Acessibilidade / Reportar erro

Supressão da resposta motora e da atividade cortical elétrica no homem

Encarregado da Secção de Neurocirurgia da Clínica Cirúrgica da Santa Casa do Rio de Janeiro. Chefe do Serviço de Neurocirurgia do Hospital de Pronto Socorro

Os fenômenos de inibição do sistema nervoso têm sido exaustivamente estudados, mas ainda hoje pouco se sabe sobre seu mecanismo intimo de ação. Em recente livro, Miguel Osorio de Almeida1 1 . Osorio de Almeida, M. - L'inhibition et la facilitation dans le systhème nerveux central et périphérique. Atlântida Edit., Rio de Janeiro, 1944. acentuou que as noções até agora publicadas estarão em breve envelhecidas, advertindo que nossos conhecimentos atuais são incertos e que as descobertas, que se sucedem, trarão explicações diferentes para os fatos relacionados à inibição. Os novos métodos de investigação científica, a prática de experiências com o rigor da técnica neurocirúrgica e o auxílio da eletrencefalografia permitiram, nos últimos anos, novas investigações e a descoberta de novos fenômenos.

Osorio de Almeida refere-se às verificações de Brown Séquard sobre fenômenos de inibição determinados pela excitação de zonas não motoras da córtice. Bubnoff e Heidenhain2 2 . Bubnoff, N. e Heidenhain, R. - On excitatory and inhibitory processes within the motor centers of the brain. In Bucy, P. - The pre-central motor cortex. Illinois Univ. Press, 1944, pág. 173. , em 1881, também obtiveram ações de inibição em seguida à excitação cortical. Hines3 3 . Hines, M. - The motor cortex. Ch. C. Thomas, Springfield, 1943. e Dusser de Barenne e McCulloch4 4 . Dusser de Barenne, J. G. e McCulloch, W. S. - Suppression of motor response obtained from area 4 by stimulation of area 4s. J. Neurophysiol., 4: 311-323, 1941. determinaram uma zona cortical pré-motora que, excitada, provocava inibição da córtice motora. Essa zona ou faixa (strip), foi denominada, por Dusser de Barenne, área 4s, estando situada entre as áreas 4 e 6 de Broadman. A excitação elétrica da área 4s fazia diminuir a excitabilidade elétrica da área 4 (supressão da resposta motora), reduzia a hipertonia muscular, especialmente no dimídio contralateral e reduzia a atividade elétrica espontânea da área 4, avaliada pela eletrencefalografia. Essas descobertas se vulgarizaram e os mesmos autores com seus colaboradores, determinaram outras zonas de supressão motora, que denominaram áreas 8s, 2s, 19s e 24s (Fig. 1).


Os fenômenos de inibição já eram invocados para a explicação de inúmeras ações nervosas e a descoberta de zonas de supressão motora trouxe uma base experimental para a explicação de certos fenômenos hipercinéticos, hoje considerados como provavelmente resultantes da libertação cortical. É desconhecido o mecanismo pelo qual a excitação das zonas de supressão diminui a excitabilidade da área 4 e reduz a sua atividade elétrica espontânea. Não se trata de fibras córtico-corticais, porque a secção profunda da córtice, entre as áreas 4 e 4s, não evita tais fenômenos.

Dusser de Barenne, Garol e McCulloch5 5 . Dusser de Barenne, Garol e McCulloch - Physiological neuronography of the corticostriatal connections. Res. Publ. Ass. Nerv. a. Ment. Dis., 1942, pág. 246. estudaram as correlações da córtice com o estriado pela neuronografia, método que utiliza a excitação pela estricnina, a qual determina alterações elétricas nas regiões onde terminam os neurônios excitados; tais alterações são registradas pela eletrencefalografia, a qual fornece traçados com ondas rápidas e de grande amplitude, caraterísticas da ação de estricnina. Excitando a área 4, estes autores obtiveram alterações elétricas no putamen; excitando a área 6, as alterações se deram no putamen e no pálido, ao passo que, quando excitaram as áreas 4s e 8s, obtiveram alterações elétricas no núcleo caudado. Demonstraram, assim, que as áreas 8s e 4s enviam axônios ou colaterais para o núcleo caudado, enquanto que da área 4 partem axônios para o putamen e, da área 6, para o putamen e o pálido (Fig. 2).


À custa dessas conexões da córtice com o estriado é que se formam os circuitos córtico-basais-corticais, por intermédio dos quais se produzem, provavelmente, os fenômenos de inibição. As experiências de Dusser de Barenne, Garol, e McCulloch, demonstraram a participação do caudado, do tálamo e, provavelmente, de outras estruturas subcorticais, na constituição desse circuito, Bucy6 6 . Buey, P. C. - Relations to abnormal involuntary movements. The pre-central motor córtex. Illinois Univ. Press., 1944, pág. 395. , apoiado em fatos de ordem clínica, concebeu vários circuitos nervosos, com a participação de vários núcleos basais (Fig. 3 e 4 ). A interrupção desses circuitos, em virtude de lesões situadas nesses núcleos, impediria as ações inibidoras e desencadearia várias síndromes hipercinéticas, conforme os núcleos atingidos.

