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A psiquiatria infantil nos Estados Unidos

CONFERÊNCIAS

A psiquiatria infantil nos Estados Unidos

Iracy Doyle

Docente da Fac. Med. Univ. Brasil (Rio de Janeiro). Diretora do Sanatório Tijuca

Ao século XX coube a honra de presenciar a origem do movimento, que veio a ser conhecido com o nome de Psiquiatria infantil.

Não quer isso dizer que os problemas que integram o campo da nova especialidade não existissem anteriormente. Existiam e estavam sem solução. A chamada anorexia nervosa das crianças desafiava o esforço dos pediatras e zombava dos aperitivos e demais truques, que o bom senso ditava nos diferentes casos. Os tratamentos habituais costumavam falhar ante o problema da enurese noturna de muitas crianças. E a história dos tiques escrevia novas e novas folhas, apesar das medidas educacionais postas em prática. Se os problemas de comportamento deixavam pensativos os pediatras, mais adiante lançavam em desespero as professoras, que não podiam compreender, nem mesmo queriam admitir, a falência dos seus processos. Os repetentes crônicos adolesciam nos bancos das escolas. Os indisciplinados de todos os tipos, os tiranos, os rebeldes, constituíam o terror dos mestres e teimavam em desviar-se do bom caminho, apesar de esgotados todos os recursos pedagógicos. Os tímidos, os deprimidos, esses, ao menos, ficavam quietos e não perturbavam o silêncio relativo, necessário a que se transmitissem as noções constantes dos programas. De outro lado, o problema da delinquência infantil traçava a sua curva ascendente, para atingir cifras alarmantes em nossos dias. O simples isolamento nas prisões e casas de correção não podia satisfazer, porque a experiência demonstrava que pouquíssimos elementos conseguiam regenerar-se, quando tratados desse modo.

Ainda que importante fossem essas questões e clamassem por uma solução urgente, elas não puderam ser convenientemente ventiladas e esclarecidas, senão hodiernamente. A história da evolução cultural do homem demonstra, a cada passo, que os conceitos, por mais originais que pareçam, não surgem espontaneamente. Para que uma nova disciplina se organize e possa merecer o seu lugar de honra entre os diferentes ramos do conhecimento humano, faz-se necessário um certo estado de cristalização dos conhecimentos básicos, solicitados de especialidades afins. Assim aconteceu com a Psiquiatria infantil.

Foi em nosso século que a Pediatria atingiu a maturidade suficiente, para reconhecer que a criança não é um adulto em miniatura. Esse conceito significou uma revisão de todos os assuntos médicos no que diz respeito à criança. A Psiquiatria contemporânea, dentro da sua nova orientação psicológica, começou a verificar que as tendências, que levam o homem à delinquência, à dependência e às desordens mentais, frequentemente se constituem desde a mais tenra infância. Se assim demonstravam as histórias clínicas, do mesmo modo postulava a Psicanálise, que não apenas elevou o instinto sexual ao nível de preocupação e estudo científico, como focalizou os conflitos infantis, que mostrou serem responsáveis por grande número de futuros desequilíbrios e dificuldades de toda a ordem.

Ao mesmo tempo, a Psicologia esquecia Wundt e renegava a sua antiga atitude atomista. Abandonava o laboratório e passava a observar o ser humano, debaixo da mesma atitude dinâmica, que carateriza o século em que vivemos. O behaviorismo, a psicologia de Gestalt, o ponto de vista psico-biológico de Meyer são criações de cérebros que ainda vivem. E a eles, a Psiquiatria infantil rende um preito de gratidão, pela contribuição valiosa que trouxeram à compreensão dos problemas da natureza humana, problemas que permaneciam inexplicáveis à luz da fisiologia e da química.

A modificação da atitude clássica em matéria de jurisprudência criminal é outro elemento a ser tomado em consideração, para que se compreenda a origem do movimento, que se convencionou chamar Psiquiatria infantil. À idéia de segregação do criminoso, seguiu-se o conceito de reabilitação. Mas, prevenção é a palavra final, que ainda figura na ordem do dia: evitar a criminalidade, pela compreensão dos mecanismos que levam o homem ao delito e pelo tratamento daqueles que esboçam tendências anti-sociais. Isso equivale mais ou menos a dizer - amparo, assistência e tratamento psico-educacional dos criminosos infantis e juvenis.

Contemporâneo da Psiquiatria infantil, desenvolveu-se, como consequência da primeira guerra mundial, o movimento conhecido sob o nome de Serviço Social, que estava fadado a ser um dos grandes auxiliares da moderna Psiquiatria.

No campo da educação escolar, os trabalhos já clássicos de Pestalozzi, Froebel. Decroly e Montessori deram lugar, nos dias contemporâneos, a uma concepção pedagógica diferente, que se veio a chamar nova educação ou educação progressiva. A principal caraterística do auspicioso movimento consistia em exigir que a criança constituísse o centro de atenção da escola. Que a escola fosse organizada de acordo com as necessidades infantis, que tomasse em consideração e estudo a personalidade de cada indivíduo; em uma palavra, que tivesse como escopo principal a educação dos alunos, a formação de hábitos e atitudes sadias, e não, simplesmente, o aprendizado de um programa. Assim orientada, a escola moderna apresentava e apresenta uma mentalidade que lhe permitiu integrar-se, sem esforço, no amplo movimento que se organiza em benefício da criança.

