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Tratamento fármaco-dinâmico das psiconeuroses

Tratamento fármaco-dinâmico das psiconeuroses

L. J. Meduna

Do Depart. Psiquiatria do Col. Med. Univ. Illinois e do Inst. Neuropsiquiátrico de Illinois, Chicago. Esta investigação foi auxiliada por fundos da Fundação Josiah Macy Jr. e da Fundação Rockefeller

Revendo as conclusões de Loevenhart, Lorenz e Waters1 1 . Loevenhart, A. S., Lorenz, W. F. e Waters, M. - Cerebral Stimulation. J. A. M, A., vol. 92, n.° 11, março, 1929. , com referência aos efeitos de diferentes misturas de CO2 em pacientes psicóticos, fcmos levados a estabelecer a seguinte hipótese:

Os efeitos benéficos dos métodos convulsivantes dependem, com relação ao agente utilizado (químico ou elétrico), somente do fato de que este agente provoque convulsões do tipo do grande mal, isto é de origem cortkal. Agentes epileptógenos que condicionem descargas motoras de tipo não cortical parecem não exercer ação curativa sobre as condições psicóticas. Uma explicação provável para isto residiria no fato de que desordens mentais (esquizofrenias, estado esquizofrênicos, melancolias, etc.) são distúrbios das funções corticais, isto é, das funções associativas superiores. As psiconeuroses, ao contrário, podem ser concebidas como distúrbios das estruturas inferiores do cérebro, perturbando ou deformando os valores emocionais dos conceitos. Conseqüentemente, desenvolvendo-se um método capaz de exercer ação predominante sobre as estruturas cerebrais inferiores, conseguir-se-ia profunda modificação dos sintomas patológicos em psiconeuróticos.

Baseando-nos nestes fatos, empregamos um método de tratamento das psiconeuroses por meio da inalação gasosa, tendo sido exclusivamente este o meio de ataque direto a certos sintomas psiconeuróticos, porquanto omitimos, intencionalmente, o emprego de qualquer forma de psicoterapia. Deste modo, os resultados observados dependeram unicamente do efeito do gás sobre os tecidos nervosos.

TÉCNICA E PREPARO DO PACIENTE

Duas são as misturas utilizadas para inalação: uma de CO2 a 20% e O2 a 80%, e outra de CO2 a 30% e O2 a 70%, ambas encontradas em balões, já preparadas. São também usadas uma válvula redutora e uma máscara de inalação com válvula central. Durante a administração do gás, o doente permanece deitado em mesa almofadada. Uma enfermeira assiste o paciente durante o tratamento. É aconselhável iniciar com CO2 a 20% e não ultrapassar 18 a 20 respirações durante o primeiro tratamento. Geralmente, o doente lembra-se de 8 a 16 respirações. Não perdendo a consciência com 20 respirações, este número deverá ser aumentado de 3 a 5 respirações no tratamento seguinte. Havendo necessidade de um aumento adicional, deve-se substituir a mistura por outra de CO2 a 30%.

Após explicação sumária quanto à natureza nervosa de seus distúrbios, o doente é advertido de que será submetido a tratamento por meio de. inalações gasosas que provocarão um tipo particular de anestesia, durante a qual terá sonhos, pensamentos ou emoções pouco comuns. O paciente é solicitado a relatar todas as lembranças ao despertar, mesmo que estas se lhe afigurem sem maior importância. Os que manifestem receio pelo tratamento, deverão ser tranqüilizados quanto à sua segurança. Com o fim de reduzir ao mínimo a influência do fator sugestivo, deve-se explicar claramente ao paciente que não é possível saber previamente se o tratamento será eficaz ou não.

REAÇÕES FISIOLÓOGICAS

As reações fisiológicas comportam seqüência definida, obedecendo à seguinte ordem: 1 - excitação subcortical; 2 - inibição cortical; 3 - excitação psicomotora e psicossensorial, possivelmente por estimu-lação das estruturas subcorticais; 4 - fenômenos extrapiramidais e outros fenômenos motores e ataque epileptiforme subcortical.

