wallenberg, A. - Anatomisher Befund in einem als akute Bulbäraffection (Embolie der Art. cerebelli post, inf.) beschriebenen Falle. Archiv, f. Psychiatrie 34 : 923, 1901, também cit. por Mircoli loc. cit. 1.
  • 3
    . Foix, Ch., Hillemand. P. - " Les artères de l'axe encéphalique jusqu'au diencéphale inclusivement". Rev. Neurologique 2: 705 (dezembro) 1925.
  • 4
    . Foix, Hillemand e Schalit - Sur le syndrome latéral du bulbe et l'irrigation du .bulbe supérieur. Rev. Neurologique 1: 160 (fevereiro) 1925.
  • 5
    . Böhne - Über die arterielle Versorgung des Gehirns. Über die arterielle Blutsorgung der Medulla oblongata. Zeitschrift f. Anatomie und Entwicklungsgeschichte - 84: 760, 1927.
  • 6
    . Vampré, E. - Síndromes bulhares. Monografia laureada, em 1937, com o prémio "Honorio Libero", concedido pela Associação Paulista de Medicina.
  • 7
    . Tilney, F. e Riley, H. A. - The form and functions of the central nervous system. 3.
    a ed., Paul Hoeber, 1938, pág. 289.
  • 8
    . Sobre o comprometimento das funções cerebelares nas lesões do bulbo e dos outros segmentos do tronco encefálico, consulte-se a excelente monografia do prof. A. Almeida Prado: "Les syndromes cérébelleux mixtes". 1 vol. Masson édit., Paris, 1931.
  • 9
    . Mattirolo, G. - Malattie Nervöse. 3.
    a ed. Editrice Torinese, 1937, p. 195.
  • 10
    . Krieg, W. J. S. - Functional Neuroanatomy. T,he Blakiston Companhy, 1942, pâg. 181.
  • 11
    . Fulton, J. F. - Physiology of the Nervous System. Oxford University Press, 1938, pâg. 239.
  • 12
    . Strong, O.S. e Elwyn, A. - Human Neuroanatomy. The Williams and wilkins, 1* ed., 1943, pag. 249.
  • 13
    . Gerard, M. W. - Afferent impulses of the trigeminal nerve: the intramedullary course of the painful, thermal and tactile impulses. Arch. Neurol, a. Psychiat. 9: 306 (marco) 1923.
  • 14
    . Walker, A. E. - Anatomy, physiology and surgical considerations of the spinal tract of the trigeminal nerve. J. Neurophysiol. 2:234 (maio) 1939.
  • 15
    . Weinberg L. M. e Grant, F. I. Experiences with intramedullary tractomy. Studies on sensation. Arch. Neurol, a. Psychiat. 48:355 (setembro) 1942.
  • 16
    . Loc. cit. 12.
    Nota: o mesmo esquema presta-se para. a observação 3 (J.A. N.), com a ressalva de que a sensibilidade táctil se encontra poupada no hemicorpo esquerdo.
  • 17
    . McKinley, W. A. e Magoun, H. W. - The bulbar projection of the trigeminal nerve. Amer. J. Physiol. 137:217 (agosto) 1942.
    18. Loc. cit. 4.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Mar 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 1944
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