Em 1908, a pena de Clifford Beers escrevia as primeiras palavras da história da Higiene mental. Excepcionalmente feliz desde o nascimento, porque vinha de encontro a um ideal comum, qual seja o da profilaxia das desordens mentais, a Higiene mental preparou terreno para o advento da Psiquiatria infantil. Em um ponto, principalmente, as duas disciplinas estreitam as mãos, porque se a primeira procura evitar a doença, pela educação dos adultos, a segunda, protegendo a criança, amparando-a, guiando-a, resolvendo-lhe os conflitos, reduz as probabilidades de futuras desordens psicológicas.

Para dar uma rápida noção da origem e desenvolvimento da Psiquiatria infantil nos Estados Unidos, diremos que, em 1909, o Dr. William Healy, preocupado com o problema da delinquência juvenil, que procurava estudar sob o ponto de vista médico, psicológico e social, teve a idéia de fundar o Instituto Psicopático Juvenil de Chicago (Chicago Juvenile Psychopathic Institute), que foi, incontestavelmente, o pioneiro em matéria de Child Guidance. Anteriormente, as tendências criminais eram consideradas inatas, e como tal abandonava-se o criminoso à sua sorte. O máximo que se fazia era proteger a sociedade pela segregação dos elementos agressivos. Mas, no Instituto de Chicago, o juiz Healy procurou estabelecer métodos científicos de estudo. Pela análise cuidadosa da vida da criança, esforçava-se por compreender a conduta criminosa, esclarecer os fatores etiológicos, em cada caso concreto, e formular planos racionais de tratamento. O estudo dessas biografias levou Healy a verificar que os problemas de comportamento infantil não pertenciam, obrigatoriamente, ao terreno da psicopatologia e que, frequentemente, a conduta criminosa dependia de uma atitude especial em face da sociedade, constituída progressivamente no decorrer da vida. Essa atitude era, algumas vezes, consequência do ambiente desfavorável em que evoluia a criança e desse modo se impunha a remoção do pequeno anti-social para um ambiente sadio, onde a sua reeducação iria processar-se sob orientação especializada. Sob o influxo das idéias formuladas no Instituto de Chicago, foi criada uma clínica especializada para crianças no Boston Psychopathic Hospital, em 1912.

Já então se reconhecia a necessidade da colaboração do assistente social, encarregado de entrar em contacto com o ambiente em que vivia a criança e avaliar os fatores mesológicos, mais ou menos complexos e sutis, que convergiam para a resultante final - o crime. A princípio, a ação do assistente social consistia em colher dados e redigir histórias, que facilitavam o raciocínio do psiquiatra. Mais adiante, foi-lhe confiada a tarefa de verificar se o tratamento, aconselhado pela Clínica, estava sendo posto em execução e referir as modificações processadas no comportamento infantil. Entretanto, o contacto estreito com as famílias e demais comunicados permitiu ao assistente social estender a ação da clínica ao ambiente familiar e coletivo. Pouco se conseguiria, em muitos casos, se o tratamento visasse exclusivamente a criança, desde que o problema era essencialmente familiar ou social. Os laços emocionais, que se estabeleciam entre os pais e o assistente social, todos movidos por um interesse comum, levavam a uma natural discussão de problemas que, embora pertencentes aos pais, não deixavam de influenciar a criança. À medida que avaliavam as suas dificuldades emocionais, os pais sentiam-se mais seguros e cooperavam melhor na tarefa que lhes era ditada pela clínica. Ampliada assim a função do assistente social, impunha-se uma revisão nas escolas de Serviço Social, para que os novos elementos se tornassem mais aptos para cumprir as suas funções.

A tarefa gigantesca de reorganização coletiva, consequente ao primeiro conflito mundial, impôs novas exigências ao nascente Serviço Social, que, premido pelas circunstâncias do momento, inaugurou uma nova especialidade. Refiro-me ao Serviço Social psiquiátrico. Os seus elementos, com uma complexa e ampla formação mental, estavam em melhores condições para compreender os desajustamentos individuais e sociais e foram logo chamados a desempenhar as funções delicadas, que lhes cabiam no programa da orientação infantil.

De outro lado, compreendendo a importância da vida escolar no equilíbrio e felicidade da criança, reconhecendo que a falência na escola levava o pequeno estudante a procurar gratificações em outros sentidos, Healy verificou a necessidade de que um psicólogo, treinado em questões educacionais, fizesse parte da Clínica. Sua principal atribuição era avaliar a capacidade mental e verificar se a criança estva usando todos os seus recursos intelectuais; em suma, os dados registrados pelo psicólogo auxiliavam imensamente na explicação da falência dos métodos pedagógicos, em cada caso, e na compreensão da dificuldade infantil, em relação ao ambiente escolar. Assim se constituiu a equipe de uma Child Guidance Clinic: psicólogo, assistente social e o seu capitão, o psiquiatra infantil. A este compete não apenas o tratamento individual do caso, mas a coordenação dos demais elementos, num plano harmônico de ação conjunta.