Os sinais de excitação subcortical aparecem depois da primeira ou segunda respiração, podendo manifestar-se por aumento de freqüência respiratória, do ritmo cardíaco e da pressão arterial. As pupilas e os vasos da face se dilatam; surge transpiração, a princípio viscosa, depois fluida. Os sintomas desta primeira fase são observados com 6 a 12 respirações.

A segunda fase consiste em um estado de narcose, durante a qual o paciente perde o conctato com o meio ambiente. Aparece atividade cortical lenta de 3 a 4 ondas por segundo, com potencial elevado (Dr. Frederic Gibbs). Esta fase comporta 6 a 20 respirações.

As manifestações durante a terceira fase dependem da doença e da personalidade do indivíduo, sendo representandas principalmente por descargas emocionais. Tais manifestações geralmente têm lugar depois de 20 a 40 respirações.

A fase de estimulação extrapiramidal tem início, algumas vezes, com a vigésima respiração, isto é, durante a terceira fase; quase sempre, entretanto, os sintomas extrapiramidais surgem com a trigésima respiração ou depois desta. Os primeiros sinais são representados por leve tremor, espasmos tetanóides das mãos, depois da face ou do tronco, movimentos atetóides, balismo; rigidez dos flexores, a princípio, depois dos músculos extensores, aparecendo, então, o sinal de Babinski ou posição contínua de Babinski dos grandes artelhos. Continuando a respiração de CO2, podem-se observar sinais de rigidez decerebrada e - voltando o paciente a respirar ar ambiente - ataques epileptiformes. Estas crises convulsivas diferem das induzidas pelo cardiazol ou eletrochoque, tendo efeito terapêutico limitado.

Devemos assinalar que, com este processo, não se verifica a ocorrência de fraturas, luxações ou mordedura da língua, nem relaxamento dos esfincteres. A descarga epileptiforme somente se manifesta com 60 a 100 respirações de CO2 a 30% ou com 16 a 22 respirações de CO2 a 100%. Chamamos a atenção, entretanto, para o uso indevido de CO2 a 100%, em virtude dos seus efeitos sobre o coração. Com referência ao emprego de CO2 a 30%, os trabalhos de Roseman e col.2 2 . a) Roseman, E., Godwin, W. e McCulloch, W. S. - Rapid Changes in cerebral Oxygen Tension Induced by Altering the Oxygenation and Circulation of the Blood. J. Neurophysiol., 9: 33-40, 1946. b) Roseman, E. e col. - Changes in the Oxygen Tension of the Cortex Affected by the Respiration of Mixtures of Oxygen, Nitrogen and Carbon Dioxyde. Manuscrito em preparação. , realizados neste Departamento, mostraram que o cérebro pode suportar com segurança respirações de misturas de CO2 em percentagens extremamente elevadas (até 75%) e retornar à função normal após uma hora de inatividade elétrica.

MODO DE AÇÃO

A melhora clínica observada em psiconeuróticos submetidos a este método terapêutico se verifica por um dos seguintes meios:

1 - Diminuição e desaparecimento dos sintomas. Neste caso, as melhoras se observaram com 15 a 25 respirações, tendo havido necessidade de séries de 40 a 100 tratamentos. Dentre os pacientes tratados, seis apresentavam colite espástica, um era portador de histeria e outro de depressão funcional com componente pitiático.

