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Amnésias pós-traumáticas

Docente-livre e assistente-militar de Clínica Psiquiátrica, assistente de Clínica Neurológica na Fac. Med. Univ. Paraná. Do Corpo de Saúde do Exército Brasileiro

O traumatismo como fator psicopatógeno

A maioria dos distúbios mentais consecutivos a traumatismos ocorre quando estes têm lugar sobre o crânio, o que pode acontecer, tanto pela queda de corpo pesado sobre a cabeça, como pela projeção desta contra um obstáculo. Perturbações psíquicas podem ser observadas nas feridas abertas ou fechadas do crânio. No primeiro caso há sempre lesões mais ou menos graves da substância cerebral. Casos há em que, embora se mostre íntegra a caixa craniana, o abalo provoca contusão cerebral, como se observa nas síndromes comocionais puras. Registraram-se estados de astenia, torpor e indiferença persistentes, acompanhados de desnutrição e alterações vegetativas, em casos de intensa comoção cerebral, sem golpe direto, devida à expansão brusca de gases, nas proximidades da explosão de granadas, ou do disparo de um canhão de grosso calibre; a súbita mudança de pressão acarreta hemorragias encefálicas, microscópicas e difusas. Quando há fraturas da caixa craniana, observam-se, em regra, além de comoção e contusão, fenômenos de compressão cerebral. Muitas vezes, não há proporção entre a gravidade das lesões e os distúrbios psíquicos. Assim é que traumatismos graves soem dasacompanhar-se de desordens mentais, ao passo que outros, de aparência benigna, podem deixar seqüelas psíquicas.

Não é indispensável se localize o traumatismo no crânio, para que distúrbios psicóticos apareçam. Podem estes, também, ocorrer em seguida a traumas oculares e aos exercidos sobre partes orgânicas de especial significado psico-estético (sexual), ou sobre grandes centros vegetativos. Damos, a seguir, a observação de um caso pessoal, do último tipo:

D. P. B., brasileiro, solteiro, com 22 anos de idade, soldado de cavalaria, natural do Paraná. Antecedentes pessoais sem grande interesse. Tara endógena, do tipo psicótico (sua mãe teria apresentado, há alguns anos atrás, crise depressiva de matiz pronunciado, com idéias de suicídio, desaparecida a curto tempo).

Histórico - Soldado há quase um ano, com bom aproveitamento na escola regimental, nas instruções práticas e teóricas. Boa conduta militar e social. Certa manhã, durante exercícios de educação física, caiu sobre ponteagudo objeto de ferro, ferindo-se na região epigástrica. Transportado, incontinenti, ao hospital, o médico de plantão observou apagamento dos traços fisionômicos, falta de expressão do olhar e obnubilação mental; todos os seus processos psíquicos eram tardos e lentos; estava desorientado no meio, lugar e tempo. Levado à mesa de operações, sofreu, sob anestesia geral, laparotomia exploradora, verificando-se o seguinte: peritoneo roto e lesão contusiva do colon transverso, sem perfuração. O pós-operatório foi normal, porém, à medida que convalescia, não mostrava o observado (dantes soldado desembaraçado e ativo) tendência a normalizar seu psiquismo. Persistia o estado confusional. Indiferente a tudo, revelava-se descuidado do alinho das vestes e do asseio corporal; nem mesmo procurava alimentar-se, sendo preciso que outro lhe levasse os alimentos à boca. Apresentava, em suma, déficit global de todos os processos psíquicos. Com o passar dos tempos, esse fundo confusional se atenuou, aparecendo, a mais, certo negativismo ativo e puerilismo. Ao fim de 40 dias, mercê das medidas terapêuticas adotadas, melhoraram suas condições, tornando possível sua alta e entrega à família. Persistem seqüelas psíquicas. Os exames de sangue e do líquido cefalorraquídio e o exame somático nada adiantaram para esclarecimento do caso.