As qualificações necessárias para um especialista em Psiquiatria infantil estão presentemente bem definidas: além de possuir conhecimentos de medicina geral, ele deve ter uma mentalidade formada de acordo com as modernas concepções que orientam a Psiquiatria dos nossos dias. Mais ainda, dadas as responsabilidades que pesam sobre seus ombros, faz-se mister que o chefe da equipe seja uma pessoa bem equilibrada, adaptada satisfatoriamente à vida, que não aceita o trabalho como uma espécie de compensação para as suas dificuldades, mas que o realiza movido por um ideal sadio. Ele deve sentir-se bem com os pequeninos e ter habilidade suficiente para lidar com crianças de ambos os sexos e de todas as idades, e estar em condições de poder ver e avaliar os problemas infantis, sem se deixar perturbar emocionalmente. Finalmente, deve estar em dia com as técnicas especializadas inerentes à nova disciplina.

Impressionado pelos resultados obtidos, em Chicago, pelo Dr. Healy, o Juiz Harvey Baker, de Boston, iniciou a campanha que se coroaria, depois da sua morte, em 1915, com a inauguração da Judge Baker Foundation, que não se limitava aos casos de delinquência, mas recebia e tratava menores desajustados, que lhe eram enviados tanto pelas Cortes Juvenis, como pelas agências sociais de Boston.

Em 1930, o estreito espírito de colaboração existente entre pediatras e psiquiatras do Johns Hopkins Hospital and University permitiu a criação, na Harriet Lame Home for Invalid Children, daquele hospital, de uma clínica especializada em Psiquiatria infantil, que seria o centro do movimento da Child Guidance, na cidade de Baltimore.

Feita essa rápida referência à origem da Psiquiatria infantil americana, direi que a sua evolução foi das mais impressionantes, não só pela extensão linear que tomou, como pela força de que se revestiu. Basta dizer que, enquanto, em 1919, contava os Estados Unidos apenas com sete clínicas especializadas em Child Guidance, em 1933 existiam mais de duzentas, em pleno funcionamento.

Filha da Psiquiatria clínica e forense, aliada da Psicologia, da Pedagogia, da Higiene mental, da Assistência Social, a Psiquiatria infantil constitui um movimento complexo, que tem por objetivo o estudo e tratamento dos desvios psicológicos da criança. Vasto é o seu campo de ação e múltiplos os problemas que lhe são inerentes, conforme procuraremos ressaltar nas linhas que se seguem. A julgar pelos dados estatísticos, a incidência das psicoses na infância não constitui problema alarmante. Rhein, Strecker, Kasanin e Kaufman (1938)1 1 . Apud R. D. Gillespie - A Survey of Child Psychiatry, London, 1939. registram apenas 1% de estados psicóticos infantis, num total de 21.000 admissões em hospitais para doentes mentais.

De outro lado, tanto os que trabalham em Psiquiatria infantil, como os pediatras, reconhecem que a maioria dos distúrbios de comportamento não corresponde nitidamente a estados de doença, no conceito médico geral. Eles ocorrem em crianças somaticamente sadias e, se coexistem com estados de doença, não costumam, geralmente, ser influenciados pelos tratamentos medicamentosos. Existem, incontestavelmente, alterações da conduta relacionadas a doenças gerais, a estados carenciais, como a disfunções glandulares, ou a estados infecciosos. Mas esses casos estão muito longe de constituir a maioria, nem sobre eles insistiremos, porque a Pediatria está suficientemente equipada para assisti-los convenientemente.

A questão da debilidade mental, ainda que importante, não esgota o vasto âmbito da Psiquiatria infantil. O estudo das crianças atrasadas demonstra que, em muitas delas, o atraso não é real, mas relacionado a estados de inibição, produzidos por conflitos emocionais. Esse mesmo fato observa-se em certos neuróticos adultos, quando se tem o cuidado de testar, antes e depois do tratamento psicológico, as suas reservas mentais. Em muitos casos, assiste-se a um verdadeiro renascimento intelectual, depois de conquistada a harmonia e a estabilidade afetivo-emocional. De outro lado, os problemas de conduta, quaisquer que eles sejam, não são privativos dos intelectualmente inferiores. Kanner2 2 . Kanner, L. - Child Psychiatry, Baltimore, 1937. encontrou, entre 1.000 crianças, 84 intelectualmente superiores (Q.I. superior a 110), apresentando anormalidades de comportamento. Pensamos ainda que, excetuados os casos de déficit mental profundo, relacionados a lesões grosseiras do sistema nervoso, ou a severas disfunções glandulares, podemos considerar os estados de inferioridade intelectual leve, a chamada debilidade mental, como fenômenos de variação individual, antes de encará-los como doenças. Os débeis mentais, sujeitos a um regime pedagógico que respeite as suas naturais deficiências, podem desenvolver-se placidamente e tornar-se elementos úteis dentro do esquema de organização das modernas sociedades, desde que orientados para uma profissão que lhes seja accessível.

Naturalmente que a capacidade intelectual é um dado a tomar em consideração, quando estudamos um determinado problema. Mas o Q.I. não é tudo, uma vez que desajustamentos de toda a ordem são encontrados tanto em crianças obscuras, como em pequeninos brilhantes. Significa isso que, além do fator somático, além do fator intelectual propriamente dito, existem outras forças, hoje já bastante estudadas, que impelem o ser vivo do berço ao túmulo e condicionam a sua miséria ou a sua felicidade. Refiro-me aos impulsos primitivos ou infantis, cujo sistema de forças molda as atitudes definitivas do ser humano ante as ocorrências da vida e torna um otimista e confiante, outro desconfiado e sensitivo, este pessimista, esse submisso, aquele autoritário.