A verificação dos fenômenos de inibição e a determinação das zonas de supressão, haviam sido feitas somente em animais, especialmente no Macacus rhesus e no chimpanzé; foram constatados, também, no cérebro do gato. Somente em 1944, Garol e Bucy7 7 . Garol, H. W. e Buey, P. C. - Suppression of motor response in man. Arch. Neurol. a. Psychiat., 51: 528 (junho) 1944. divulgaram a primeira verificação desses fenômenos no cérebro do homem, em paciente por eles submetido à extirpação cortical para tratamento de tremor (Fig. 5). Nesse caso, os autores referidos verificaram: 1 - diminuindo a anestesia, até aparecimento de espasticidade muscular, a excitação de determinada zona cortical (homóloga da área 4s), fez desaparecer esse estado de tensão muscular; 2 - após excitação da referida zona, a excitabilidade da área 4 diminuiu consideravelmente, permanecendo assim durante períodos variáveis, conforme a intensidade e duração da excitação; 3 - provocando uma crise que permaneceu após interrompido o estímulo (after-discharge), essa crise cessou bruscamente pela excitação da área de supressão, o que não acontecia quando essa excitação não era feita.


A verificação da existência de áreas de supressão motora na córtice do homem tem importância considerável e merece ser investigada com cuidado. Em trabalho publicado antes da divulgação das conclusões de Garol e Bucy sobre a supressão motora no homem, Deolindo Couto8 8 . Couto, Deolindo - O tremor parkinsoniano e a vida piramidal. Tese de concurso. Editôra do Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 1945. , referindo-se ao assunto, já encarecera a importância da demonstração de tais fatos no homem, como valioso subsídio à compreensão dos sintomas de hiperação. A terapêutica cirúrgica das hipercinesias, para a qual já temos contribuído9 9 . Niemeyer, P. - Tratamento cirúrgico do tremor parkinsoniano, da atetose e outras hipercinesias. Medicina, Cirurgia e Farmácia (Rio de Janeiro), 116: 564 (dezembro) 1945. , trará melhores conhecimentos do mecanismo produtor desses movimentos involuntários. Operando uma paciente portadora de tremor parkinsoniano e na qual fizemos extirpação da área 4 correspondente ao membro superior, procuramos repetir a descoberta de Garol e Bucy. Conseguimos, como fizeram estes autores, determinar a existência de uma área pré-motora que, excitada, provocou uma supressão da resposta motora da área 4. Constatamos ainda, o que não haviam feito aqueles autores, uma abolição quase completa da atividade elétrica espontânea da área 4, avaliada pelo eletrocorticograma, após a excitação da área de supressão, e o desaparecimento imediato e temporário do tremor, em seguida à mesma excitação.

Observação

E. M. P., brasileira, branca, com 55 anos de idade, casada, enviada pelo Prof. Austregésilo Filho, internada em 5 janeiro 1945 na Secção de Neurocirurgia da Clínica Cirúrgica da Santa Casa (Serviço do Dr. Iseu de Almeida e Silva), queixando-se de tremor nos braços, especialmente à esquerda.

História da doença atual - Há cerca de três anos notou o aparecimento de discreto tremor no braço esquerdo. Com o correr do tempo, o tremor tornou-se mais intenso, atingindo o membro inferior do mesmo lado e estendendo-se, depois, para o lado direito. Em virtude desse tremor, ficou impossibilitada de realizar qualquer trabalho manual, sentindo, também, dificuldade na marcha.

Exame clínico-neurológico - Face parkinsoniana; durante a marcha, ligeira claudicação no membro inferior esquerdo. Hipocinesia. Intenso tremor no membro superior esquerdo e muito discreto nos membros inferiores. O tremor é mais acentuado estando o membro em repouso ou na fixação de uma postura. Hipertonia nos quatro membros; presente o sinal da roda dentada. Reflexos plantais normais; aquileus e patelais diminuídos; bicipitais vivos. Fotomotor e convergência normais. Ausência de perturbações da coordenação dos movimentos e da sensibilidade. Linguagem e estado psíquico normais. O exame clínico dos vários aparelhos nada revelou de anormal. Diagnóstico: Síndrome de Parkinson.

Exames complementares - Tempo de coagulação, 6 minutos; tempo de sangramento, 1 minuto e 30 segundos; retração do coágulo completa. Hematimetria 3.810.000 por mm3; leucócitos 4.900 por mm3: basófilos 0%, eosinófilos 1%, mielócitos 0%, formas jovens 0%, formas em bastões 2%, formas segmentadas 54%, linfócitos 33%, monócitos 10%. Uréia 50 mg%; Glicose 103; Cloretos no plasma em NaCl 617; Cloro globular 206; Cloro plasmático 374; Índice clorêmico 0,55.