Não só traumatismos cranianos, oculares, ou os exercidos sobre partes orgânicas de especial significado psico-estético (sexual) e grandes centros vegetativos podem dar lugar a perturbações mentais. Exemplifiquemos: um etilista pode sofrer uma queda, fraturar uma perna e apresentá-las, a seguir. Dentro da mesma ordem de idéias, Pacheco e Silva refere-se às psicoses pós-operatórias, que se instalam em emotivos e predispostos. De par com as consequências diretamente decorrentes do trauma, há que considerar a possível influência do choque emotivo concomitante. Não importa levar em conta a duração da aplicação mecânica do objeto contundente, mas o tempo durante o qual o indivíduo viveu em plena situação traumática e "foi vítima da angústia por ela determinada" (Mira à Lopez). No que tange à idade, teoricamente ao menos, seriam as idades extremas (infância e velhice) as mais vulneráveis. Relativamente ao terreno, são os indivíduos portadores de personalidade psicopática ou apresentando tara endógena de tipo psicótico, os que, com mais facilidade, desenvolvem transtornos psíquicos pós-traumáticos, conferindo-lhes específica patoplastia constitucional. É necessária a convergência dos fatores exógeno (traumatismo) e endógeno (constituição). Trata-se, em geral, de síndromes mentais reativas, com sintomatologia fundamentada na personalidade pré-mórbida.

Para Adolf Meyer, podem os traumatismos dar lugar aos seguintes transtornos psíquicos: a) delírio traumático: b) constituição traumática; c) enfraquecimento mental pós-traumático; d) outros tipos. Loudet, baseado em Stölper, propõe a classificação seguinte: a) Trauma-psicose - O traumatismo seria a causa única das perturbações observadas. Inclui, neste grupo, a síndrome confusional simples, a síndrome confusional alucinatória, a síndrome de Korsakow pós-traumática, a psicose epitéptica e outras; b) Predisposição-trauma-psicose - O traumatismo nada mais faz que revelar uma disposição latente. Assim é que pode favorecer a eclosão de síndrome interpretativa em indivíduo portador de constituição paranóide ou síndrome esquizofrenóide em outro, que apresente constituição esquizoide ou, ainda, psicose alcoólica em antigo alcoolista ou, finalmente, uma paralisia geral em antigo sifilítico; c) Trauma-prediposição-psicose - O traumatismo prepara o terreno, torna o sistema nervoso mais vulnerável aos fatores psicopatógenos, tocando a outra causa (álcool, por exemplo) o papel de desencadeante. Verifica-se, assim, o aparecimento de psicose alcoólica em antigo traumatizado que, posteriormente, se entregou ao uso do álcool, ou de paralisia geral em antigo traumatizado que, mais tarde, contraiu lues.

Após um traumatismo craniano, direto ou indireto, o acidentado, depois de ficar algumas horas, ou mesmo alguns dias, em estado de coma, retoma, gradualmente, sua atividade mental. Isso, porém, não ocorre de modo completo) habitualmente ficando sequelas, caraterizadas por estado confusional, déficit perceptivo, lentidão associativa e, com freqüência, desordens da memória. Ao sair do coma, permanece em estado de obnubilação mental; nesta fase, até recuperar, por completo, a lucidez, tanto pode revelar acentuada apatia, como apresentar excitação motora mais ou menos intensa.

Sob a designação de personalidade pós-traumática, descrevem-se as encontradiças em indivíduos que, após traumatismos cranianos, apresentaram mudança da atitude caracterológica. Aparece, então, por vezes, uma personalidade nova, produzida pela coexistência da antiga e de traços novos de conduta, nem sempre agradáveis, até então latentes ou inibidos. Assinalaram-se, durante a guerra, a aparição tardia de mudanças caracterológicas, de atos impulsivos anti-sociais do tipo epiléptico, em indivíduos sem defeito genotípico conhecido, que sofreram ferida penetrante, ou apenas afundamento da calota, na região frontoparietal. Nesses casos, exames posteriores (radiográfico, em particular) evidenciaram focos de meningite circunscrita, ou de irritação cortical, provocados por inclusão de esquírulas.

Joke e Guttmann escreveram interessante trabalho sobre a encefalopatia traumática dos boxeadores (punch drunk), fixando que o déficit mental adquirido por muitos deles, no decurso da sua vida profissional, é devido ao acúmulo de inúmeras micro-hemorragias cerebrais, produzidas por golpes diretos à mandíbula, ao mesmo tempo que à criação de uma inibição defensiva, caraterizada por embotamento sensitivo-afetivo: "Trata-se, na realidade", diz Mira y Lopez, "de uma alteração no âmbito da atividade psíquica, que abrange todos os setores (e não só o intelectual), melhor merecendo o nome de hipomência (quantitativa), que o de demência (qualitativa)". Recorde-se, de passagem, que Vallejo assinalou, no contingente de Marrocos, a freqüência de perversões do caráter e de atos agressivos, provocados, ao ver dêsse autor, pelo paludismo.