A compreensão dinâmica dessas desordens, muito mais promissoras (porque orienta a ação), opõe-se ao clássico conceito genético, que, embora não possa ser negado completamente, revela-se absolutamente estéril no ponto de vista prognóstico e terapêutico. Logo que nasce, a criança começa a despender esforços no sentido da adaptação. As suas necessidades encontram no choro e na linguagem motora os primeiros elementos de expressão. Ao mesmo tempo, sofre a imposição dos horários e demais medidas educacionais, que visam o estabelecimento dos primeiros hábitos. O ambiente familiar, ainda que reduzido, impõe suas exigências. A família, unidade social primária, diz Charles Burns, "é o berço da virtudes e dos vícios da espécie humana". A adaptação familiar nem sempre se processa suavemente. Tanto é assim que os desajustamentos infantis, no que diz respeito aos pais e irmãos, são não apenas numerosos, como variados. Muitas vezes, os conflitos obedecem a fatores aparentes e facilmente compreensíveis, como, por exemplo, no caso de crianças nascidas em lares desfeitos, ou quando é grande o estado de tensão e desarmonia entre os pais. Mas nem sempre as cousas assim se passam. Muitos casos de neurose e de alterações da conduta são observados em meninos de famílias aparentemente bem ajustadas. Nessas circunstâncias, é preciso orientar o estudo no sentido de evidenciar a atuação de forças mais obscuras e sutis, mas nem por isso menos ativas, capazes de pôr em perigo a organização psicológica da criança. É preciso não esquecer que, na sua despreocupação aparente, a criança é um grande apaixonado, martirizado de dúvidas e de ciúmes, com fantasias mais ou menos vivas, em que os lances chegam à intensidade das tragédias shakespearianas. Esses dramas, envolvidos pela névoa do esquecimento, sedimentados sob as ocorrências posteriores da vida, deixam marcas indeléveis, capazes de explicar futuras dificuldades.

A entrada para a escola inaugura um período particular da vida da criança. Alargam-se os horizontes. Novos personagens entram em cena. Complicam-se as circunstâncias de cada dia, a requerer esforços no sentido da adaptação. Além das exigências do aprendizado escolar, propriamente dito, impõe-se a formação de novas atitudes. É especialmente delicada essa fase para os intelectualmente deficientes, se a sua condição não é compreendida precocemente e avaliada a sua capacidade de aprendizagem. Igualmente difícil revela-se a adaptação comunal para aquelas crianças que não venceram plenamente os conflitos, mais ou menos severos, ocorridos no ambiente familiar. O filho único tem que se habituar à vida das multidões. A criança dependente tem que aprender a usar os próprios recursos, na solução das dificuldades. O pequeno tirano sente abalado o prestígio do seu domínio. O herói, aplaudido e admirado em casa, sem restrições, tem que aceitar o critério do grupo e aprender a suportar críticas justas e injustas. A falência na adaptação escolar não é, infelizmente, raridade. Muitas vezes é confessada sinceramente pela criança numa frase singela, ou num acesso de choro, em que exprime o seu desgosto pela escola. Outras vezes, porém, o motivo do sofrimento não é bem avaliado. O pequeno vai à escola e até progride razoavelmente nos estudos. Mas começa a se mostrar medroso, a exibir tiques os mais diversos, a definhar e mostrar-se triste ou irritado. Até mesmo a delinquência tem sido vista como sintoma alarmante dos desajustamentos escolares. Já é tempo de reconhecer, como princípio geral, que os sintomas neuróticos, ou as alterações de conduta, na maioria das vezes, indicam um estado de tensão psicológica, que precisa ser aliviado. Que as medidas coativas de toda à espécie nada mais fazem que agravar o estado de tensão pré-existente. Que mesmo as recompensas e estímulos não constituem medida terapêutica segura. Que só a compreensão real do problema pode indicar a conduta a seguir em cada caso particular. E que todo o sintoma persistente de desajustamento requer a interferência do especialista treinado em Child Guidance.

A pequena comunidade escolar continua-se no vasto ambiente social, que passa a ser frequentado mais ou menos intensamente pela criança. Isso significa novos esforços no sentido de uma adaptação vitoriosa, não apenas a elementos da mesma idade, como a crianças mais jovens e adultos. As etiquetas e convenções sociais têm que ser mais que aprendidas, aceitas. Ao jovenzinho cumpre distinguir entre direitos e obrigações. Deve aprender a ser disciplinado, sem ser humilde. A fazer valer os seus direitos, sem tirania. Ser prudente, sem ser covarde. Ser corajoso, sem ser excessivamente afoito. Tudo isso implica em atitudes totais da personalidade, que mais tarde atestarão o valor social do indivíduo.

Os desajustamentos sociais da criança constituem o produto da interação das dificuldades infantis e das exigências da coletividade. Nessas condições, o tratamento deve, em certos casos, dirigir-se mais em relação ao ambiente social, em outros mais em relação à criança.