Intervenção neurocirúrgica, em 7 fevereiro 1945. Anestesia local. Incisão curvilínea, de concavidade inferior, formando retalho, correspondente à região motora da córtice. Foram feitas cinco perfurações com o trépano, ligados com serra de Gigli. Injetado thionembutal na veia na ocasião da fratura da base do retalho ósseo. Ligada a artéria meníngea média e aberta a dura-máter em retalho de base superior.

Foi excitada a córtice com eletródio bipolar e corrente farádica e localizado o centro motor da face, que foi reparado com letra de papel (W) esterilisado, colocada sobre o córtice. Os centros motores da mão (P e Y) e do braço (A e N) foram também identificados e marcados. Em seguida foi excitada a córtice pré-motora, a partir da borda anterior da craniotomia, sendo localizada uma área (C) na qual a excitação fazia desaparecer o tremor (Fig. 6). Essa excitação foi repetida várias vezes, obtendo-se sempre o mesmo resultado. Novamente foi excitada a zona motora e verificou-se a resposta obtida; excitou-se a área marcada com a letra C e de novo a zona motora. Verificou-se então que a excitação da zona. C diminuia consideravelmente a excitabilidade da área 4 e, quando as contrações musculares reapareciam, eram menos intensas. Foi feito um eletrocorticograma, obtendo-se ondas lentas de grande amplitude (Fig. 7); excitou-se a zona C e fez-se outro eletrocorticograma da mesma região, obtendo-se um traçado de inibição, inteiramente diferente do que fôra obtido antes da excitação (Fig. 8). Após o efeito inibidor, o traçado elétrico voltou a ter as mesmas caraterísticas que antes de ser excitada a zona C (Fig. 9).




Foi extirpada a córtice motora compreendendo os centros da mão e do braço, até o fundo da cisura de Rolando. Sutura parcial da dura-máter, recolocação do retalho ósseo e sutura do couro cabeludo em dois planos.

A paciente teve alta curada. Revista, 8 meses depois, não apresentava mais o tremor no braço esquerdo e a recuperação motora era satisfatória.


Conclusões

Os resultados obtidos neste caso permitem admitir a existência, na córtice cerebral do homem, de uma área pré-motora (homóloga da área 4s) que, excitada, determina: 1 - supressão da resposta motora da área 4; 2 - desaparecimento do tremor no dimídio contralateral, nos parkinsonians; 3 - diminuição da atividade elétrica espontânea da área 4, avaliada pela eletrocorticografia.

Conclusions

The results of neurosurgery in the case here reported allow to accept the existence, in the cerebral cortex of man, of a premotor area (homologous to area 4s) whose stimulation causes: 1 - suppression of the motor response of area 4; 2 - disappearance of tremor in the contralateral side of the body, in parkinsonian patients; 3 - decreasing of electric spontaneous activity in area 4, as is revealed by the electrocorticography.

Rua Araujo Porto Alegre, 56 (Edifício Itaúna), 5.° andar - Rio de Janeiro, D. F.

Trabalho da Secção de Neurocirurgia da Clínica Cirúrgica do Dr. Iseu de Almeida e Silva na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Entregue para publicação em 27 janeiro 1946.

  • Supressão da resposta motora e da atividade cortical elétrica no homem

    Paulo Niemeyer
  • 1
    . Osorio de Almeida, M. - L'inhibition et la facilitation dans le systhème nerveux central et périphérique. Atlântida Edit., Rio de Janeiro, 1944.
  • 2
    . Bubnoff, N. e Heidenhain, R. - On excitatory and inhibitory processes within the motor centers of the brain. In Bucy, P. - The pre-central motor cortex. Illinois Univ. Press, 1944, pág. 173.
  • 3
    . Hines, M. - The motor cortex. Ch. C. Thomas, Springfield, 1943.
  • 4
    . Dusser de Barenne, J. G. e McCulloch, W. S. - Suppression of motor response obtained from area 4 by stimulation of area 4s. J. Neurophysiol.,
    4: 311-323, 1941.
  • 5
    . Dusser de Barenne, Garol e McCulloch - Physiological neuronography of the corticostriatal connections. Res. Publ. Ass. Nerv. a. Ment. Dis., 1942, pág. 246.
  • 6
    . Buey, P. C. - Relations to abnormal involuntary movements. The pre-central motor córtex. Illinois Univ. Press., 1944, pág. 395.
  • 7
    . Garol, H. W. e Buey, P. C. - Suppression of motor response in man. Arch. Neurol. a. Psychiat.,
    51: 528 (junho) 1944.
  • 8
    . Couto, Deolindo - O tremor parkinsoniano e a vida piramidal. Tese de concurso. Editôra do Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 1945.
  • 9
    . Niemeyer, P. - Tratamento cirúrgico do tremor parkinsoniano, da atetose e outras hipercinesias. Medicina, Cirurgia e Farmácia (Rio de Janeiro),
    116: 564 (dezembro) 1945.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Jun 1946
    Academia Brasileira de Neurologia - ABNEURO R. Vergueiro, 1353 sl.1404 - Ed. Top Towers Offices Torre Norte, 04101-000 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5084-9463 | +55 11 5083-3876 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista.arquivos@abneuro.org