Perturbações amnéticas pós-traumáticas

Entre os transtornos da memória, que podem decorrer de um traumatismo, deve a amnésia ser mencionada. Como amnésia, entende-se a desaparição completa das representações mnésticas correspondentes a determinado período da vida individual. Podem ser parciais e totais. Entre as primeiras, alinham-se: a perda da memória visual, auditiva, gustativa, táctil, verbal, auditiva, práxica, gráfica, musical, aritmética, topográfica. Raramente observáveis sob forma pura, evidenciam, habitualmente, lesões circunscritas a diferentes territórios da cortiça cerebral, onde se supõe estejam localizadas os centros mnésticos. Por outro lado, podem ser funcionais, obedecendo, nestes casos, a mecanismo psicógeno (emocional). As segundas - amnésias totais - são extensivas a todos os dados do conhecimento e localizáveis no tempo, não se propagando (salvo na confusão mental de forma grave e na fase final dos processos demenciais orgânicos) à totalidade das lembranças da vida do indivíduo, mas a determinada época.

"A amnésia traumática", escreve Abely, "é mais um sintoma do que um bloco sindrômico. Excepcionalmente, apresentasse isolada ou autônoma; mostra-se, em quase todos os traumatismos cranianos, associada a outros distúrbios mentais". Quando anterógrada a amnésia, e não se acompanhando de confusão ou de obnubilação mental, trata o indivíduo de substituir as falhas nas suas recordações mais recentes, servindo-se de presunções mais ou menos lógicas, produto da sua livre fantasia (fabulações), dando, assim, lugar à chamada síndrome amnéstica de Korsakow, traumática. Quando retrógrada, pode dar aso a impressionante choque psíquico, no qual o indivíduo perde, por completo, a lembrança da própria personalidade e vida anteriores; tem servido de assunto a muita literatura e de motivo a alguns filmes cinematográficos.

"Tais doentes", frisa Mira y Lopez, "devem ser examinados com cuidado, pois é perfeitamente possível que sua amnésia não seja real, mas de natureza psicogenética". A recuperação das lembranças será tanto mais segura, quanto mais antiga forem, vale dizer, quanto mais distantes, cronologicamente, do momento mórbido. "Os afetos", diz Bleuler, "são sobremodo importantes, como fatores que inibem ou favorecem a lembrança. Vivências de tonalidade agradável são recordadas com facilidade. Nas de matiz desagradável, duas tendências antagônicas lutam entre si: de um lado, a que pertence ao afeto em geral torna a recordação mais viva; do outro lado, a tendência a afastar tudo que é penoso acarreta, simultaneamente, o afastamento das lembranças tristes. Estas são recalcadas, isto é, não podem ser ecforizadas pelo Eu. O esquecimento não corresponde, então, ao desaparecimento de engramas, mas à impossibilidade de reavivá-los, ou de ecforizá-los, pela via de associação".

Quando a amnésia é transitória, registram-se falhas de memória, relativas ao tempo em que foi impossível, ou insuficiente, a fixação - amnésia lacunar.

Observações

Caso 1 - J. R. S., brasileiro, branco, solteiro, com 25 anos de idade, estudante de engenharia, natural de São Paulo. Antecedentes familiais e pessoais sem interesse.