A delinquência infantil constitui outro capítulo da Child Guidance. Enquanto o conceito de segregação e de responsabilidade criminal predominou, o problema do crime pertencia, inteiramente, à alçada da jurisprudência. Mas, a idéia de reabilitação do criminoso, como a de prevenção dos atos anti-sociais, dominante nos dias atuais, conduz ao estudo da personalidade do delinqüente e à compreensão dos mecanismos que conduzem ao ato criminoso. Desse modo, a delinquência infantil, como a delinquência em geral, deslocou-se do terreno forense, propriamente dito, para o campo visual do psiquiatra. Não cabe no presente ensaio, nem é nosso objetivo, estudar o problema do crime infantil. Diremos apenas que, no ponto de vista patogênico e terapêutico, a nossa atitude deve ser a mesma que adotamos quando tratamos sintomas neuróticos. Que, como êsses, os atos anti-sociais representam sempre a expressão de um conflito emocional.

Os que estudam a evolução psicológica do homem admitem que os impulsos instintivos, inerentes a todo o ser vivo, representam as forças primárias da formação da personalidade. Que, através do processo educacional, de adaptação familiar e social, eles procuram exprimir-se, seja pela palavra, seja pela linguagem orgânica, seja pelos atos. Que, muitas vezes, esses impulsos primitivos entram em conflito com as imposições sociais e são inibidos na sua livre expressão. Que o instinto sexual nasce com a criança e atravessa várias fases na sua evolução, até atingir o estado de maturidade, quando orienta o ser humano para outro de sexo diferente e garante, pelo seu componente genital, intrínseco no amor, a perpetuação da espécie. Que as manifestações sexuais na criança não constituem desordens propriamente ditas, nem indicam uma alteração do caráter ou da personalidade. Que é preciso adotar uma atitude de extrema prudência, no que diz respeito à sexualidade infantil, em matéria de Child Guidance, para evitar que uma intervenção intempestiva, por parte dos pais e educadores, possa criar dificuldades à evolução de um impulso normal, e despertar problemas, onde eles praticamente não existem. Campanha educacional impõe-se nesse sentido, para que os responsáveis pela criança não apenas aprendam a ver, tolerar e respeitar as manifestações da sexualidade infantil, como assimilem a melhor atitude a adotar no que diz respeito à educação sexual. Um fato está definitivamente estabelecido: as medidas severas de repressão são absolutamente nefastas, e geram um estado de curiosidade maliciosa, determinam sentimentos de culpa, sensações de ansiedade e sintomas de toda a ordem. É preciso compreender, de uma vez por todas, que um instinto como o sexual, pela sua natureza mesma, tem que achar expressão de algum modo. Se não puder falar a linguagem normal de que dispomos, se não puder encontrar motivos de satisfação, se representar fonte de sofrimentos e humilhações, se for reprimido, em suma, ele terá que se manifestar por formas disfarçadas e falará a linguagem menos clara dos sintomas.

Temos que agradecer a Freud o legado que deixou aos estudiosos, particularmente precioso para os que lidam com os desvios psicológicos e têm a responsabilidade de tratá-los. Não posso compreender, a não ser como consequência de velhos preconceitos, a atitude de indiferença, de descrédito ou de hostilidade, com que são recebidas as lições do mestre de Viena. Nem sei porque o homem poderia sentir-se mais honrado em ser tratado à luz da Psicologia fisiológica, e comparado a cães e gatos, nos laboratórios experimentais, do que ao reconhecer a sua realidade psicológica e compreender os mecanismos profundos da conduta pessoal. Mas, não falemos mais em Freud. A Alemanha nazista, ao expulsá-lo do seu território e ao queimar-lhe os livros, prestou-lhe a maior de todas as homenagens.

Ao terminar essa rápida análise dos problemas relacionados à Psiquiatria infantil, desejo dizer apenas que os sintomas de sofrimento psicológico da criança são os mais variados. Tiques, gagueira, alterações do sono, enurese, convulsões, estados de depressão, irritabilidade, crueldade, atos anti-sociais e todas as alterações de comportamento podem ser encontradas.

Um fato está demonstrado: dada manifestação não corresponde sempre a um mesmo conflito inicial, a recíproca sendo verdadeira - o mesmo conflito inicial pode dar origem a diversos sintomas aparentes. É precisamente esta complexidade que torna difícil e atraente o estudo da Psicopatologia. E a certeza de que as cousas assim se passam indica a atitude a seguir, em face dos problemas psicológicos infantis: antes de perguntar o que fazer para suprimir a atividade indesejável, devemos procurar compreender o que se passa com a criança, para levá-la a proceder desse modo. Só então, estaremos em condições de elaborar planos de terapêutica. Não nos deteremos em descrever técnicas especiais de tratamento, nem discutiremos a conduta a adotar em relação à terapêutica dos diferentes problemas analisados. Em linhas gerais, diremos apenas que o terapeuta deve considerar a alteração da conduta infantil como sinal de um desajustamento geral, em que múltiplos fatores encontram-se envolvidos, em várias combinações e vários graus de intensidade.