2 - Ab-reação direta das emoções patogênicas. Os pacientes deste grupo receberam 15 a 40 respirações de CO2 a 30% em cada tratamento. Manifestaram-se reações extremamente dramáticas; os doentes viveram suas experiências patogênicas repetidas vezes, libertando emoções, às vezes com grande intensidade. Por exemplo, uma moça portadora de neurose de ansiedade e que havia sido raptada duas vezes, reviveu as tentativas de rapto, gritando e cruzando as pernas, defendendo-se energicamente como o fizera antes. A reação psicomotora diminuiu à medida que a paciente melhorava. Neste grupo, havia dois casos de neurose de ansiedade, um deles associado a alcoolismo crônico; dois pacientes apresentavam desajuste de personalidade e um outro era portador de histeria de conversão. Uma paciente, desajustada em suas relações conjugais, era cantora de ópera e se queixava de espasmos da laringe e de medo de aparecer no palco: outro sofria de gagueira e instabilidade emocional. Em todos estes casos foram observadas melhoras.

3 - Ab-reação indireta. É o fenômeno de descarga de emoções ou sentimentos patológicos, não pela revivescência de experiências patogênicas passadas, mas através de sonhos simbólicos. A melhora por este mecanismo pode ser bem ilustrada com o caso de uma menina que sofria de colite espástica havia cinco anos. Mostrava-se nervosa, inquieta, evitava o convívio social, receando não ser compreendida, e sentia-se muito embaraçada quando fitava alguém nos olhos. Durante o segundo tratamento, após 27 respirações de CO2 a 20%, gritou, cobrindo o rosto com as mãos e mos-trando-se bastante agitada. Ao despertar da narcose, afirmou que, em sonho, vira pessoas desconhecidas, de má catadura e que se riam de modo zombeteiro. Nos tratamentos subseqüentes, tais expressões fisionômicas já denotavam aspecto menos assustador. Certo dia, a paciente despertou alegre e sorridente: os personagens de seus sonhos tinham aparência amigável e acolhedora. Daí por diante, passou a não temer mais ninguém; fitava os olhos das pessoas com quem conversava, sem mais experimentar qualquer embaraço; suas inibições patológicas tinham desaparecido por completo. Havia mudado tanto que a família e os amigos não deixaram de comentar a melhora.

4 - Análise espontânea e reintegração da personalidade a um padrão mais normal. Durante o tratamento, estes pacientes não manifestaram qualquer descarga emocional, alguns apresentando, e outros não, um sonho simbólico ou uma recordação de sonhos relacionados com alguma experiência passada. Entretanto, estes indivíduos, horas depois do tratamento, recordavam-se de fatos ocorridos na infância, esquecidos ou reprimidos, ou de outras experiências, estabelecendo a relação causal com os sintomas que apresentavam. À medida que o tratamento progredia, os pacientes reviviam quantidade cada vez maior deste material e os sintomas patológicos correspondentes diminuíam ou desapareciam. Os pacientes deste grupo receberam 20 a 30 respirações de CO2 a 30%, num total de 70 a 120 tratamentos.

INDICAÇÕES

Como sabemos, é extremamente difícil classificar as psiconeuroses de modo satisfatório. Adotando-se a classificação de Mala-mud, que divide as psiconeuroses em três grupos - de conversão, neuroses obcessivo-compulsivas (reações anancásticas), e controle deficiente ou reações de emergência (Rado, 1939) - podemos afirmar que, de modo geral, este método é adequado ao tratamento de pslconeuróticos pertencentes ao primeiro e terceiro grupos. Portadores de sintomas dé conversão, tais como aqueles que externam sintomas pseudopsicóticos, são, em sua grande maioria, facilmente controlados pelas inalações de CO2. Indivíduos com controle deficiente ou com reações de emergência, com sentimentos de culpa ou de incapacidade, ou portadores de irritabilidade exagerada ou de neurose de ansiedade são também influenciados favoravelmente por este tratamento. Constituem, ainda, indicações os casos de desajuste da personalidade manifestados por instabilidade emocional e conduta anti-social.

Nas reações anancásticas, tais como as neuroses obcessivas e compulsivas, o tratamento não se mostra eficiente. As chamadas smdromes neurastênicas, a fadiga, a fraqueza geral e as neuroses hipocondríacas são influenciadas de modo transitório. Segundo Loevenhart e col., o mesmo acontece com qualquer condição psicótica.