Histórico (narrativa escrita pelo observado) - "Até fins de 1939, época em que Y estava a terminar o 3.° ano ginasial, nada de anormal houvera na sua vida. A partir dessa época, Y, que era bom aluno, começou a sentir-se um tanto cansado e esgotado, o que não obstou findasse bem o ano. Com o uso de alguns medicamentos, isso desapareceu; ou ainda, Y voltou a ficar até um pouco melhor: mesmo a melancolia e a tristeza de outrora foram substituídas por grande alegria e prazer de viver. Janeiro, fevereiro e março de 1940, sem novidades. Entra Y no 4.° ano ginasial. Logo nos primeiros dias de aula, houve a idéia de formar-se um campeonato de foot-ball entre as várias séries. O campeonato foi iniciado, fazendo Y parte de um dos quadros disputantes. No dia em que o primeiro jogo deveria realizar-se, veio um irmão menor visitá-lo, indo assistir o jogo. Iniciado este, choca-se Y com um adversário, caindo com a cabeça de encontro ao joelho deste. Isso, aos primeiros minutos de jogo. Foi retirado do campo, desacordado, só voltando a si 30 minutos mais tarde. Quando isso teve lugar, não reconhecia pessoa alguma, nem mesmo o irmão; ou melhor, reconheceu, vagamente, um colega, a quem pediu o levasse à pensão. De início, seu colega achou que estivesse a brincar, mas logo se cientificou da verdade ao observar que Y cambaleava, ao andar. Durante aquela noite, Y nada dormiu. No dia seguinte, queixava-se de dor de cabeça e vertigens. Com o decorrer dos dias, passando Y a achar-se cada vez mais esgotado, escreveu à sua mãe, pedindo-lhe fosse vê-lo. Não tendo isso sido possível, foi êle mesmo para casa, onde revelou acreditar não poder dar conta do 4.° ano, por achar-se mentalmente cansado. Ficou, então, em repouso, sob cuidados médicos, o que não impediu passasse a sentir-se pior. Sua família é muito alegre, todos os seus membros são músicos (o observado, inclusive), mas essa alegria, a que, dantes, estava acostumado, agora o aborrecia. Mesmo as melodias prediletas, que apreciava ouvir ou tocar, irritavam-no, a essa altura, bem como qualquer ruido, por menor que fosse. Por isso, fugia ao convívio doméstico. Passava os dias a conversar com amigos, na alfaiataria de um deles. Fora disso, só lhe interessavam treinos de foot-ball. Vinha a casa, apenas para almoçar, jantar e dormir. Alimentava-se e dormia bem. Mais para diante, manifestou desejo de trabalhar na alfaiataria, chegando a ser bom ofícial-calceiro. Nesse ano, o dia de aniversário de Y caiu em um domingo do mês de maio. De véspera, havendo seu pai necessitado viajar, determinou-lhe não fosse jogar em uma cidade próxima, como estava previsto. Isso muito o contrariou, pois se considerava a alma do quadro. Graças, porém, a pedidos feitos a sua mãe e a seu avô, foi jogar, tendo-se destacado bastante. No íntimo, porém, sentia-se receioso do que seu pai pudesse dizer, ou fazer, ao regressar. Dez dias passaram-se, depois disso, sem acidentes. A partir desse tempo, passou Y sem noção do tempo e da própria vida. Certa manhã, ao acordar, ouviu muito barulho, perguntando, então, a um dos irmãos menores, a razão do tumulto. Sua mãe (que é professora), estando perto, informou estarem a preparar os festejos de encerramento do ano letivo. Y não acreditou; não podia ser, pois se tão poucos dias eram passados do seu aniversário, não podendo, por conseqüência, estarem, já, no fim de novembro. Respondeu-lhe sua mãe estarem, de fato, no fim de novembro; fosse ver a folhinha. Se isso não bastasse, visse os irmãos mais velhos que, naquela tarde, chegariam de S. Paulo (o que sempre ocorria no fim do ano). Efetivamente, a folhinha marcava 26 de novembro (recorda-se bem), e o trem da tarde trouxe os manos. Dessa manhã em diante, Y recorda-se de tudo, bem como de quanto aconteceu até 10 dias depois do seu aniversário. Às vezes, recorda-se, confusamente, de pouquíssimas coisas ocorridas durante o período em que esteve desmemoriado. Assim mesmo, vagamente, "como se fosse um relâmpago". Logo a seguir, tudo se esvanece. A partir de então, foi-se, a pouco e pouco, restabelecendo, retornando aos estudos. Observava, porém, que ao fixar a atenção, ou ao fazer qualquer esforço de memória, sentia dor de cabeça. Esta, por vezes, era muito forte, não sendo minorada por medicamentos. Acabava por ceder, espontaneamente. No escrever, acontecia-lhe saber falar a palavra, mas não escrevê-la. Era preciso alguém ditar as letras ou sílabas. E, às vezes, nem assim conseguia escrevê-la, tornando-se preciso outrem escrever para copiar. Ora, escrevia uma palavra, faltando o começo ou o fim, ora faltando a sílaba intermediária. Com o tempo, isto desapareceu. Sua memória é pronta. Recorda-se, às vezes, de qualquer ponto já estudado; sabe onde começa e onde termina, no livro, mas não é capaz de dizê-lo. Se alguém o ajudar, poderá fazê-lo, mas, vezes há em que nem assim. Em outras situações, Y não se recorda de uma palavra, que precisa falar ou escrever, mas dá exemplo de alguma coisa que tenha o mesmo nome e, às vezes, a desenha, nem assim conseguindo recordar a palavra, já tornada tão clara. Y terminou o curso ginasial e ingressou em escola superior, que vem cursando com aproveitamento razoável. As perturbações de memória, ainda agora, são praticamente as mesmas. A dor de cabeça tornou-se "aperitivo de todo instante". Sente-se mudado em seu temperamento: não é mais o brincalhão de outrora. Tornou-se quieto, retraído, foge aos locais barulhentos, aprecia lugares sombrios. Fica nervoso e mais irritado que de hábito, quando sopra forte o vento, ou quando chove. Seu esporte favorito, foot-ball, é-lhe agora indiferente; não o pratica, desde fins de 1941." Termina, aqui, a interessante descrição feita pelo observado. Notar a circunstância de, escrevendo, haver preferido referir-se a si mesmo na terceira pessoa, o que, ao ver de alguns autores, pode ser um aspecto de orgulho - signo de majestade.