Uma outra lição que nos dá a Psiquiatria infantil americana é a atitude "meliorística", que aconselha ao especialista. Na verdade, não podemos resolver todos os casos entregues aos nossos cuidados. Seja porque não dispomos dos meios necessários, uma vez que a Child Guidance está ainda em fase inicial de organização, seja porque a situação revele-se definitivamente irremovível, como, por exemplo, nos estados mórbidos ditados por lesões orgânicas irreversíveis. Se o médico desanimar ante as dificuldades do caso, quem poderá auxiliar a criança? Nada prejudica mais, em matéria de medicina, que pensar em termos de cura completa e de falência completa. Por exemplo, não estamos em condições de tratar o débil mental, a ponto de remover completamente a sua deficiência. Mas podemos ajudá-lo a encontrar o seu lugar na vida. Podemos protegê-lo de sugestões desastrosas; livrá-lo das exigências descabidas de professores obcecados por programas e de pais ambiciosos e cegos; podemos prepará-lo para uma profissão de acordo com a sua capacidade e fazer dele um cidadão útil, com direito a uma vida feliz. Se não conseguirmos remover as sequelas de uma paralisia infantil, ou de uma hemiplegia, podemos modificar a atitude do indivíduo em face do defeito, por meio de uma avaliação psicológica do seu problema. Isso equivale a dizer: em matéria de doença, é preciso obter o melhor possível, quando não podemos conseguir o ótimo. Essa atitude "meliorística" tem, em Child Guidance, sua máxima razão de ser. A Psiquiatria infantil lida com seres que iniciam a sua vida. O que se obtiver, então, repercutirá sobre o futuro inteiro do indivíduo. Pesa sobre os ombros do especialista a responsabilidade enorme do futuro de um cidadão, que poderá ser absolutamente útil, relativamente útil, ou representar peso morto na organização social. Não há lugar para otimismos exagerados, nem para pessimismos extremos. Cogita-se de uma atitude de avaliação calma da realidade e de um desejo sincero de obter para o paciente o máximo possível.

Se quisermos resumir o trabalho ciclópico de que a Child Guidance aceitou a responsabilidade, diremos que o tratamento, em si, assume vários aspectos, que devem ser realizados simultânea ou sucessivamente. Esses diferentes aspectos ou fases são, em síntese: o tratamento da criança propriamente dita, o tratamento da família e a ação terapêutica junto à comunidade. Bastam esses três tópicos para indicar a complexidade do assunto e a extensão da tarefa, para a realização da qual colaboram várias instituições, diferentes entre si, mas harmônicas em seu funcionamento, porque movidas pelo mesmo ideal.

Tomemos para exemplo do nosso estudo a cidade de Baltimore. Não que ela seja padrão. A maioria das grandes cidades americanas apresentam as suas organizações de Child Guidance, em pleno funcionamento e satisfatoriamente coordenadas entre si - atestado honroso do que é a democracia amiga e do cuidado que dedica ao preparo da geração futura. Mas, como vivemos a maior parte do tempo em Baltimore, sentimo-nos mais à vontade para realizar esse raid de reconhecimento pacífico e transmitir aos ouvintes a visão panorâmica, e um tanto fotográfica, do movimento conjunto dessa cidade, no que diz respeito à Child Guidance.

A célula mater, centralizadora do movimento, é constituída pela Children's Psychiatric Clinic do Johns Hopkins Hospital and University. Sob a direção de Leo Kanner, organizada segundo os moldes de uma Child Guidance Clinic, com a sua equipe de psiquiatras, psicólogos e trabalhadores sociais, a clínica, em sistema ambulatório, recebe e trata qualquer criança que apresente problemas, independente de sexo, idade, cor, condição social ou proveniência. A maioria dos casos são encaminhados ao Serviço pelas agências sociais e pelos pediatras. Alguns provêm da Divisão de Educação Especial do Departamento de Educação e das Cortes Juvenís, de que mais adiante falaremos. Funcionando anexa ao Departamento de Pediatria do Hospital, a Clínica dispõe da colaboração de um corpo excelente de pediatras, sempre que existem alterações da saúde geral, que requeiram tratamento.

Não me deterei em analisar o trabalho de uma Child Guidance Clinic. Direi apenas que o psiquiatra é o coordenador da equipe e o orientador do tratamento. Ele trabalha diretamente com a criança, auxiliado pelos dados colhidos pelo assistente social e pelas veriifcações do psicólogo. Em muitos casos, ele intervém junto aos pais, no sentido de normalizar as relações familiares e criar atitudes de compreensão e colaboração sincera. Com as famílias, trabalha igualmente o assistente social, cuja ação estende-se pela comunidade, junto à escola, junto à igreja, clubes e demais ambientes frequentados pelo menor.

Os métodos usados numa clínica dessa natureza, naturalmente, variam de acordo com o caso em apreço. Seria impossível, numa exposição que tem de ser rápida, analisar ou mesmo citar os recursos terapêuticos dessa especialidade. Entretanto, não apenas por ser exclusivo da Psiquiatria infantil, como pela ampla aplicação que vem tendo, merece referência, ainda que sumária, a chamada "play interview". O brinquedo é a vida mais natural de aproximação com a criança, de que dispõe o psiquiatra. Chegar de mãos abanando perto de uma criança não confere grande vantagem inicial. Brinquedos interessantes estimulam a criança à expressão. Logo, com um grupo de bonecas, ela organiza uma família, que começa a agir, de acordo com os pensamentos e emoções do pequeno diretor de cena. Assim, a "play interview" da Psiquiatria infantil não apenas dá à criança uma oportunidade de falar, como de discutir e avaliar as suas realidades.

Se a criança colocada sob a responsabilidade da Clínica apresenta um estado psicótico (ocorrência felizmente rara), a Clínica orienta-a para um dos hospitais de Psiquiatria infantil da cidade. Rosewood e Chromsville são instituições especializadas na assistência e tratamento de oligofrênicos profundos, isto é, imbecis e idiotas, cuja educação tem que obedecer a técnicas pedagógicas particulares e exige professores treinados para esse fim.