CONTRA-INDICAÇÕES

Constituem únicas contra-indicações ao tratamento, as formas abertas de tuberculose, a hipertensão e as afecções orgânicas do coração.

MATERIAL

1 - Psicoses: Estados esquizofrênicos (5 casos); psicose maníaco-depressiva (1 caso). Nenhuma melhora.

2 - Grupo anancástico: Neuroses compulsivas (5 casos); neuroses obcessivas (4 casos). Nenhuma melhora.

3 - Grupo de conversão: Histeria de conversão (3 casos); rolite espástka (7 casos); gagueira (1 caso); tensão (1 caso). Todos melhoraram.

4 - Desajustes de personalidade: Dificuldades conjugais, sentimentos de inferioridade, neuroses de ansiedade, instabilidade emocional, alcoolismo crônico, senlimentos de frustração, etc. Total de 11 casos. Melhoraram 5 e 3 não melhoraram.

COMENTÁRIOS

Como vemos, este método terapêutico é indicado para grande número de desordens funcionais da conduta. Acreditamos que muitos alcoolistas crônicos e outros toxicômanos, cujo hábito vicioso tenha suas bases em instabilidade emocional, sentimentos de inferioridade e outros desajustes de personalidade, sejam igualmente beneficiados pela terapêutica. Este tratamento fármaco-dinâmico difere das formas psicológicas de terapia pelo fato de atuar diretamente sobre as estruturas profundas do sistema nervoso. Não temos dúvidas de que os resultados obtidos serão muito mais favoráveis se o método for secundado por psicoterapia. Entretanto, com o fim de avaliar unicamente os efeitos do CO2, a psicoterapia foi intencionalmente omitida nos casos apresentados.

Nota prévia. Publicada em Diseases of Nervous System, 8: 1-4 (fevereiro) 1947. Tradução do Dr. Amando Caiuby Novaes.

Nota do tradutor: Durante nossa permanência no Departamento de Psiquiatria da Universidade de Illinois, em outubro de 1945, gentilmente convidados pelo Dr. Meduna, assistimos a algumas das investigações que então realizava com este processo terapêutico. Pediu-nos, entretanto, o ilustre profesor, com a honestidade científica que sempre imprimiu a seus trabalhos, não divulgássemos aqui o que iríamos observar, porquanto seus estudos ainda se encontravam em fase de experimentação clínica. Na mesma ocasião, prontificou-se a enviar-nos suas primeiras conclusões, ao mesmo tempo que nos solicitou uma tradução portuguesa, a fim de que seu método lograsse pronta divulgação. Foi com a intenção de cumprir o prometido que realizamos esta tradução.

  • 1. Loevenhart, A. S., Lorenz, W. F. e Waters, M. - Cerebral Stimulation. J. A. M, A., vol. 92, n.° 11, março, 1929.
  • 2. a) Roseman, E., Godwin, W. e McCulloch, W. S. - Rapid Changes in cerebral Oxygen Tension Induced by Altering the Oxygenation and Circulation of the Blood. J. Neurophysiol., 9: 33-40, 1946.
  • 1
    . Loevenhart, A. S., Lorenz, W. F. e Waters, M. - Cerebral Stimulation. J. A. M, A., vol.
    92, n.° 11, março, 1929.
  • 2
    .
    a) Roseman, E., Godwin, W. e McCulloch, W. S. - Rapid Changes in cerebral Oxygen Tension Induced by Altering the Oxygenation and Circulation of the Blood. J. Neurophysiol.,
    9: 33-40, 1946.
    b) Roseman, E. e col. - Changes in the Oxygen Tension of the Cortex Affected by the Respiration of Mixtures of Oxygen, Nitrogen and Carbon Dioxyde. Manuscrito em preparação.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Set 1947
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