Exame somático sem interesse. Os exames neurológico, ocular e do líquido cefalorraquídio (atuais) foram negativos, excluindo, dessa forma, sinais de lesão do neuraxe, processos compressivos, ou de qualquer outra natureza. Exame de sangue (reações sorológicas da lues) negativo. Exame psíquico: Diminuição da potencialidade da atenção, que se evidencia rapidamente fatigável. Diminuição da percepção. Morosidade na associação ideativa. Dismnésia. Exame retrospectivo da memória evidencia amnésia lacunar. Tendência à introversão. Humor sombrio. Irritabilidade fácil. Diminuição da iniciativa. Certo grau de ambivalência volitiva. Imaginação rica. Nível intelectual elevado. Bem orientado no meio, lugar e tempo. J. R. S. possuiria uma filosofia sua, "própria"; considera falhas quaisquer outras, acha errado tudo quanto se lhe diz, o que "demonstra", laboriosamente, a custo, escolhendo palavras; quando se vê discutido, irrita-se, sente-se desgostoso, preferindo, porém, quase sempre, recolher-se a desdenhoso silêncio. Um sorriso irônico, nem sempre motivado, aparece-lhe, amiúde, nos lábios. J. R. S. cofia, a todo instante, mormente quando pontifica, a cerrada barba a nazareno, da qual parece sobremodo orgulhoso.

Caso 2 - D. S., brasileiro, branco, solteiro, com 23 anos de idade, soldado de infantaria (desertor da F. E. B.), natural do Rio Grande do Sul. Antecedentes familiais e pessoais sem importância.