À Divisão de Educação Especial do Departamento de Educação estão afetos os casos de desajustamentos escolares. Além de uma Clínica Psico-Educacional, a Divisão mantém classes especiais para débeis mentais, classes para crianças aleijadas, para as que exibem defeitos de audição, de visão, alterações na linguagem, ou que apresentam dificuldade particular em uma ou mais disciplinas. Oportunidades especiais são oferecidas às crianças excepcionalmente inteligentes. Se a Divisão de Educação Especial não dispõe dos recursos necessários, ou não consegue resolver a situação de desajustamento, o aluno é enviado à Children's Psychiatric Clinic, para melhor estudo da sua dificuldade.

Quando se trata de problemas de comportamento particularmente sérios, que não podem, por um motivo ou outro, ser tratados no ambiente familiar, a criança é removida para a Child Study Home, orientada por um psiquiatra, que dispõe da colaboração de psicólogos, assistentes sociais e professoras especializadas nesse gênero de trabalho. Na Child Study Home, permanece o menor, até que sua situação fique completamente esclarecida. Se as verificações indicam que ele pode voltar para o seio da família e receber tratamento ambulatório, a Children's Psychiatric Clinic toma-o aos seus cuidados. Em caso contrário, se o ambiente familiar é de tal modo prejudicial e não pode ser modificado, ele é removido para um colégio, ou entregue aos cuidados de uma outra família, que passa a educá-lo, sob a orientação da Clínica. Desejo expressar aqui a minha admiração sincera por essas mães americanas, que recebem de braços abertos os pequeninos sofredores e oferecem-lhes a assistência adequada, que não tiveram a ventura de encontrar nos ambientes onde foram gerados.

Resta-nos lançar as nossas vistas para os pequenos delinquentes de todos os tipos, colocados sob a responsabilidade da Corte Juvenil. A ação policial, nesses casos, limita-se à apreensão do pequeno anti-social. Entregue à Corte Juvenil, quando qualquer um esperaria má vontade e castigo, ele encontra um ambiente de interesse e simpatia e entra em contacto com pessoas que tratam com naturalidade o seu problema, que procuram compreendê-lo e desejam auxiliá-lo. Além do Juiz, a Corte possui uma equipe de Child Guidance, isto é, psiquiatra infantil, assistente social e psicólogo. Salvo nos casos de reincidência, ou em condições excepcionais, quando se trata de crianças pertencentes a famílias onde imperam influências absolutamente prejudiciais, o menor delinquente é tratado em regime ambulatório, sob fiscalização. Essa oportunidade, após a primeira queda, constitui um estímulo, que desperta na alma da criança o desejo de consideração pela sociedade que, apesar do seu crime, ainda a recebe e deseja a sua regeneração. Se, entretanto, os atos antisociais repetem-se, impõe-se a segregação do menor em reformatórios especiais, cuja imagem nos foi dada ao vivo pelo grande ator Spencer Tracy e seus jovens companheiros, no belo filme da Metro "Nós somos todos irmãos".

Para finalizar, desejo estabelecer algumas conclusões, que denunciam preconceitos errôneos, infelizmente existentes nos países em que a Psiquiatria infantil realiza os primeiros passos. Senão, vejamos:

1) Psiquiatria infantil e Neurologia infantil são especialidades absolutamente diversas, quer em seus objetivos, como em seus métodos de ação terapêutica. O neurologista preocupa-se, principalmente, com situações lesionais ou com alterações de funcionamento de partes do sistema nervoso. A mentalidade do psiquiatra pressupõe formação médica, psicológica, antropológica, que lhe permita compreender os problemas relativos à natureza humana e aos desvios da normalidade psicológica. De uma vez por todas, cumpre sanear o pensamento humano da idéia errônea de que Psiquiatria e Neurologia são ciências irmãs. Embora as questões psicopatológicas tivessem sido, nos primórdios da evolução da ciência psiquiátrica, cultivadas por neurologistas, a Psiquiatria hoje é uma ciência plenamente constituída, que escreve a sua própria história.

2) Psiquiatria infantil não equivale apenas a estudo e tratamento de doenças mentais. Esse capítulo, ainda que lhe esteja afeto, representa uma parte muito pequena das suas atribuições. Na verdade, conforme revelam as estatísticas, a incidência de perturbações mentais no período infantil é, felizmente, rara. Tarefa de muito maior alcance humano, social e científico encontra a especialidade no estudo e tratamento dos desajustamentos de toda a ordem. Mais do que problema médico, o estudo da natureza infantil, dos fatores que alteram o desenvolvimento da personalidade, a avaliação dinâmica dos desvios psicológicos e o seu tratamento conferem resultados, que não podem ser medidos pela frieza dos números, mas em têrmos de maior felicidade humana e eficiência social.