Histórico - Soldado há 4 anos (2, como voluntário e 2, como convocado), sem punição de qualquer espécie. Julgado apto para a F. E. B., fez parte de um dos contingentes que, do Rio Grande, embarcaram para a Capital Federal. No percurso São Paulo-Rio, ao atravessar o trem um túnel, D. S., que viajava na plataforma de um dos primeiros carros, sofreu violenta pancada na cabeça, sendo projetado fora do trem. Rolou, atordoado, para a valeta que acompanha o leito da estrada. Levantou-se e, como o trem corresse a pouca velocidade, por tratar-se de subida, pôde pegar, ainda, o último carro, guindando-se para o interior do mesmo, onde o médico que acompanhava a tropa o socorreu. Relata este colega* * Capitão-médico Lauro de Abreu Coutinho. : "O acidentado era portador de pequena ferida contusa, linear, na região parietal esquerda. Não observei sintoma algum de inibição ou comoção cerebral; ao contrário, mostrava-se perfeitamente lúcido e bem disposto. Apliquei-lhe 3 pontos. Nenhuma perturbação apresentou, e de nada se queixou, durante a noite e até o anoitecer do dia seguinte, quando o deixei no Centro de Recompletamento. Não foi, pois, observada, durante esse tempo, a menor alteração neuropsíquica no acidentado". No Rio, D. S. baixou ao Hospital Central do Exército, no qual permaneceu durante 15 dias. Informes que nos prestou aquele modelar nosocomio não só corroboraram as afirmativas do colega mencionado, como ainda insistiram no mesmo ponto - de não haver D. S. apresentado qualquer distúrbio neuropsíquico, enquanto ali internado. Com alta, lembra-se D. S., nitidamente, de haver-se dirigido, na companhia de seus camaradas, então no Rio, a uma missa, mandada rezar para os expedicionários prestes a partir para a Itália. Recorda-se de haver assistido à mesma. Relembra bem a saída da mesma. A partir desse instante, há um hiato, na sua cadeia evocativa. Depois de um período de amnésia total, há recordações vagas, nebulosas, imprecisas, de movimento de trem, de estar chegando a uma grande cidade. Novo hiato e a lembrança - desta vez, clara - de sua chegada a uma cidade, que soube ser Curitiba, onde jamais havia estado. Caindo em si, compreendeu sua situação, indo, incontinenti, apresentar-se, voluntariamente, a um dos quartéis da cidade, onde contou sua história, ficando preso, aguardando julgamento. Foi mandado para nosso serviço, a fim de opinarmos sobre sua responsabilidade. Justo é confessar que, então, ninguém acreditava na história contada por D. S., e nós mesmos, de início, dela duvidamos: julgámo-lo um desertor como muitos, buscando, numa desculpa, acobertar sua fuga a uma pouco desejada viagem para a Europa. Tal, porém, o tom de sinceridade emprestado à sua narrativa, a coerência das suas afirmações, que, de par com o cuidado habitualmente dispensado a casos dessa natureza, dedicamos carinho maior à observação de D. S. Durou esta noventa dias. Queixava-se, ainda, D. S. de "sentir a cabeça pesada e freqüentes vertigens". Referia sono inquieto, salteado de pesadelos de caráter terrorista; acordava, não raro, sobressaltado, suando frio, "imaginando estar, de novo, a cair do trem".

O exame somático nada revelou de interessante. Exame neurológico: afora hiperreflexia tendinosa, nada mais evidenciou, digno de registro. Exames ocular e otorrinolaringológico sem anormalidades. Exame de sangue (reações sorológicas da lues) negativo. Exame do líquido cefalorraquídio: Punção suboccipital; líquor límpido e incolor; não pôde ser medida a pressão; reações de Nonne-Appelt e Pandy fracamente positivas. Radiografia do crânio: Traço de fratura, interessando o parietal esquerdo, seguindo trajeto paralelo à sutura sagital até atingir o occipital, na linha mediana, onde segue percurso mais ou menos retilíneo, tendo como limite a protuberância occipital (Capitão-médico João Oscar Espíndola). Exame Psíquico: Hipoprosexia, labilidade afetiva, irritabilidade fácil, dismnesia; o exame retrospectivo da memória revelou amnésia lacunar, relativa ao período referido.

Demo-lo como inimputável. Foi absolvido.

As observações acima referem-se a dois casos de amnésia pós-traumática surgida algum tempo depois dos traumatismos cranianos. Se, no primeiro, nenhum vestígo anatômico foi verificado, o mesmo não pode ser dito do segundo, no qual o exame radiográfico revelou a existência de grande fratura do crânio. Em ambos, ficaram seqüelas psíquicas, sendo que, no primeiro, observou-se mudança caracterológica.

A amnésia pós-traumática dura, habitualmente, de alguns dias a alguns meses. Se, na grande maioria dos casos, desaparece com relativa rapidez, outros há, mais raros, em que persiste por maior ou menor tempo, quiçá durante a vida toda do paciente. O prognóstico é bom, a menos que sobrevenha a ação complicante de uma toxinfecção, ou se se observar enxerto de uma psicose endógena.

Aplicações médico-legais

Dada sua magna importância, devem as amnésias pós-traumáticas ser encaradas do ponto de vista criminal, médico-legal militar e civil. Do ponto de vista criminal, desempenharia papel de média importância, especialmente no concernente à gravidade dos delitos (Pacheco e Silva). É, sobretudo, a amnésia anterógrada que provocaria reações anti-sociais; as amnésias lacunar e retrógrada criariam, especialmente, problemas, conflitos e complicações do ponto de vista processual ou médico. O perito terá, quase sempre, de concluir pela irresponsabilidade, mas, quanto à internação, somente em casos especiais será considerada.

Do ponto de vista médico-legal militar, podem as amnésias pós-traumáticas dar lugar a delitos graves, especialmente em tempo de guerra. Quando postas em evidência, de forma precisa (tarefa nem sempre fácil), a eventualidade da reforma poderá ser lembrada.

Do ponto de vista civil, suscitariam problemas diversos e variados. Haveria, primeiramente, que considerar o valor jurídico dos atos e, a seguir, estudar as medidas de proteção necessárias. As questões de incapacidade profissional e indenização deverão variar, segundo se trate de acidente de trabalho ou acidente do direito comum.

Vale recordar, segundo ensina Abely, que só em casos raros são as amnésias pós-traumáticas encontradas tardiamente, em estado puro (dado de grande importância médico-legal). Os portadores de amnésia retrógrada devem ser examinados com reserva, pois é perfeitamente possível que sua amnésia não seja real, mas psicogênica (emocional). Em alguns casos de amnésia ântero-retrógrada, há também lugar para suspeitar a influência de motivos psíquicos (simulação ou exageração mais ou menos consciente). Cabe, então, investigar a situação afetiva e as condições ambientais, para que se não seja enganado e, erroneamente, se estabeleça mau prognóstico. "Estes casos de amnésia completa obedecem, pode-se dizer, à lei do tudo ou nada" (Mira y Lopez). A simulação da amnésia pós-traumática não é rara, e, quase sempre, difícil de desmascarar. Para esse fim, propõem os autores, de par com os processos clássicos de exploração da memória, a prática da eterização, "infelizmente de emprego delicado e não admitido por lei" (Pacheco e Silva).

Tratamento

Instalada a síndrome amnéstica, a seguir a um traumatismo, deve-se obedecer à seguinte norma de conduta: 1. Atender as indicações cirúrgicas, porventura existentes no caso; 2. Realizar sempre exame de fundo de olho, punção lombar, radiografia de crânio e exame clínico; 3. Abster-se do emprego de ópio, como sedativo e mostrar-se parcimonioso na administração de hipnóticos barbitúricos; 4. Atender ao estado geral do paciente: realização periódica de punções lombares; banhos prolongados, se há agitação psicomotora; cardiotônicos, se há sinais de debilidade cardíaca; cuidados higiênicos, visando prevenir a formação de úlceras e escaras cutâneas; antissepsia das mucosas superficiais; alimentação adequada (vitamínica e hidrocarbonada), que assegure a manutenção das forças, com um mínimo de trabalho do fígado; assegurar a evacuação intestinal** ** Quanto ao emprego do chamado método de Weed, para combater a hipertensão intracraniana (soluto hipertónico de glicose, em injeções intravenosas ou em clisteres), autores há (Asenjo, Villavicencio, Fuentes) que o condenam, afirmando, contra parecer da maioria, que essas práticas acarretam aumento do edema e tumefação cerebral, elevando, de igual modo, a pressão liquórica. ; 5. Não interferir na terapêutica instituída para curar o traumatismo, subordinando, sempre, o critério psiquiátrico ao cirúrgico; 6. Visitar, frequentemnte, o doente, sem que este saiba estar sendo observado; 7. Para as astenias, dismnesias e depressões pós-traumáticas, usar: terapia estrícnica, algumas doses de benzedrina, extrato supra-renal associado a vitaminas. Cogitar da transferência, tão precoce quanto possível, para centros de recuperação e readestramento. Tornar viáveis novos contactos com os companheiros da unidade. Em alguns casos (falta de tono motor), usar a terapêutica "frusta", pelo eletrochoque; 8. Levar a efeito a reeducação do indivíduo, fazendo uma reorientação profissional; subtraí-lo à ação do acúmulo de estímulos ordinários (repouso físico e psíquico em semi-obscuridade), graduando, concomitantemente, a apresentação e duração de normo-excitantes.

Rua Coronel Dulcídio, 956 - Curitiba, Estado do Paraná

  • Amnésias pós-traumáticas

    Napoleão L. Teixeira
  • *
    Capitão-médico Lauro de Abreu Coutinho.
  • **
    Quanto ao emprego do chamado método de Weed, para combater a hipertensão intracraniana (soluto hipertónico de glicose, em injeções intravenosas ou em clisteres), autores há (Asenjo, Villavicencio, Fuentes) que o condenam, afirmando, contra parecer da maioria, que essas práticas acarretam aumento do edema e tumefação cerebral, elevando, de igual modo, a pressão liquórica.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Set 1946
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