3) O movimento conhecido por Child Guidance, pela sua natureza mesma, não pode ficar adstrito às paredes de uma clínica ou de um hospital. A multiplicidade dos problemas que exigem solução indicam a necessidade de várias instituições, movidas pelo mesmo ideal, funcionando harmonicamente, mas bem definidas nas suas finalidades imediatas. Seria difícil tratar um problema de conduta num hospital psiquiátrico, entre doentes mentais e oligofrênicos profundos. Pelo seu caráter mesmo, o movimento tem que ser total e interessar a todos os elementos sociais, principalmente àqueles que mais diretamente lidam com a criança. Nesse sentido, impõe-se educar o ambiente, para que todos saibam o que é psiquiatria infantil, as suas finalidades, os problemas que se propõe resolver e, de um modo geral, quais os métodos de que dispõe para realizar o seu trabalho. Cumpre fixar a posição de cada um em face do movimento e preparar cada qual para uma ação eficiente. O pediatra deve saber reconhecer as reações anormais da criança, avaliar o perigo que podem implicar, o estar em condições de esclarecer os pais sobre a melhor conduta a adotar em tais casos. Finalmente, ele deve conhecer a si próprio, julgar as suas possibilidades e saber quando pode resolver sozinho a dificuldade, ou quando é preciso apelar para o especialista em Child Guidance. Aos professores, frequentemente os primeiros a observar as dificuldades das crianças em idade escolar, cumpre preparar-lhes a mentalidade de tal modo que, antes de procurarem corrigir, pelos processos pedagógicos ordinários, o problema de conduta, pensem em compreender os motivos que levam a criança a proceder desse modo e reconheçam que a repressão não constitui o processo ideal para o tratamento das dificuldades infantis. Educar os pais eqüivale a educar a criança. Um movimento que vise a saúde e felicidade da criança nunca poderá ter pleno êxito se não obtiver a colaboração sincera das famílias. A campanha educativa, sob êsse aspecto, nos Estados Unidos, tem sido intensa e começa a dar os primeiros frutos, avaliados pela simpatia com que é encarado o movimento da Child" Guidance pelas famílias, cuja colaboração é atestada pelo número considerável das "foster homes" devidamente habilitadas.

4) Não se faz Psiquiatria infantil sem Serviço Social. Serviço Social é a arte de auxiliar pessoas que se encontram em dificuldades. Não se pode realizar Serviço Social sem verba. As agências sociais necessitam de organização econômica, como técnica. Dar conselhos apenas, quando os estômagos exigem alimentos, quando o frio reclama agasalhos, quando a doença exige tratamento e o desemprego reclama solução, torna-se ridículo e irritante. Ou façamos Serviço Social ou não façamos Serviço Social. Mas não desmoralizemos esse movimento que, situando a caridade humana em bases mais racionais e menos deprimentes, representa um dos brilhantes atestados da solidariedade social do homem do nosso século.

6) Embora a finalidade imediata da Psiquiatria infantil seja o tratamento das alterações psicológicas da criança, devemos reconhecer que os dados colhidos has clínicas e demais institutos constituem preciosidades, não apenas no que diz respeito ao conhecimento da natureza humana, como na compreensão dos fatores que levam o homem à delinquência, à dependência, às desordens mentais e aos desajustamentos de todos os tipos. E, encarada sob esse prisma, a Psiquiatria infantil adquire um aspecto profilático e se aproxima da Higiene mental. Sem dúvida, é mais fácil e mais útil tratar essas tendências quando elas se esboçam e permitir um desenvolvimento sadio da personalidade em formação, do que encarar, futuramente, estados mais ou menos profundos de desorganização psicológica, que estouram em sintomas dramáticos à sombra dos hospitais. É de prever que, conhecendo melhor a natureza infantil, a Child Guidance, no futuro, esteja em condições de orientar a educação infantil, de modo a proteger a criança dos fatores capazes de alterar o seu desenvolvimento harmônico.

6) A Psiquiatria infantil encontra-se ainda em fase experimental. Os seus frutos não podem ser pesados, por enquanto, na balança das estatísticas, com o devido rigor. Mas, a simpatia que vem merecendo do público, nos países cultos, a aceitação por parte dos governos, o amparo que encontra na iniciativa particular e os resultados concretos, obtidos em muitos casos, atestam a realidade das suas possibilidades. Ela não constitui um luxo da civilização. Mas uma necessidade insofismável, principalmente na hora que atravessamos, quando as velhas normas sociais desfazem-se, quando o cadinho aquecido ameaça de fusão o conteúdo já desagregado, quando as exigências da vida fazem-se mais complexas e ressentem-se o equilíbrio individual e social, impondo novas adaptações emocionais.

Pensemos em nossa infância e vejamos o que nos compete fazer: dar alimento aos que têm fome, agasalho aos que têm frio, hospital ao doente, emprego ao desempregado, amparo ao desamparado, compreensão e tratamento, ao que sofre sob o peso de forças desconhecidas para ele, sob o peso de fatores reais, ou de fantasias inconscientes, habituais à natureza humana. Só assim, estaremos em condições de repetir para as nossas crianças as íltimas palavras do verso de Rudyard Kipling: "And - what is more - you'll be a Man, my son".

Rua João Alfredo, 25 (Tijuca) - Rio de Janeiro.

Palestra realizada na sede do Instituto Brasil-Estados Unidos.

  • 1. Apud R. D. Gillespie - A Survey of Child Psychiatry, London, 1939.
  • 2. Kanner, L. - Child Psychiatry, Baltimore, 1937.
  • 1
    . Apud R. D. Gillespie - A Survey of Child Psychiatry, London, 1939.
  • 2
    . Kanner, L. - Child Psychiatry, Baltimore, 1937.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Mar 1946
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